domingo, 18 de setembro de 2016

TELEVISÃO E NAZISMO



Revista Krinos
Waldisio Araujo

DESTACO:

"Cada clique num link da Internet tende, pois, a reafirmar nossa liberdade (e, portanto, também as consequências dela advindas, boas ou más). Em contraste, o botão que aumenta o volume de nossos aparelhos de TV pode girar no mesmo sentido da imposição de um discurso único a todos, incluindo o discurso fascista que insinua que somente haveria uma única verdade e, pior, que esta deveria ser adotada, para “felicidade” de todos. Desligá-lo, ainda que simbolicamente, é muitas vezes, um ato de liberdade."


Montagem feitas a partir de imagens de Hitler e aparelho de TV antigo da Wikipedia pelo autor.

Felizmente o Fascismo italiano e o Nazismo alemão quase não conheceram a televisão, mas se basearam no rádio. As vozes de Hitler ou de Mussolini eram escutadas frequentemente entre propagandas, palavras de ordem, noticiários manipuladores e música clássica. A televisão já existia, é verdade, e as Olimpíadas de Berlin, patrocinadas, hospedadas e manipuladas por Hitler, foram televisionadas para um público muito restrito, pois era algo demasiadamente caro, de modo que a veiculação em massa de imagens à distância dava-se sobretudo pelo jornal (imagem estática) e pelo cinema (imagem em movimento). A época era mesmo oral e o rádio reinava triunfantemente num mundo conservador, servindo de modelo inclusive para o desenvolvimento dos primeiros aparelhos de TV. Como seria de esperar-se, o Estado nazifascista se apoderou das estações radiofônicas e incentivou ainda mais o uso dos aparelhos, chegando a facilitar sua aquisição e mesmo a doá-los. De certa forma tais regimes e a Segunda Guerra Mundial foram filhos do rádio e sem este teriam sido talvez impensáveis.

É que o rádio (ainda hoje) favorece de certo modo a veiculação do autoritarismo, ou seja, a circulação de mensagens que pretendam ocupar nosso pensamento com um ÚNICO significado e sem possibilidade de questionamentos, pela própria forma de comunicar: podemos dizer que quanto mais possibilidades tivermos de, no momento da comunicação, afirmarmos um sentido único e ocultarmos ou negarmos outros sentidos possíveis mais perto estaremos do autoritarismo e mais distantes de seu oposto, a liberdade de expressão e pensamento. Para explicar melhor, peço licença para utilizar três termos técnicos de Teoria da Comunicação, mas muito fáceis (e até divertidos) de compreender.

Chama-se simplex um dispositivo de comunicação que só pode transmitir informações num único sentido, ou seja, somente pode enviar ou apenas pode receber mensagens. O exemplo mais acabado de tal coisa é justamente o rádio, pelo qual uma estação transmissora — que não pode receber mensagens — transmite para para aparelhos receptores de ouvintes que não as podem enviar. Na verdade, o pessoal da estação receptora sequer sabe se sua mensagem foi recebida, e os ouvintes que a receberam não podem nem comunicar este recebimento nem, sobretudo, sua condordância ou não com o conteúdo recebido (exceto, é claro, por algum outro dispositivo, como o telefone ou mediante pesquisas de opinião etc.). É então fácil percebermos que, por sua própria natureza, os dispositivos simplex são os mais rústicos e limitados que existem, motivo pelo qual tendem a estimular sistemas políticos que visam impor a todos uma visão de mundo, uma interpretação, uma justificativa ou uma ideologia pretensamente dadas como “naturais”, “inquestionáveis”, “canônicas”, “eternas”, “fundamentais” ou “óbvias”.

