quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

QIEM SÃO OS TROLLS - E POR QUE NINGUÉM ESTÁ LIVRE DELES? - REVISTA GALILEI

 (Foto: Old Skull Studio)
Se você reparar com atenção, em muitos aspectos a internet é como o oceano. Tem um ecossistema rico e diversificado, oferece locais lindos onde dá vontade de passar o resto da vida, é cheia de riquezas para quem quiser (e souber) explorá-las, serve como ponto de lazer para milhões de pessoas e é amplamente usada para diminuir distâncias. O problema são as criaturas que, assim como nos mares, vivem nas profundezas à espreita de uma vítima. À maneira de predadores que atacam marinheiros e turistas ao sentir cheiro de sangue, os trolls usam as redes sociais para ofender, ameaçar e perseguir pessoas que pareçam vulneráveis. E as consequências podem ser tão fatais quanto um ataque de tubarão.
Segundo o psiquiatra Daniel Spritzer, coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas, as vítimas do cyberbullying praticado pelos trolls apresentam sintomas de depressão, ansiedade e até intenções suicidas, que se concretizaram inúmeras vezes nos últimos anos. “Às vezes o cyberbullying é mais complicado que uma agressão real porque o bullying precisa ter o agressor, a vítima e uma plateia – e a internet potencializa a relação com a plateia, há inúmeras pessoas assistindo a uma pessoa ser agredida, exposta e difamada”, afirma ele. E o pior de tudo: ninguém está imune a isso.
A questão é: por que alguém faria uma coisa dessa? Uma visita rápida ao Reddit, site de entretenimento que está no top 5 dos maiores parques de diversão dos trolls, responde à pergunta. “Eu me sinto superior. Sei que soa idiota, mas manipular as pessoas para deixá-las furiosas traz alegria ao meu coração, é uma sensação muito boa, parecida com como os serial killers se satisfazem matando pessoas: você não os entende até se tornar um deles”, disse o usuário DelusionalFak. A explicação do Reddit vai ao encontro do resultado de uma pesquisa recente da Universidade de Manitoba, no Canadá. Ela relaciona o comportamento troll com a chamada “tétrade obscura”, um agrupamento de quatro transtornos de personalidade: psicopatia (falta de remorso e empatia), sadismo (sentir prazer com o sofrimento dos outros), narcisismo (egoísmo e auto-obsessão) e maquiavelismo (tendência a manipular os outros). O estudo, publicado no final do ano passado, define trollagem on-line como “a prática de se comportar de forma enganosa, desordenada ou destrutiva num local social da internet por um único motivo: prazer próprio”.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores canadenses entrevistaram mais de mil usuários de internet sobre seus hábitos – comentar notícias, bater papo, trollar pessoas – e observaram se eles apresentavam características da tétrade obscura. Como era de esperar, os que se identificaram como trolls mostraram taxas altíssimas desses tipos de comportamento, especialmente sadismo. “Os trolls sentem um júbilo sádico com o sofrimento dos outros. Os sádicos só querem se divertir, e a internet é o seu playground”, escreveram os autores do estudo. Fato: 73% dos usuários adultos de internet testemunharam um assédio on-line, e 40% deles viveram isso na pele, de acordo com outra pesquisa, desta vez realizada pelo Centro Pew Research e divulgada no final do ano passado. Quer outro dado assustador? Uma em cada quatro mulheres com idades entre 18 e 24 anos já foi perseguida ou ameaçada sexualmente pela internet, segundo o mesmo estudo.
 (Foto: Old Skull Studio)
QUEM JOGA A ISCA
“Ah, são apenas adolescentes entediados”, você pode pensar. Porém, um estudo da empresa britânica de pesquisas de mercado YouGov mostrou que esses monstros são, na verdade, boa parte das pessoas, ao menos nos Estados Unidos. Um quarto dos entrevistados já trollou alguém na internet, sendo a maioria homens jovensMillennials têm duas vezes mais probabilidade de fazer isso do que pessoas mais velhas. É um pouco como o bullying: praticamente todo mundo já fez com alguém ou foi vítima. Assim como essa coação violenta, a trollagem tem diferentes níveis, da piada inofensiva ao cyberbullying. E isso tem tudo a ver com a história dos trolls. A origem do termo vem da rede de fóruns Usenet, dos anos 1990, uma referência à expressão trolling for suckers (“lançar iscas para otários”, em português). Seu significado original é fisgar pessoas em fóruns e sites por meio de ofensas ou palavras sem sentido com o único objetivo de deixá-las nervosas. Por exemplo, entrar num grupo religioso no Facebook só para dizer que Deus não existe e assistir às reações das pessoas por diversão.
