"À classe média fica a obrigação de cumprir seu papel historicamente determinado pelas elites do país: a de engrenagem na lógica do capital em troca de uma suposta e minguada garantia de trabalho abstrato no futuro. O possível papel de protagonista ela rejeita como fiel escudeira, mas luta com todas as suas armas para impedir que outros, que não sejam seus “patriarcas”, protagonizem suas próprias histórias. O motivo? Migalhas são melhores do que responsabilidade."


Destaquei esta frase porque nela encontrei a razão única e exclusiva do papel da classe média que lita com todas as armas para impedir surjam protagonistas que lhes façam confronto, que sejam protagonistas de suas proprias histórias até porque, segundo o Miranda Junior "As migalhas são melhores que responsabilidades". (maristela)


O brasileiro em geral parece ter um problema sério com ética. Mesmo imerso em um sistema a-ético por excelência, aqui no Brasil parece ter sido criado certo glamour em ser “esperto” na medida em que se torna moral muito mais não ser pego do que não ter cometido algum delito. Confesso minha ignorância sobre como isso se deu historicamente ou sociologicamente. Talvez um cientista social ou um historiador possa nos ajudar. O fato é que está se criando, em contrapartida a esse senso histórico da “Lei de Gérson”, uma urgência de justiçamento que é preocupante. Especialistas afirmam que se trata de um fenômeno social intimamente ligado ao descrédito das instituições democráticas. Mas como explicar isso em um país tão jovem em se tratando de democracia? Não seria motivo para se apostar mais ainda na democracia ao invés de desacreditá-la e corrermos o risco de flertarmos com o autoritarismo?

Parece-me, de longe, que o brasileiro foi alçado ao regime democrático ainda despreparado para seu pleno exercício. Mas nem de longe isso seria desculpa para que não tivesse sido ou se esperasse mais, obviamente. Temos que aprender fazendo. Não há alternativas se quisermos construir maior autonomia como cidadãos ou como sociedade. Esse sentimento geral de desamparo e descrédito nas instituições se dá pela ausência de atuação política da própria população. E essa apatia histórica da população brasileira parece estar diretamente ligada a nossa histórica tutela, seja a partir de uma formação cultural religiosa, seja a partir da formação de um Estado paternalista e autoritário que nunca ouviu de fato o que as pessoas queriam, mas sempre usou da promessa para imiscuir seus próprios desejos no que deveria ser feito.

O sistema produtivo no Brasil, assim como em todo sistema capitalista, tem na classe média a base de sua dinâmica. É nela e por ela que o sistema se movimenta, seja para ceder em determinados momentos em que ela se desperta do amortecimento das tutelas institucionais e reclama da vida, seja para criar demandas que precisam de seu apoio para o sistema continuar concentrando renda e explorando o trabalho social com interesses privados. No primeiro caso, em geral, basta uma oscilação no próprio sistema, dentro de sua própria lógica, para a classe média vociferar contra algum inimigo simbólico e exigir que o sistema faça os ajustes necessários. E é aí que se caracteriza o fenômeno mais emblemático de toda essa complexa questão: quando chamada a exercer minimamente a autoconsciência de sua situação, as camadas médias da população exigem com mais veemência a tutela externa — das elites (políticas e econômicas) — para resolver o “seu problema”. O esse “seu problema” é o mesmo do que qualquer engrenagem funcional: precisa de livre acesso, lubrificação, funcionalidade e eficiência. Sua consciência está absolutamente subsumida pela lógica instrumental e todo e qualquer protesto que venha a fazer diz respeito não a qualquer sentimento emancipatório, libertário ou comunal, mas, invariavelmente, a ajustes que a recoloquem nos trilhos para continuar buscando seus interesses privados e mais mesquinhos. Tudo isso mascarado com discursos meritocráticos daqueles que se pensam sempre como “os pagadores de impostos” e molas propulsoras da evolução econômica do país. Nada mais “liberal”, desde ao menos Adam Smith, do que acreditar que a busca da satisfação privada desemboque automaticamente no bem comum, ou, melhor dizendo, que o uso social para a satisfação privada é o único responsável possível pela distribuição de riquezas.

