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No mês passado, fui convidado para falar sobre Schopenhauer e Nietzsche em um evento cultural focado na música. De início, fiquei reticente, devido ao meu conhecimento musical bastante parco. Por outro lado, tratava-se de expor as ideias de dois dos filósofos que mais influenciaram meu pensamento. E é um fato que eles dão, em suas filosofias, mais destaque à música do que às artes plásticas. Assim, aceitei o convite, e, como acredito que minha fala ficou interessante, apresento-a agora aqui, na forma de post.
Pelo menos em parte, o interesse de Schopenhauer e Nietzsche na música está ligado ao fato de ela não lidar com representações, com objetos, como acontece nas artes plásticas ou na poesia. Hoje, é claro, podemos pensar que a pintura abstrata ou outras formas de artes abstratas também não lidam com representações. Entretanto, o abstracionismo é um movimento relativamente recente nas artes plásticas, que ganha força somente no início do século XX — e vale lembrar que alguns dos artistas que impulsionaram o abstracionismo, como Kandinsky, na verdade propunham uma pintura em larga medida baseada justamente na música.
O fato de a música não lidar com representações faz, muitas vezes, com que pensadores que abordam questões estéticas mais interessados em buscar um sentido ou simbolismos relacionados à experiência estética tendam a desconsiderá-la – como o faz, por exemplo, Freud. Por outro lado, pensadores mais interessados em um certo estado de espírito de conexão com algo maior promovido pela experiência estética, especialmente no arcabouço romântico, tendem a valorizar a música. A música aparece então como uma espécie de portal para a dimensão do Real, do supra-fenomênico, ou seja, do para além deste mundo que acessamos com os sentidos.
Ainda sobre o tema do caráter não representacional da música, e para encerrá-lo, cito um trecho das Esferas de Sloterdijk: “A música é a arte contínua por excelência; escutar música sempre significa estar-na-música; nesse sentido Thomas Mann estava certo em chamar a música de um reino demoníaco – durante o momento da escuta, fica-se genuinamente possuído pelo som” [1]
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Sócrates e seu daimon
Como sabe quem tem algum contato, mesmo que breve, com filosofia, o pensamento socrático-platônico é extremamente racionalista. Mas o demônio, relacionado à sensibilidade, manifestava-se para Sócrates quando a razão contrariava o divino. É o que acontece, por exemplo, no Fedro, um diálogo platônico no qual Sócrates faz um discurso contrário ao amor, já que este perturba a clareza da consciência, nos domina. Após o discurso, o seu demônio se manifesta, mostrando o caráter divino de Eros; e Sócrates, envergonhado, profere um novo discurso, distinguindo as dominações de consciência problemáticas — como aquelas relacionadas aos desejos do corpo — das possessões de consciência divinas — como as que ocorrem no amor, na inspiração criativa e no transe divinatório.
Essa exaltação do que hoje englobaríamos na esfera do estético, feita por Platão, pode ser encarada como uma espécie de caso à parte, uma vez na maior parte das filosofias antiga e medieval, e especialmente na própria filosofia platônica, é a razão que aparece como a parte transcendente ou divina do humano por excelência: a parte que nos permitiria acessar o universal, as essências, para além das coisas particulares que podemos acessar com os sentidos. Essa noção de que a razão nos permite acessar o real mais real que o real dos sentidos, ou seja, o real para além dos fenômenos, se sustenta por séculos e séculos, mas vai por água abaixo de vez com a filosofia kantiana, no final do século XVIII. Kant mostra os limites da razão humana e a impossibilidade de se acessar, através dela, aquilo que existe para além dos fenômenos.
Schopenhauer, escrevendo no início do século XIX, busca conciliar Platão e Kant ao ver na experiência estética, e não na razão, uma forma de acessar as tais Ideias platônicas, as essências. Assim, seria, por exemplo, através de uma pintura de árvore que eu poderia contemplar a perfeição da Ideia de árvore, para além da imperfeição das árvores existentes, e não, como em Platão, ao abstrair racionalmente as características das árvores individuais até acessar com a razão a árvore em si. O que definiria o artista genial, nesse sentido, seria sua capacidade de abstrair o particular que se oferece aos sentidos e perceber, como que através do particular, a essência que lhe empresta sua forma.