Por outro lado, temos dispositivos que podem transmitir informações em ambos os sentidos. Eles se chamam duplex e permitem que as respostas do receptor se deem quer em tempos diferentes (half-duplex) quer ao mesmo tempo (full-duplex). Exemplo interessante de dispositivo half-duplex é o aparelho de rádio-amador clássico ou o walkie-talkie, em que o emissor monopoliza o envio de suas mensagens por um certo tempo, após o que anuncia um sinal de “câmbio”, ou seja, de que cede o canal para que o receptor envie sua própria mensagem de resposta, e assim por diante até que seja pronunciado sinal de “câmbio final”. Já os dispositivos full-duplex podem ser exemplificados pelo aparelho telefônico (tradicional ou celular) e pelas redes ethernet usadas comumente por nossos computadores; neles a emissão e a resposta podem ser simultâneas num certo intervalo de tempo — sendo mesmo possíveis várias formas de comunicação diferentes simultaneamente, como mímica, sinais, emoticons, escritos etc.

É fácil inferir-se que os dispositivos duplex, sobretudo os full-duplex, são os mais apropriados a sistemas verdadeiramente democráticos, em que o ideal é que as mensagens sempre possam ser submetidas ao contraditório, à crítica, à contestação, à retificação, ao questionamento. Ora, diante disso, embora de uma forma bem genérica (porque a comunicação não é tudo), podemos relacionar a liberdade dos sistemas de comunicação de massa recentes aos graus de liberdade permitidos por sociedades que usam predominantemente determinado tipo de dispositivo.

E a televisão? Apesar dos ainda tímidos balbucios de uma TV digital que permitiria algum tipo de expressão de suas opiniões por parte dos telespectadores, ela insere-se, juntamente com o rádio, no grupo dos mais rústicos e autoritários dispositivos de comunicação. Aliás, a TV é ainda mais conformista que o rádio, pois este último pode ser ouvido por toda a casa enquanto o ouvinte pensa, sente e faz outras coisas, ao passo que a TV praticamente exige que o usuário se sente ou deite (nossas máximas imagens do termo “comodismo”) e permaneça às vezes por horas atento ao aparelho, a cujas mensagens não tendemos a responder negativamente senão mudando para algum dos outros poucos canais disponíveis. Bem verdade que as emissoras de TV usam largamente de pesquisas de opinião para medir o que os espectadores estão achando da programação e para adaptar esta à conformidade (e conformismo) da maioria dos usuários, mas ainda assim estes tendem a submeter suas opiniões latentes à intepretação que a emissora está sempre a sugerir, praticamente impor.

Um exemplo de manipulação seria um noticiário em que se mostram cenas diferentes de uma manifestação pública: numa tomada um grupo de manifestantes (ou gente disfarçada de manifestantes) depreda uma vidraça ou põe fogo num automóvel; em outra cena, a polícia lança bombas de gás lacrimogêneo contra a multidão que grita; em outra, um governante afirma a repórteres estar pronto a “coibir abusos” que comprometam a boa ordem; por todo lado a mesma mensagem lançada a uma pequena burguesia apavorada em seu eterno temor ao desconhecido; por todo lado a retórica que insinua que a polícia bate com razão, que o governo apenas defende o cidadão comum e que os manifestantes ameaçam a paz pública. No mundo “real” (ao menos na estreita faixa que conhecemos dele), tudo é complexidade, perplexidade, polissemia, ambiguidade, riqueza de detalhes, superposição de significados, explicações, interpretações extremamente diversificadas entre si. Mas do lado, na frente do aparelho, apenas flui o texto monótono, explicadinho e direcionado que as conveniências políticas dos donos da emissora desejam. A televisão é seletiva, filtra um, no máximo dois sentidos e oculta todo o resto, finge que o mundo é previsível ou explicável, reduz a realidade a alguma dualidade pobre ou podre que classifica os humanos em bons ou maus, deixando estes últimos sem voz.

Claro que alguns espectadores, um pouco menos manipulados, ainda conseguem esboçar novos significados — digamos que se indignem com a paralização do trânsito causada pela multidão em pleno horário de trabalho — mas apenas conseguem disfarçar sob sua retórica o pensamento implicitamente conformista de quem na verdade estaria também reclamando se a manifestação estivesse atrapalhando sua praia ou barzinho em pleno domingo sem trabalho. O mais importante para nós, porém, é que as sugestões da TV são quase sempre seguidas à risca porque elas buscam fazer com que os inúmeros sentidos de suas mensagens sejam resumidos a um só, mesmo que este seja combatido por um ou outro espectador — o que, aliás, antes o reforça, pois dizer “não” a um sentido de mensagem é apenas uma forma de afirmar a universalidade e imutabilidade da mensagem como tal, e a tal TV interativa do futuro não tende a modificar isso tão cedo.