Diante do descrédito institucional e de um Estado potencialmente desalinhado com os interesses do sistema como um todo, as camadas médias se organizam em torno de dois comportamentos básicos:

1) Resgate compulsório da tutela a partir de figuras “confiáveis”. Nesse caso, confiável é aquele que irá legislar em direção ao retorno de sua funcionalidade de classe, ou seja, recoloca-los na lógica instrumental que vai em direção aos seus interesses privados sem que precisem desviar o foco nem um segundo sequer. Em geral coloca-se toda a esperança em criaturas autoritárias que impõem ordem e redirecionam a estrutura institucional para o controle e repressão de tudo que pode desviar o foco desse “retorno”. Invariavelmente fazem reformas e ajustes que privilegiam prioritariamente os “patriarcas do capital”, aqueles que têm os meios produtivos nas mãos e tem o poder de impulsionar a economia, sejam eles figuras externas (empresas e governos) ou da elite interna do país. Sob a retórica de pacto nacional e conciliação de classes, exigem o sacrifício de todos para que o cumprimento do interesse privado dos patriarcas possa beneficiar os tutelados com as migalhas que sobrarem;

2) Justiçamento: fazer a justiça pelas próprias mãos ou exigir do poder público que puna aqueles que representam qualquer tipo de desvio de foco desse “retorno”, à revelia dos princípios do direito. Nessa hora impera a lógica “inimigo-do-meu-inimigo-é-meu-amigo” e vemos alçadas figuras que passam a representar o “meu-malvado-favorito”. O golpe ético dessa atitude se dá a partir de inversões na justiça, quando os princípios do direito não são mais vistos como justos, mas como formas de benefício a bandidos. São abolidas a presunção de inocência, a necessidade de provas materiais, a licitude na produção de provas e demais instâncias do direito em nome da punição, que significa simplesmente defenestrar o inimigo que potencialmente atrapalharia o plano maior de retomada daquilo que atende aos interesses dos “patriarcas” e seu séquito sedento por “normalidade”. O flerte com a barbárie nas ruas e a proliferação de casos de linchamento são fatos corriqueiros e consequentes. Reproduz-se nas ruas aquilo mesmo que esperam do próprio Estado: a eliminação do inimigo. Não basta que ele pare de cometer delitos, se recupere ou simplesmente seja preso. É preciso barbarizá-lo, executá-lo como exemplo e promover a catarse do gosto da vingança como forma de suportar os sacrifícios necessários para que as coisas voltem ao “normal”.



O fato mais curioso, paradoxal diria, é que sob essa manta de justiçamento está presente ainda aquilo que gera sua própria urgência. A mesma lógica da “Lei de Gérson” faz com que essa suposta limpeza ética aconteça sob os auspícios da vantagem a qualquer custo, mesmo que seja necessário a utilização de meios absolutamente anti-éticos. É o que chamamos com Habermas de “Contradição Performativa”: quando agimos reivindicando aquilo que pretendemos negar ou agimos negando aquilo que reivindicamos.


O pretenso sucesso e aumento do conservadorismo em nossa sociedade e sua judicialização política é uma resposta sistêmica a uma demanda de classe que não só se deixa manipular para que não pense para além de sua própria instrumentalização, mas tem a propensão a escolher a barbárie, se necessário, para que não seja obrigada a pensar. Seja por hábito cultural ou preguiça, torna-se muito mais fácil impedir qualquer tipo de protagonismo que não seja daqueles que garantam as condições pelas quais elas possam procurar na mesquinhez atender seus próprios interesses. Não importa a eles que o custo disso seja a perda de nossa democracia. Afinal, quem anda na “linha” não deve temer opressão. Essa mentalidade se forma de maneira tão irresistível e tem suas raízes tão fortes dentro das camadas médias da população que mesmo os liberais sucumbem a ela de forma insuspeita. Eis a ética da classe média com sua camisa da CBF.
No dia 25 de agosto de 2016 o roteiro foi iniciado rumo ao cumprimento dos dogmas das camadas médias e sua ética seletiva. Não houve nenhum panelaço com a revogação de diversos direitos trabalhistas por parte do Governo interino. Os escândalos envolvendo ministros interinos e grande parte daqueles que estão a julgar os supostos crimes de responsabilidade de Dilma Rousseff não importam. À classe média fica a obrigação de cumprir seu papel historicamente determinado pelas elites do país: a de engrenagem na lógica do capital em troca de uma suposta e minguada garantia de trabalho abstrato no futuro. O possível papel de protagonista ela rejeita como fiel escudeira, mas luta com todas as suas armas para impedir que outros, que não sejam seus “patriarcas”, protagonizem suas próprias histórias. O motivo? Migalhas são melhores do que responsabilidade.



Gilberto Miranda Junior participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.




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