Fragmentos filosóficos #1 – António Mora/Fernando Pessoa
Olá designófilos! Este é o primeiro de nossos Fragmentos filosóficos, uma série composta por trechos selecionados e comentados, sob a curadoria de Marcos Beccari e Daniel B. Portugal. Em tempos de citações desgastadas na alternância de contextos, nosso propósito não se reduz à repetição de palavras, e sim a apresentar autores em suas próprias palavras. Para começar, o autor escolhido é Fernando Pessoa, comentado por Marcos Beccari.
Não é sonho a vida: é-o, porém, toda interpretação da vida. [...] Ficção da inteligência: criamos ficções puras, “força”, “matéria”, [espaço em branco] – cousas que nada são, nada representam, a nada correspondem: o materialismo e o idealismo, irmãos-gêmeos, diferentes apenas por não serem o mesmo. Força, matéria, átomos, tudo é ficção, e da ficção mais fictícia que pode haver, a ficção do abstracto que se julga correcto. [...] Vivemos pelos sentidos, convivemos pela inteligência. Assim, pois, desligada dos sentidos, sendo que existe apenas para servi-los, a inteligência opera no vácuo, é no vácuo de conhecer que convivemos e que nos entendemos uns aos outros. A vida social é uma ficção. – Fernando Pessoa, O Regresso dos Deuses e outros escritos de António Mora. Porto: Assírio & Alvim, 2013, p. 135-136, § 110.Não é incomum relacionarmos a obra de Fernando Pessoa a questões filosóficas. Seja em verso ou em prosa, o poeta português lançava mão de inúmeras referências à história da filosofia, tratando se vários de seus temas tradicionais de maneira distinta do estereótipo do filósofo: não como alguém que formula um sistema com respeito à lógica, ao método, buscando clareza e verdade pela argumentação, e sim como um “criador de mitos”, nos termos de Rogério de Almeida (leitura sugerida ao fim do post). Recusando-se a existir como um ser acabado, fechado e unívoco, tanto quanto a procurar uma verdade inalcançável do mundo, Pessoa investia na potência fabuladora de produzir mundos, no plural, nos quais a verdade não se discerne das múltiplas perspectivas que os constituem. Com efeito, sua expressão comporta diferentes visões de mundo, modos de ser, numa complexa rede de heteronímia – isto é, dando voz a personalidades dramáticas inventadas. Eis o sentido do mito, o que dá vida.
O trecho acima é atribuído ao heterônimo António Mora, filósofo internado em um sanatório, que desenvolve, em consonância com a poética do célebre heterônimo Alberto Caeiro, uma densa reflexão sobre a crise da metafísica. Em sua teoria das ficções, Mora estabelece a princípio três gêneros de ficção: a religiosa/metafísica, a moral ou dos costumes e a estética. “Servem as primeiras de guiar-nos nas nossas relações universais; as segundas nas nossas relações sociais; as últimas nas nossas relações com nós-próprios” (idem, p. 136, § 112). Tal taxonomia genérica desdobra-se em ordens que a redefinem e redistribuem em função da memória, da imaginação e da inteligência. Em todo caso, a ideia é que, para situarmos aquilo que existe no mundo sem a interferência de nossa existência nele, é preciso que algumas estratégias entrem em funcionamento por meio de elementos que não existem, mas que precisam ser criados, sem perder de vista seu caráter dinâmico e ilusório.
“Vivemos de ficções porém não ficticiamente. [...] Fingimos e sonhamos para poder viver” (idem, p. 134, § 110). Ainda que irreal, a problematização da ficção já atesta que o mundo não é fictício, mas vivenciado e dramatizado ficcionalmente. Logo, o próprio ato de pensar que somos existentes só pode haver em um processo fictício, o mesmo presente na criação de mitos e da noção de “eu”. Tais ficções, que preconizam esse teatro no qual se encena a realidade, instauram a dramatização como método filosófico – no lugar de um método pretensamente racional que suporia uma instância transcendente para legitimar a experiência segundo conceitos formais e universais. Levando em conta a descontinuidade e a retoricidade atreladas ao método de dramatização, um filósofo como Deleuze entende o pensamento como efeito de um drama, os conceitos como personagens e a própria vida como fenômeno estético, cujo movimento se dá por criação e dissimulação.
É neste registro que Fernando Pessoa, ao fingir ser quem ele de fato era, nos ensina a sentir tudo de todas as maneiras, como forma de incorporar o outro como potência fabuladora a partir da qual se desdobra o eu. E é neste sentido heteronímico, quero crer, que o design pode ser encarado como arquétipo das possibilidades humanas: entrevemos uma dimensão estético-ficcional no fundo de cada enunciação, no fundo de cada discurso ou “estilo”, anterior aos efeitos-mundo que ela engendra, dos personagens conceituais dos quais ela se apropria. Uma vez que é impossível escapar das ficções, a lição de Pessoa é não apenas que reconheçamos o caráter poético e criativo do viver, mas especialmente que tenhamos a sensibilidade de escolher uma vida que não se pode escolher. “Força é que finjamos esse destino, para nos guiarmos na vida” (idem, p. 135, § 110).
Sugestões de leituras:
- ALMEIDA, Rogério de. O criador de mitos: imaginário e educação em Fernando Pessoa. São Paulo: EDUC, 2011.
- GARCIA, Gabriel Cid de. A eloquência do mundo: Fernando Pessoa, entre a literatura e a filosofia. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.
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