O século XX foi o século do rádio e da televisão pelo mesmo movimento em que foi o século do Nazismo, do Fascismo, da Guerra Fria e dos golpes militares aos governos populares. Ele injetou em nós formas sutis de autoritarismo que só a partir da crítica de intelectuais como Barthes, Foucault, Chomsky, Debord, Deleuze ou Derrida nós passamos a enxergar por trás da fumaça que se adensa entre as palavras e as coisas contemporâneas. Hoje o desafio para nós é justamente o de evitar que as mensagens tenham um único sentido possível, só assim poderemos talvez assegurar que as pessoas sejam livres para expressarem suas concepções e preferências políticas, sexuais, científicas, artísticas ou religiosas, sobretudo nos momentos de crise, quando as mentes e corpos estão mais vulneráveis a adotar a primeira interpretação que lhes oferecem. Enquanto mantivermos rádio e televisão como origem e critério de validade de nossas opiniões sobre nós mesmos e sobre os outros o Nazismo e o Fascismo permanecerão em sua localização mais perversa: dentro de nós.

Nossa maior arma atual contra o autoritarismo latente é a Internet. Claro que os textos, sons e imagens veiculados por ela estão todos carregados de mensagens cuja validade se pretende, em cada página, tão universal quanto as veiculadas pela TV ou pelo rádio (podem procurar neste próprio texto nosso, não nos insentaremos de culpa). Contudo, ao contrário do número ínfimo e da monotonia dos canais oferecidos pelo sistema televisivo, a grande rede possui bilhões de websites que envolvem gêneros tão diversos como o blog, o portal, o fórum, a rede social, o disco virtual… E na maioria deles os canaisfull-duplex estão abertos à interação com o público, num gigantesco hipertexto que une entre si as páginas mais díspares, submetendo-as a um turbilhão de opiniões divergentes, efêmeras e mutantes. Assim, podemos dizer que, teoricamente, não há interpretação encontrada na Internet que não esteja relacionada a uma multidão de interpretações que lhe sejam semelhantes, opostas, complementares ou contraditórias, em uma palavra: polissêmica, rica em sentidos.

Isso quer dizer que qualquer tentativa de demasiada limitação política ou policial dos conteúdos da Internet, seja com que argumento for, provavelmente não passará de autoritarismo disfarçado, motivo pelo qual devemos estar permanentemente atentos a tais manobras. E, acreditem, há projetos de lei aparentemente inofensivos que têm embutidos o efeito de uma manipulação fascista, a exemplo de propostas de criminalização do uso de falsas personagens (fakes) sob o pretexto “democrático” de combater-se o anonimato das opiniões, ou tentativas de tornar puníveis criminalmente críticas aos donos do poder político. Em tais casos, resvala-se fácil e subrepticiamente para o direito estatal de vasculhar a vida íntima das pessoas, ameaçá-las ou mesmo puni-las. É importante que a Internet, apesar de seus perigos (todo veículo de comunicação é potencialmente perigoso de alguma forma) permaneça esse virtualmente infinito hipertexto onde a autoridade ou a autoria, o mando ou o desmando, a verdade ou a mentira, o bem ou o mal não prevaleçam de forma exclusivista.

Cada clique num link da Internet tende, pois, a reafirmar nossa liberdade (e, portanto, também as consequências dela advindas, boas ou más). Em contraste, o botão que aumenta o volume de nossos aparelhos de TV pode girar no mesmo sentido da imposição de um discurso único a todos, incluindo o discurso fascista que insinua que somente haveria uma única verdade e, pior, que esta deveria ser adotada, para “felicidade” de todos. Desligá-lo, ainda que simbolicamente, é muitas vezes, um ato de liberdade.



por Waldísio Araújo
www.waldisio.com

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