sábado, 17 de setembro de 2016

UMA PEQUENA HISTÓRIA SOBRE O DESPREZO PELO OUTRO.





Nos nossos discursos públicos sobre preconceitos raciais, feminismo, direitos das minorias, etc. pretendemos ser sempre politicamente corretos, assumindo posições aprovadas pelo consenso social, quando na verdade, intimamente somos, na maioria das vezes, indiferentes a eles, na medida em que poucos seres humanos nos importam realmente.

Slavoj Zizek – sempre ele – conta no seu livro “Arriscar o Impossível”, uma passagem esclarecedora sobre isso. Numa roda de amigos, ao ouvir uma cantora de blues, ele comentou que pelo timbre da voz, deveria ser uma afro-americana, embora seu nome fosse muito europeu. Imediatamente, foi taxado de politicamente incorreto ao identificar uma pessoa por suas características naturais seja ela qual for.

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Por isso, o manual de boas maneiras que todos devemos seguir à risca, impede que um negro seja chamado de negro, um judeu, de judeu, um careca, de careca ou um gordo, de gordo.

Para Zizek, existe por parte dos politicamente corretos, uma proibição completa de qualquer tipo particular de identificação, o que significa que o OUTRO deve ser entendido como uma abstração, como se já estivesse morto.

Zizek é um filósofo esloveno e sua linguagem, às vezes, é um pouco hermética, mas é fácil constatar como ele tem razão, quando pensamos na hipocrisia de alguns discursos em relação a causas nobres como solidariedade social, filantropia, etc.

Quanto mais distante socialmente a pessoa é de quem se comporta como sujeito, mais o discurso politicamente correto se mostra falso.

Nos parlamentos, nos tribunais, nas igrejas, nas reuniões sociais, as pessoas tratam de se identificar através de seus trajes e linguagem como pertencentes a um grupo social que merece ser respeitado.

Aqueles que não seguem essas regras são marginalizados e, como aponta Zizek, só recebem solidariedade formal, quando se tornam vítimas de uma situação que escancara para toda a sociedade, a verdadeira discriminação social escondida atrás de algumas regras de conduta.

Há pouco, a sociedade gaúcha foi sacudida pelo caso do promotor de justiça que, em pleno tribunal usou palavras extremamente agressivas contra uma menina vítima de estupro do próprio pai.

Todas as pessoas de bem e algumas até que não são, trataram de condenar o gesto, mas pouco se ouviu dizer se condenam também as causas sociais que levaram a se tornar comum este tipo de situação – estupro de menores – na classe mais miserável da sociedade.

Os tribunais, aliás parecem formar o cenário ideal para essa representação do drama social em que vive o nosso País.

O réu de um crime de morte, principalmente esses que envolvem a chamada guerra do tráfico, é visto não como um ser humano a ser julgado pelos seus erros, mas quase como um monstro.

Está certo que o crime e o criminoso muitas vezes se confundem na mesma ação e fica difícil para os acusadores distinguir o ser humano do ato criminoso e a partir daí, ao exorcizar o crime, desrespeitem o pouco que resta – quando ainda resta – de dignidade do acusado.

Condenados a dezenas de anos de prisão, em masmorras medievais, jamais se recuperarão e para a maioria das pessoas – principalmente aquelas que professam a importância de ser politicamente corretas – isso pouco importa.

Trata-se apenas do OUTRO, algo que não nos diz respeito, como fala Zizek em seu livro.

Minha filha, a Dra. Tatiana Kosby Boeira, que sem ilusões de reformar o mundo, trata realisticamente suas funções de Defensora Pública como uma oportunidade de tentar diminuir o sofrimento físico e mental de alguns rejeitados pela sociedade e ao mesmo tempo mostrar as injustiças do sistema, me relatou um caso típico da indiferença da sociedade pelos os transgressores de suas normas, principalmente aqueles pertencentes aos seus segmentos mais excluídos.

Rodrigo Lopes Fernandes, com antecedentes criminais, agravados por atos agressivos contra a promotoria em julgamentos passados, foi novamente condenado, essa semana, a uma nova e dura pena e recebeu, ainda no próprio tribunal a informação de que sua companheira, Fernanda Rodrigues dos Santos, alguém que vivia do trabalho honesto de professora – havia sido morta por uma gang rival da qual Rodrigo fazia arte.

Seu único pedido, então, normal para qualquer ser humano, era uma autorização para poder assistir o enterro da mulher. Embora isso seja um direito de qualquer preso, muitas pessoas preferem enxergar nele, não um direito, mas uma concessão da sociedade, um ato humanitário que serve para justificar os bons sentimentos dos bem-nascidos.

Felizmente, sensível pedido da Defensora Pública, o Juiz autorizou a saída do preso e determinou que a SUSEPE providenciasse a escolta necessária para acompanhar o preso.

O que aconteceu?

Nada

Provavelmente por razões burocráticas, a ordem não foi cumprida a tempo e como o enterro não podia esperar, Rodrigo Lopes Fernandes não se despediu da sua companheira.

Num mundo de injustiças permanentes contra os mais fracos, certamente os politicamente corretos não vão dar a mínima importância ao fato.

Afinal, ele era um bandido assassino, bem diferente de nós que não matamos ninguém, pelo menos por enquanto.

Então, para terminar com Zizek, como começamos, o OUTRO, quanto menos nos incomodar, melhor.

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