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A publicada pelo O Globo no dia 11/09/2016, ficou por conta da declaração de Temer comparando-se ao Imperador Carlos Magno. Como se não bastasse a arrogância óbvia da declaração, o presidente empossado misturou uma personagem histórica com uma lenda que nada tem a ver com o imperador francês: os 12 cavaleiros da Távola Redonda.

É possível imaginar se Dilma ou mesmo Lula dissessem tamanha desfaçatez em uma entrevista: as dezenas de youtubers de direita e blogs sem expressão ridicularizando e insultando qualquer um deles, criando imagens e consensos sobre como são despreparados intelectualmente para comandar um país. Mas Temer parece-nos intocável, como um imperador. E é como ele se sente:
Eu me sinto aqui como Carlos Magno. Quando eu tinha 11 anos de idade, eu ganhei um livro chamado ‘Carlos Magno e os 12 cavaleiros da Távola Redonda’ e eu li aquele livro e era assim: os doze cavaleiros. (Temer, apud in GRIPP, ALENCASTRO, et al., 2016)



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É bem possível que ele pretendesse dizer Rei Arthur, pois sua confissão referia-se às reuniões com seus ministros, que não são 12, mas sim 23. Doze são os que receberam doações de empresas citadas na Lava-Jato. Fora esses 12 ‘cavalheiros’, 6 respondem a inquéritos no STF e 7 foram citados diretamente na Lava-Jato. Mas talvez a questão não seja quantitativa, mas qualitativa: todos os cavaleiros da Távola Redonda eram homens, brancos, ricos (cavaleiros) e cristãos.

Não é descartável, porém, que os relatos sobre Carlos Magno (Imperador do Sacro Império Romano-Germânico em 800 d.C.) em grande parte tenham sido inspirados na lenda do Rei Arthur: grande guerreiro responsável por ter unificado as tribos bretãs expulsando invasores normandos e saxões no sec. V de nossa era. Talvez, houvesse O Globo à época, perguntado como se sente no poder, Carlos Magno teria forjado sua semelhança com a lenda bretã, embora fosse de origem franca. Afinal, tal qual Arthur, reuniu uma Europa esfacelada e desunida sob os auspícios do, então papa, Leão III. Ademais, nada melhor do que melhorar sua imagem associando-a a uma lenda, a um herói mítico, transformando-se, assim, em um ser mítico também.

Desde a ótima jogada de marketing ao contratar a Veja para forjar uma imagem de “bela, recatada e do lar” à nossa Guinevere tupiniquim, Temer procura construir uma imagem heroica, serena, séria e firme para estar à frente da 7ª economia do mundo. Mas como qualquer rei, tem se mostrado um usurpador de primeira, golpista e conspiracionista, apoiando a violência quando lhe serve e transformando a política brasileira em um grande Game of Thrones.

Por mais que possa ter se equivocado ao trocar Arthur por Carlos, Temer, de fato, tem muito mais a ver com a personagem histórica do que com a da lenda. Com a ajuda de um membro do baixo clero repleto de acusações, mas que se tornara sumo pontífice do poder religioso/político da época, Carlos (oriundo de uma linhagem de Major Domus — Prefeito de Palácio, ou Mordomo) torna-se um Imperador temido em todo mundo ocidental. No entanto, a semelhança entre Carlos Magno e Temer não se dá pelas características exaltadas por seu biógrafo e contemporâneo Einhard, que o descreve como “grande, forte e de alta estatura (…) sua aparência era sempre grandiosa e digna, mesmo se estivesse de pé ou sentado”, mas muito mais pelo seu lado obscuro e inconfessável.