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Mas e a música? Como já observamos, ela não lida com representações, assim, ela não poderia nos levar na direção de nenhuma Ideia particular. Com efeito, Schopenhauer acredita que, através da experiência com a música, acessaríamos um plano para além das próprias Ideias, a Realidade em si, que Schopenhauer chama de Vontade:
[a música] se encontra por inteiro separada de todas as demais artes. [...] Estimular o conhecimento [das Ideias] pela exposição de coisas isoladas [...] é o fim de todas as demais artes. Todas, portanto, objetivam a Vontade apenas mediatamente, a saber, por meio das Ideias. Ora, como nosso mundo não é nada senão o fenômeno das Ideias na pluralidade [...], segue-se que a música, visto que ultrapassa as Ideias e também é completamente independente do mundo fenomênico, ignorando-o por inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não houvesse mundo. De fato, a música é uma tão imediata objetivação e cópia de toda Vontade, como o mundo mesmo o é. [2]A música é, portanto, a “Cópia da Vontade mesma”. “Justamente por isso, o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência”. [3]
Nesses trechos, o caráter da música de porta para o transcendente fica explícito. Mesmo as outras artes são também porta para uma transcendência de “nível inferior” – ou seja, permitem acessar o plano das Ideias, mas não a Vontade. A arte, enfim, faz aparecer no mundo dos sentidos aquilo que está para além dele, e a música nos leva ao próprio cerne do real no qual não existe mais nem mesmo multiplicidade, mas apenas a Vontade una, a força mesma que move tudo que existe.
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fonte: http://blasphemedsoldier.deviantart.com
É essa visão de desprezo pelo mundo e a busca de algo para além do aqui e agora que Nietzsche atacará ao longo de toda a sua obra. Mesmo em sua primeira obra, O nascimento da tragédia, na qual ele ainda é, de maneira geral, um schopenhaueriano. Ora, se a música é uma porta para a contemplação da Vontade, isso significa que ela nos mostra o caráter caótico, inescrutável, absurdo da existência. Pois a Vontade é uma Vontade livre, acima da ordem que apareceria nas Ideias (Ideias é claro, que Nietzsche não acredita que existam para além de nossas ideias). Se a Vontade é ainda um constructo metafísico, ela está mais próxima de um Deus como o que aparece no livro de Jó, para além da justiça humana — um Deus que não temos como entender, que não busca o nosso bem, e que é completamente alheio a nossas noções de justiça, bem, virtude etc. Ao nos possibilitar um vislumbre dessa Vontade, a música nos mostra o absurdo da existência, nos mostra o vácuo do mundo. A música e toda a arte que nos leva nesse caminho Nietzsche chama de Dionisíaca, em referência ao deus grego Dionísio.
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Dionísio, como se sabe, é o Deus da embriaguez, da desordem, da conexão com o todo, com a natureza. Em oposição a ele aparece Apolo, deus da luz e da ordem, representante das artes apolíneas como a pintura, mas também de certos tipos de música, aquelas mais formais, ordenadas, que não nos fazem sair de nós mesmos em uma espécie de êxtase estético.
A dimensão dionisíaca da estética, embora crucial, uma vez que sem ela tentamos sempre recorrer, por covardia, a uma suposta ordem transcendente, é também “perigosa” de certa maneira, pois pode facilmente levar, por um lado, a uma destrutividade radical, como no episódio mitológico em que as bacantes arrancam a cabeça de Orfeu, o herói-artista apolíneo, ou a uma negação da vida, niilismo.
É, ao contrário, o caminho da possibilidade de uma afirmação do aqui e agora sem a tentativa idealista de esconder o absurdo da existência que busca Nietzsche. E tal possibilidade ele vai buscar justamente na cultura grega, perguntando: como é possível que um povo que encarou de frente o absurdo que é existir, a falta de sentido da vida, pode ao mesmo tempo ter produzido tanta beleza e ter afirmado a vida com tanta alegria? Como os gregos conseguiram isso que Nietzsche chama de serenojovialidade?
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A
resposta de Nietzsche: pela potência criativa apolínea que, longe de
ser destruída ou enfraquecida pelo mergulho dionisíaco, é
potencializada! Uma vez que se abandonou toda a crença em uma suposta
ordem ou verdade do mundo e se aceitou seu caráter absurdo, ganha-se uma
liberdade radical de criação. No caso, dos gregos, a potência apolínea
aparece principalmente na mitologia, nos deuses do Olimpo, que segundo
Nietzsche, justificam a vida humana não por ordená-la, mas por vivê-la!
O mesmo impulso que chama a arte à vida, como a complementação e o perfeito remate da existência que seduz a continuar vivendo, permite também que se constitua o mundo olímpico, no qual a vontade helênica colocou diante de si um espelho transfigurador. Assim, os deuses legitimam a vida humana pelo fato de eles próprios a viverem – teodicéia que sozinha se basta! A existência de tais deuses sob o radioso clarão do sol é sentida como algo em si digno de ser desejado [...]. [4]Notas
[1] SLOTERDIJK, P. Spheres. v. 1: Bolhas. Los Angeles: Semiotext(e), 2011, p. 296, tradução minha.
[2] SCHOPENHAUER, A. O mundo como Vontade e como representação. São Paulo: UNESP, 2005, § 52.
[3] ibidem, § 52.
[4] NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, § 3.
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