 (Foto: Revista Galileu)
A BRINCADEIRA VIROU CRIME
Originalmente, a trollagem era apenas uma brincadeira. Grandes nomes do humor nacional se imortalizaram com esse tipo de comportamento. Com suas pegadinhas, Silvio Santos é o maior troll da televisão brasileira. Na década de 1990, deixou os trolls no chinelo ao colocar uma caveira dirigindo uma moto em frente a um cemitério à noite para oferecer aos transeuntes uma “carona até o inferno”. O objetivo, claro, era fazer milhões de brasileiros gargalharem. Ainda hoje, a arte da “trollagem light” resiste, e até o astrofísico americano Neil de Grasse Tyson se mostrou adepto. “Neste dia, muito tempo atrás, nasceu uma criança que, com 30 anos, transformaria o mundo. Feliz aniversário, Isaac Newton, nascido em 25 de dezembro de 1642”, tuitou Tyson no último Natal. Ainda que inofensiva, a piada certamente irritou muitos cristãos.
A trollagem deixou de ser uma brincadeira a partir de 2003, quando foi criado o 4chan, fórum anárquico de onde saíram muitos memes e histórias de terror. Vários usuários do site começaram a divulgar dados pessoais de indivíduos que eles ridicularizavam. De lá para cá, dezenas de pessoas foram expostas, humilhadas, ameaçadas e perseguidas – alguns casos resultaram em suicídio, e o tema começou a aparecer com frequência na imprensa. Os jornais apontaram os culpados: os trolls. Na verdade era uma referência aos flammers, a parcela de trolls que é agressiva e comete crimes. Só que a interpretação pegou, e é assim que eles são vistos hoje.
 (Foto: Old Skull Studio)
A TELA COMO UM ESCUDO
Alguns fatores explicam por que os trolls encontraram na internet um ambiente propício para reprodução. O principal deles é a possibilidade do anonimato. “Ele impede que a pessoa seja identificada, o que evita a punição e dá a impressão de que seus atos não têm consequências”, disse a GALILEU Norman Johnson, especialista em mundos virtuais e professor de ciência da informação da Universidade de Houston. É como uma famosa charge do jornal The New York Times que diz: “Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro”.
Outro desses fatores é a ausência de presença física na web, que permite que as regras sociais sejam mais frouxas. O psiquiatra Daniel Spritzer explica que o ambiente virtual potencializa os efeitos do cyberbullying, tática de alguns trolls. “Quando alguém comete um ato de agressividade contra outra pessoa cara a cara, é possível enxergar o sofrimento da vítima. Quando isso acontece na internet, você não percebe essa reação, e isso pode causar o chamado efeito de desinibição e aumentar a agressividade, porque ver o sofrimento estampado no rosto do outro faz que você se dê conta do que está fazendo e pare”, afirma Spritzer. Há ainda a falta de supervisão da internet, ligada ao anonimato. Milênios atrás, Platão explicou a relação entre anonimato e a moralidade em seu mito do anel de Gyges. O anel mítico daria ao seu dono o poder de não ser visto, no melhor estilo capa da invisibilidade de Harry Potter. Platão disse que até o homem mais justo se tornaria um ladrão se soubesse que não seria pego. “Sem responsabilidade por nossos atos, todos nós nos comportaríamos injustamente”, explicou o filósofo.