Leão III, papa que coroou Carlos Magno no natal do ano 800, foi um papa incomum. De família humilde, desde cedo se embrenhou na vida religiosa exercendo várias funções, até que sua circulação constante nos meandros da igreja o colocou em contato com o chamado ‘alto clero’, influenciando sua trajetória promissora rumo ao poder. Embora rejeitado pela nobreza romana, seu grande relacionamento com o alto clero garantiu que ele fosse eleito para assumir o mais alto posto da igreja. Estrategicamente, Leão III aproximou-se dos francos para se proteger dos bizantinos os quais lhe faziam oposição. Com isso consolidou sua posição e pôde, no ano seguinte, coroar o rei dos francos, Carlos Magno, como grande imperador. Vendo o papa que lhe pedira auxílio sendo acusado de adultério e perjúrio, o novo imperador convocou um sínodo em Roma para que Leão III se defendesse. Ao declarar solenemente sob juramento que não tinha cometido crime algum, foi absolvido. Fácil, não? Carlos não se fez de rogado e honrou a aliança mandando todos os opositores de Cunha, isto é, Leão III, à morte. Foi canonizado futuramente e agora é chamado São Leão III.

Coroação de Carlos Magno pelo papa Leão III

Carlos ascende ao poder a partir de uma estratégia não apenas do papa que protegeu, mas de toda a Igreja Católica após a dissolução do Império Romano. Com a invasão dos povos bárbaros (chamados assim pela autoimagem de civilizados que os romanos alimentavam), ao invés de resistirem militarmente, empreenderam a conversão desses povos ao cristianismo: pela primeira vez na história são os invasores assimilados e não o contrário. Os francos faziam parte dos povos cristianizados aliados da Igreja e Carlos I (posteriormente chamado de “O Grande” — Magno) comanda os francos contra os lombardos salvando Roma.

Carlos I provém de uma linhagem de subalternos da dinastia merovíngia, fundada por Clóvis. A partir do ano 639 assumem sucessivamente os chamados “reis indolentes” que, ao invés de cumprirem suas funções de monarcas, transferem suas autoridades aos chamados Prefeitos do Palácio,Major Domus: termo que ficaria para a história para designar os cuidadores das casas, gestores, os Mordomos. No entanto, a partir de Pepino, o Breve, essa classe de subordinados toma a coroa e o título e se tornam os reis dos francos, fundando a dinastia carolíngia em homenagem ao filho de Pepino, nosso Carlos I, ou Carlos Magno. A partir de seus feitos, essa nova dinastia é consagrada pela graça de Deus.

Apesar de toda propaganda e maquiagens históricas que contam a história pelo pondo de vista dos vencedores, é possível ler as entrelinhas dos conchavos, conspirações, golpes e tramoias que fazem o poder mudar de mãos e acusados serem salvos pelas alianças que contraem. Basta-nos lembrar o que Carlos fez aos saxões: povo que não aceitava a dominação e nem deixar de venerar Wotan para se tornarem cristãos. O império de Carlos Magno os aniquilou, arrasou suas terras, mandou decapitar 4.500 saxões e dividiu suas terras entre bispos e marqueses. Nas regiões pantanosas onde focos de resistência ainda existiam, deportou cerca de 10 mil saxões, cobrou dízimos pesadíssimos, fundou bispados e controlou com tribunais inquisidores quem sobrou (ABRIL CULTURAL, 1973).

Se for ato falho Temer ter se comparado a Carlos Magno ao invés de Arthur, como todo ato falho, o fato pode nos dizer muito mais do que se tivesse falado o que pretendia. Se sua autoimagem ou a que pretende consolidar no Brasil enquanto estiver no poder quer nos passar sua grandiosidade e capacidade de conciliação social, é preciso entender tudo o que está envolto nesse projeto, a quem serve, do que irá se servir para conseguir e quem sairá, indelevelmente, derrotado desse teatro de horrores. A questão final é que, como Arthur, Temer não existe. É uma ficção.


Referências

ABRIL CULTURAL. Enciclopedia Conhecer. São Paulo: Editora Abril, v. I, 1973.

GRIPP, A. et al. ‘Me sinto como Carlos Magno’, diz o presidente Michel Temer.O Globo, Online, 11 Setembro 2016. http://oglobo.globo.com/brasil/me-sinto-como-carlos-magno-diz-presidente-michel-temer-20087374.

MIRANDA Jr., Gilberto. Festival do Baixo Clero e a Reforma Política. Revista Krinos. Medium. 01/05/2016.

MIRANDA Jr., Gilberto. Bela, Recatada e do lar. U-hum, tá!. Filosofando na Penumbra. Medium. 20/04/2016.



Gilberto Miranda Junior participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.