segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

MÚSICA E AFIRMAÇÃO DA VONTADE: UM COMENTÁRIO SOBRE AS ESTÉTICAS DE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE - ZUPI

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No mês passado, fui convidado para falar sobre Schopenhauer e Nietzsche em um evento cultural focado na música. De início, fiquei reticente, devido ao meu conhecimento musical bastante parco. Por outro lado, tratava-se de expor as ideias de dois dos filósofos que mais influenciaram meu pensamento. E é um fato que eles dão, em suas filosofias, mais destaque à música do que às artes plásticas. Assim, aceitei o convite, e, como acredito que minha fala ficou interessante, apresento-a agora aqui, na forma de post.

Pelo menos em parte, o interesse de Schopenhauer e Nietzsche na música está ligado ao fato de ela não lidar com representações, com objetos, como acontece nas artes plásticas ou na poesia. Hoje, é claro, podemos pensar que a pintura abstrata ou outras formas de artes abstratas também não lidam com representações. Entretanto, o abstracionismo é um movimento relativamente recente nas artes plásticas, que ganha força somente no início do século XX — e vale lembrar que alguns dos artistas que impulsionaram o abstracionismo, como Kandinsky, na verdade propunham uma pintura em larga medida baseada justamente na música.


O fato de a música não lidar com representações faz, muitas vezes, com que pensadores que abordam questões estéticas mais interessados em buscar um sentido ou simbolismos relacionados à experiência estética tendam a desconsiderá-la – como o faz, por exemplo, Freud. Por outro lado, pensadores mais interessados em um certo estado de espírito de conexão com algo maior promovido pela experiência estética, especialmente no arcabouço romântico, tendem a valorizar a música. A música aparece então como uma espécie de portal para a dimensão do Real, do supra-fenomênico, ou seja, do para além deste mundo que acessamos com os sentidos.

Ainda sobre o tema do caráter não representacional da música, e para encerrá-lo, cito um trecho das Esferas de Sloterdijk: “A música é a arte contínua por excelência; escutar música sempre significa estar-na-música; nesse sentido Thomas Mann estava certo em chamar a música de um reino demoníaco – durante o momento da escuta, fica-se genuinamente possuído pelo som” [1]

 
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Sócrates e seu daimon


O termo “demoníaco” aí, é claro, não aparece no sentido comum de um ser mau, e sim no sentido de qualquer “entidade” que se infiltra em nossa consciência. E em tal sentido, “demônio” não é necessariamente mau. Sócrates, por exemplo, tinha um demônio (daimon) que se manifestava em alguns momentos críticos de sua vida.
Como sabe quem tem algum contato, mesmo que breve, com filosofia, o pensamento socrático-platônico é extremamente racionalista. Mas o demônio, relacionado à sensibilidade, manifestava-se para Sócrates quando a razão contrariava o divino. É o que acontece, por exemplo, no Fedro, um diálogo platônico no qual Sócrates faz um discurso contrário ao amor, já que este perturba a clareza da consciência, nos domina. Após o discurso, o seu demônio se manifesta, mostrando o caráter divino de Eros; e Sócrates, envergonhado, profere um novo discurso, distinguindo as dominações de consciência problemáticas — como aquelas relacionadas aos desejos do corpo — das possessões de consciência divinas — como as que ocorrem no amor, na inspiração criativa e no transe divinatório.
Essa exaltação do que hoje englobaríamos na esfera do estético, feita por Platão, pode ser encarada como uma espécie de caso à parte, uma vez na maior parte das filosofias antiga e medieval, e especialmente na própria filosofia platônica, é a razão que aparece como a parte transcendente ou divina do humano por excelência: a parte que nos permitiria acessar o universal, as essências, para além das coisas particulares que podemos acessar com os sentidos. Essa noção de que a razão nos permite acessar o real mais real que o real dos sentidos, ou seja, o real para além dos fenômenos, se sustenta por séculos e séculos, mas vai por água abaixo de vez com a filosofia kantiana, no final do século XVIII. Kant mostra os limites da razão humana e a impossibilidade de se acessar, através dela, aquilo que existe para além dos fenômenos.
Schopenhauer, escrevendo no início do século XIX, busca conciliar Platão e Kant ao ver na experiência estética, e não na razão, uma forma de acessar as tais Ideias platônicas, as essências. Assim, seria, por exemplo, através de uma pintura de árvore que eu poderia contemplar a perfeição da Ideia de árvore, para além da imperfeição das árvores existentes, e não, como em Platão, ao abstrair racionalmente as características das árvores individuais até acessar com a razão a árvore em si. O que definiria o artista genial, nesse sentido, seria sua capacidade de abstrair o particular que se oferece aos sentidos e perceber, como que através do particular, a essência que lhe empresta sua forma.