Só que os dias de terra sem lei da internet podem estar contados com a popularização de medidas mais severas contra os trolls. A Grã-Bretanha, por exemplo, está estudando quadruplicar a pena atual de seis meses de prisão por cyberbullying. No Brasil, trolls podem ser julgados com base nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, por crimes de calúnia, difamação e injúria. “O que temos no Código Penal hoje é o suficiente para julgar esses crimes; o problema é que a maioria deles é enquadrada como crime contra a honra, que não tem pena de prisão, mas apenas de serviço comunitário ou pagamento de cestas básicas”, afirma Gisele Truzzi, advogada especializada em direito digital.
Gisele explica que pessoas difamadas por meses ou até anos muitas vezes se sentem desamparadas quando, depois de finalmente conseguir uma sentença, o agressor paga apenas algumas cestas básicas. O brasileiro vítima de ofensas e ameaças na internet hoje pode recorrer ao Ministério Público ou à Polícia Federal. É importante manter a prova do conteúdo, dar printscreen na conversa, armazenar e-mails e imagens, pois as investigações dependem disso. A dica da advogada é ir até um cartório de notas e pedir para o tabelião elaborar uma ata notarial do conteúdo, mesmo que seja para descrever uma mensagem privada no Facebook. “A ata notarial é muito forte, é plenamente respeitada judicialmente, enquanto um print de tela feito pela própria vítima pode ser contestado por ser uma imagem, já que imagens podem ser manipuladas”, conta ela.
 (Foto: Old Skull Studio)
TROLLS, SEXISMO E VIDEOGAMES
Um caso de trollagem criminosa que explodiu recentemente foi o chamado Gamergate. Tudo começou com uma história da vida privada que se tornou pública e virou alvo de escrutínio e uma revolta contra corrupção na imprensa. Em agosto, o ex-namorado da programadora de jogos Zoe Quinn publicou um texto em vários fóruns acusando-a de o ter traído com um jornalista de videogames. Vários gamers tomaram as dores do ex e descontaram na programadora sua insatisfação com a indústria. Zoe então publicou uma carta contando que sofreu uma série de ameaças de estupro e morte e que teve dados pessoais seus e de amigos próximos divulgados na internet. Ainda em agosto, o ator Adam Baldwin cunhou a hashtag #Gamergate – em referência ao escândalo Watergate, que derrubou o presidente americano Richard Nixon nos anos 1970 – ao pedir maior transparência no jornalismo de videogames.
No mesmo dia, Anita Sarkeesian, uma jornalista conhecida por fazer vídeos criticando a forma como mulheres são representadas nos jogos, contou que deixou de sair de casa após ser alvo de uma enxurrada de mensagens de ódio. Ela sofre ameaças desde 2012, quando criou um canal no YouTube. O movimento cresceu, o FBI foi acionado para investigar as ameaças virtuais, e várias empresas da indústria se envolveram no caso. Até que, em outubro passado, o assunto virou manchete do The New York Times depois que Anita cancelou uma palestra na Universidade de Utah por causa de um e-mail com uma ameaça do “mais mortal massacre escolar da história do país”. O caso, extremamente complexo, continua a ser debatido nos Estados Unidos.
Anita mexeu em um vespeiro. São muitos os trolls fãs de videogames, que entram em jogos on-line só para atrapalhar outros jogadores e se gabar disso no site Reddit. “Uma faceta desse pessoal machista é achar que mulheres não gostam de jogos de verdade ou não sabem jogar. São os cabeças do Gamergate. É uma parte muito pequena de todo o universo existente de jogadores, mas é uma minoria bem barulhenta e irritante”, disse a GALILEU Thais Weiller, desenvolvedora de jogos e criadora do Oniken, game indie brasileiro que vem ganhando visibilidade internacional.
Don’t feed the trolls (“não alimente os trolls”, em português) é o grande lema das comunidades da internet. Parte do princípio de que os trolls só querem provocar as pessoas, e, quanto mais você se importa, mais divertido fica para eles. Na teoria, se você não os alimentar, eles param de incomodar. Pode funcionar na maioria das vezes, mas não deixa de ser uma forma de permitir que eles assediem os outros impunemente. Em uma espécie de concretização da máxima “o peixe morre pela boca”, algumas pessoas foram capazes de fisgar os trolls – na internet e fora dela.