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Mas e a música? Como já observamos, ela não lida com representações, assim, ela não poderia nos levar na direção de nenhuma Ideia particular. Com efeito, Schopenhauer acredita que, através da experiência com a música, acessaríamos um plano para além das próprias Ideias, a Realidade em si, que Schopenhauer chama de Vontade:
[a música] se encontra por inteiro separada de todas as demais artes. [...] Estimular o conhecimento [das Ideias] pela exposição de coisas isoladas [...] é o fim de todas as demais artes. Todas, portanto, objetivam a Vontade apenas mediatamente, a saber, por meio das Ideias. Ora, como nosso mundo não é nada senão o fenômeno das Ideias na pluralidade [...], segue-se que a música, visto que ultrapassa as Ideias e também é completamente independente do mundo fenomênico, ignorando-o por inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não houvesse mundo. De fato, a música é uma tão imediata objetivação e cópia de toda Vontade, como o mundo mesmo o é. [2]
A música é, portanto, a “Cópia da Vontade mesma”. “Justamente por isso, o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência”. [3]

Nesses trechos, o caráter da música de porta para o transcendente fica explícito. Mesmo as outras artes são também porta para uma transcendência de “nível inferior” – ou seja, permitem acessar o plano das Ideias, mas não a Vontade. A arte, enfim, faz aparecer no mundo dos sentidos aquilo que está para além dele, e a música nos leva ao próprio cerne do real no qual não existe mais nem mesmo multiplicidade, mas apenas a Vontade una, a força mesma que move tudo que existe.

fonte: http://blasphemedsoldier.deviantart.com
fonte: http://blasphemedsoldier.deviantart.com

Em Schopenhauer, porém, essa porta oferecida pela arte aparece como uma forma de fuga do mundo, outra faceta da ética de fuga do mundo que ele defende na quarta parte de seu livro principal, O mundo como Vontade e como representação. A estética e a ética aparecem, então, como duas possibilidades de se livrar da eterna luta da existência – existência que é sinônimo de sofrimento para todos os seres que existem isoladamente nesta manifestação conflitante da Vontade. Para aqueles seres que “estão no mundo” e só possuem, portanto, uma vontade individual, tal vontade só pode aparecer em conflito com todas as demais vontades — ela só ganha força, com efeito, nesse conflito, pois quando tudo que ela deseja chega facilmente, ela se distende em outro estado de sofrimento: o tédio. A vida dos indivíduos seria assim, para Schopenhauer, um eterno oscilar entre o sofrimento do desejo insatisfeito e o tédio dos desejos satisfeitos. O máximo que poderíamos esperar, na vida mundana, seria maximizar os breves episódios de prazer através de uma regulação do tempo e da dificuldade de satisfação dos desejos, bem como da substituição dos desejos satisfeitos por outros. Mas isso, claro, é muito pouco para Schopenhauer. O verdadeiro Bem estaria em se abandonar esse mundo, seja com uma fuga estética através da música, seja com uma fuga ética através do abandono voluntário do mundo de modo mais completo.

É essa visão de desprezo pelo mundo e a busca de algo para além do aqui e agora que Nietzsche atacará ao longo de toda a sua obra. Mesmo em sua primeira obra, O nascimento da tragédia, na qual ele ainda é, de maneira geral, um schopenhaueriano. Ora, se a música é uma porta para a contemplação da Vontade, isso significa que ela nos mostra o caráter caótico, inescrutável, absurdo da existência. Pois a Vontade é uma Vontade livre, acima da ordem que apareceria nas Ideias (Ideias é claro, que Nietzsche não acredita que existam para além de nossas ideias). Se a Vontade é ainda um constructo metafísico, ela está mais próxima de um Deus como o que aparece no livro de Jó, para além da justiça humana — um Deus que não temos como entender, que não busca o nosso bem, e que é completamente alheio a nossas noções de justiça, bem, virtude etc. Ao nos possibilitar um vislumbre dessa Vontade, a música nos mostra o absurdo da existência, nos mostra o vácuo do mundo. A música e toda a arte que nos leva nesse caminho Nietzsche chama de Dionisíaca, em referência ao deus grego Dionísio.

Bacco (Peter Paul Rubens) 

Dionísio, como se sabe, é o Deus da embriaguez, da desordem, da conexão com o todo, com a natureza. Em oposição a ele aparece Apolo, deus da luz e da ordem, representante das artes apolíneas como a pintura, mas também de certos tipos de música, aquelas mais formais, ordenadas, que não nos fazem sair de nós mesmos em uma espécie de êxtase estético.
A dimensão dionisíaca da estética, embora crucial, uma vez que sem ela tentamos sempre recorrer, por covardia, a uma suposta ordem transcendente, é também “perigosa” de certa maneira, pois pode facilmente levar, por um lado, a uma destrutividade radical, como no episódio mitológico em que as bacantes arrancam a cabeça de Orfeu, o herói-artista apolíneo, ou a uma negação da vida, niilismo.

É, ao contrário, o caminho da possibilidade de uma afirmação do aqui e agora sem a tentativa idealista de esconder o absurdo da existência que busca Nietzsche. E tal possibilidade ele vai buscar justamente na cultura grega, perguntando: como é possível que um povo que encarou de frente o absurdo que é existir, a falta de sentido da vida, pode ao mesmo tempo ter produzido tanta beleza e ter afirmado a vida com tanta alegria? Como os gregos conseguiram isso que Nietzsche chama de serenojovialidade?

goddess 

A resposta de Nietzsche: pela potência criativa apolínea que, longe de ser destruída ou enfraquecida pelo mergulho dionisíaco, é potencializada! Uma vez que se abandonou toda a crença em uma suposta ordem ou verdade do mundo e se aceitou seu caráter absurdo, ganha-se uma liberdade radical de criação. No caso, dos gregos, a potência apolínea aparece principalmente na mitologia, nos deuses do Olimpo, que segundo Nietzsche, justificam a vida humana não por ordená-la, mas por vivê-la!
O mesmo impulso que chama a arte à vida, como a complementação e o perfeito remate da existência que seduz a continuar vivendo, permite também que se constitua o mundo olímpico, no qual a vontade helênica colocou diante de si um espelho transfigurador. Assim, os deuses legitimam a vida humana pelo fato de eles próprios a viverem – teodicéia que sozinha se basta! A existência de tais deuses sob o radioso clarão do sol é sentida como algo em si digno de ser desejado [...]. [4]
Notas
[1] SLOTERDIJK, P. Spheres. v. 1: Bolhas. Los Angeles: Semiotext(e), 2011,  p. 296, tradução minha.
[2] SCHOPENHAUER, A. O mundo como Vontade e como representação. São Paulo: UNESP, 2005, § 52.
[3] ibidem, § 52.
[4] NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, § 3.

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