O CONTRA-ATAQUE
Na Suécia, o jornalista Robert Aschberg apresenta o programa de televisão Trolljägarna(“caçador de trolls”, em tradução livre), um reality show em que ele descobre o endereço desses caras e vai até a casa deles confrontá-los. Até agora, o jornalista tem uma bagagem de 30 trolls capturados. “Você os encontra nas mais diferentes fases da vida, apesar de que ameaças graves ou mensagens racistas e sexistas tendem a ser produzidas por nazistas ou extremistas de direita”, disse Aschberg a GALILEU. Ele conta que as reações são quase sempre de surpresa, muitas vezes de negação total, com desculpas como “meu computador foi hackeado”; outros simplesmente fogem, e alguns até recuperam o bom senso e pedem desculpas. “Certas pessoas fazem ameaças porque estão frustradas, outras porque são mentalmente doentes. A agressividade aumenta quando se está sentado diante de uma tela de computador, o que dá uma falsa sensação de distância, como talvez aconteça com militares que enviam drones a países longínquos”, diz.
 (Foto: Old Skull Studio)
VOU CONTAR PARA A SUA MÃE
Mary Beard, 59 anos, é professora de cultura clássica na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Ela aparece frequentemente em programas televisivos falando sobre sociedades antigas e é uma senhora muito ativa nas redes sociais. Só que, em uma dessas aparições, Mary disse algo polêmico: que os imigrantes não são um peso para a economia local. Foi o bastante para receber uma enxurrada de e-mails falando sobre seus cabelos, dentes, tipo físico e, por absurdo que pareça, fazendo piadas com seu sobrenome, que significa “barba” em inglês. Sua reação foi expor os agressores para seus 47 mil seguidores no Twitter e, em seguida, oferecer-lhes a oportunidade de pedir desculpas. Muitos pediram, e ela ficou amiga desses – a ponto de enviar uma carta de referência profissional para um deles por recear que a exposição pudesse prejudicar injustamente a carreira de um jovem. “Há trolls de todo tipo, e não existe uma forma única de lidar com isso, mas acho perigoso não contestar o que eles dizem. Alguns são pessoas decentes que foram bobas, ficaram bêbadas ou simplesmente desinibidas. Nem todos são perversos”, disse a professora a GALILEU.
Se conversar diretamente com os trolls não funcionar, você sempre pode apelar para a mãe deles. Foi o que fez a jornalista australiana especializada em games Alanah Pear­ce. Uma das mães reagiu chocada e pediu desculpas. “Às vezes, garotos me mandam ameaças de estupro pelo Facebook, então resolvi contar isso para a mãe deles”, declarou ela no Twitter – e foi retuitada 45 mil vezes.
Apesar do fortalecimento das leis e do surgimento dos caçadores de trolls, é difícil imaginar que esse comportamento possa acabar. A diminuição da distribuição gratuita de ofensas exige bem mais que punição e uma lição de bons modos, exige o entendimento de que existem limites. “Com tanta exposição nas redes sociais, as pessoas extrapolam o limite entre liberdade de expressão e privacidade. Podemos falar o que quisermos, desde que não seja um crime e que estejamos preparados para as consequências”, pondera a advogada Gisele Truzzi.
 
ONDE VIVEM OS MONSTROS
É difícil determinar a origem do termo “troll” para definir esses monstros que assombram a internet. Uma teoria aceita é que ele vem do francês troller, que significa entrar num jogo sem um propósito. Mas há também um significado mais antigo e folclórico da palavra “troll”. Era a adaptação para o inglês de trold, termo originário da mitologia escandinava e que se refere a monstros que habitavam cavernas ou montanhas. De acordo com o dicionário Oxford, significa “uma raça de seres sobrenaturais concebidos antigamente como gigantes”. Nas lendas da cultura anglo-saxã, os trolls, também concebidos como monstros, teriam rastejado das profundezas do inferno e eram temidos pelos humanos. Mas ninguém mais acredita nessas histórias, são produtos do nosso imaginário – não são?
 (Foto: Revista Galileu)

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