domingo, 18 de setembro de 2016

CULTURA DA VIOLÊNCIA OU CULTO À ORDEM?

Revista Krinos

Por Waldísio Araújo


De joelhos, o mocinho experimenta a dor e a humilhação. Porém, no catch o Bem acaba triunfando contra um Mal que só momentaneamente ameaça a ordem universal. Fotografia por Pete Danks via Wikimedia.




Os ideais pequeno-burgueses de nossa civilização ocidental sempre almejaram uma sociedade submetida a mecanismos preventivos de controle que permitiriam fundar, regular e restabelecer a ordem social diante de quaisquer irrupções de ameaças, sobretudo as de caráter violento. Daí a parafernália de leis, regulamentações, normatizações, princípios explícitos ou tácitos, juridicos ou folclóricos de ação e contenção, que nos tolhem os movimentos desde o século XVII na medida mesma em que pensamos conquistar liberdades. E o paradoxal nisso, e preocupante para nosso futuro, é que buscam estabelecer a ordem mediante a imposição de um caos de regras — o que mostra que a clássica dualidade entre ordem e caos é, no mínimo, uma falsa antinomia (creio mesmo que todas as dualidades no fundo o sejam, mas esta me parece a fundamental).

Mais surpreendente, contudo, é rencontrarmos nas entrelinhas de uma certa cultura da violência essa ânsia por um mundo ordenado. Se observarmos bem em volta, podemos ver, por exemplo, que os que pedem “soluções” violentas para a violência são os mesmos que pregam a ordem social acima de valores como os da liberdade de pensamento, movimentos e escolhas. Essa aproximação entre ordem e violência tem se expressado comumente como defesa de intervenções militares, linchamentos de pequenos delinquentes, porte irrestrito de armas ou agressões a mulheres, negros e minorias em geral, tudo isso acompanhado de discursos pretensamente racionais de justificativa do uso da força, vista como única garantia da “ordem e do progresso”, como se não vivêssemos num mundo já excessivamente regulamentado.

No artigo que abre sua obra Mitologias, Roland Barthes desvenda o chamadocatch, espetáculo de luta que o público brasileiro conhece sobretudo em sua forma televisiva, o telecatch ou, mais foneticamente, telequete, que, no Brasil,teve seu auge nas décadas de 60 e 70 e no ítalo-argentino-brasileiro Ted Boy Marino sua maior estrela. Trata-se de um espetáculo cênico, antes que uma luta esportiva “de verdade”, cujo objetivo último não é o de demonstrar pela vitória a superioridade de um lutador sobre outro (como no boxe, no judô ou no vale-tudo), mas o de que desempenhem, estes, plenamente o papel que o público deles espera.

Os aficionados do catch veem subirem ao ringue lutadores já conhecidos por seus hábitos, vestimentas, gestos, frases ou grunhidos que, coerentemente com seus corpos (atléticos ou disformes, sadios ou macilentos), desempenham os papéis recorrentes do “mocinho” ou do “vilão”. As regras do pretenso jogo são claras e à primeira vista tão rigorosas quanto as de qualquer luta marcial que proteja a integridade dos participantes ou a proibição de atos baixos ou covardes; contudo, o vilão acaba geralmente por infringi-las arbitrariamente ou à menor distração do juiz. Mas o interessante é que essa “distração” é fingida, embora vista como sincera, e a infração desencadeia uma “justa” reação por parte do mocinho, que no final castiga o vilão de forma exemplar, violenta e humilhante, sob os apupos de um público insuflado por todo um contexto de sons, gestos, palavras e indumentária: signos perceptíveis de um ritual aparentemente cruel.

Contudo não se trata de um público sanguinário e transgressor das normas burguesas do pacifismo e da ordenação cósmica, social ou psicológica. O que se exige tacitamente dos participantes não é uma justiça materializada na vitória do melhor lutador, nem mesmo que haja um vencedor, mas que se torne visível a Justiça que não se vê no mundo cotidiano mas apenas ali, momentaneamente, um fulgor da Eternidade no breve instante: o castigo infligido ao vilão por infringir as regras não significa uma valorização desportivista das próprias regras do catch (que na verdade parecem existir apenas para serem violadas), mas uma afirmação intensa, ainda que inconsciente, de um regramento universal pelo qual toda transgressão geraria, mais cedo ou mais tarde, por uma lei de justiça, a devida punição; a compensação que restauraria a sempre triunfante harmonia do todo.

É verdade que essa noção de uma justiça imanente aparecera por toda parte já na civilização greco-romana, a começar por sua mitologia, mas o que Barthes deixa claro é que, em nossa própria época racionalista, temos nossa mitologia própria, cujos signos se apresentam no dia a dia de nossas mais corriqueiras manifestações culturais — como o futebol, a telenovela, a parada gay, o descarrego de igreja, a exibição sadomasoquista, as aberturas olímpicas, os programas de jurados, as festas de reveillon ou o telequete. Para além dessa interpretação bartheana, contudo, nos interessa aqui o fato de que por trás de muito de nossa cultura aparentemente violenta (que se esguelha ou se estapeia em forma de catch, gangues de rua, videogames, bancadas de deputados ou facções neonazistas) há um comportamento conservador e mesmo moralista, praticamente cristão, ligado ao anseio de manutenção de um mundo tomado no fundo como justo, previsível, razoavelmente estável ou, como diria mais apropriadamente Barthes, inteligível.

Ora, considerando-se que o moralista e conservador apresenta-se em geral, ao menos no mundo moderno, como aquele que arvora o direito de gerir o corpo ou a mente dos outros — coletivos ou individuais (o que é talvez a maior das violências) — devemos concluir que o que se passa diante de nossos olhos é a ocultação da violência antiga por uma outra, ou mesmo sua substituição, também violenta. Em termos de Brasil contemporâneo, isso pode ser vislumbrado no discurso cinicamente “defensor dos valores” do bolsonarismo e das bancadas parlamentares “do boi”, “da bala” e “da Bíblia” — maiores defensores atuais da violência sob a máscara do “combate à violência” e da “defesa da família”, mas empenhados na construção de novo e mentiroso mito: o do “cidadão de bem”.

Sob o aparente caos e balbúrdia de uma sala de catch encontramos talvez o sentido do pensamento nietzscheano de que a sombra de Deus (a moral cristã) permanecerá, após sua morte, “enquanto houver gramática”, ou seja, enquanto os signos de nossas práticas culturais estiverem submetidos a regras de uma sintaxe mais ou menos implícita, inconsciente, invisível e pela qual atribuímos ao mundo e a nós mesmos uma ordem de origem transcendente e (ao menos potencialmente) divina.

Contra os que, de forma muito fácil, veem na cultura contemporânea uma valorização da violência, perguntamo-nos se o que estamos vivendo na atualidade não seria, pelo contrário, uma escalada surda das forças reativas — antes contidas — que ameaçam a civilização ao insinuarem que a desordem (o caos) que nos envolve seria ilusória ou meramente provisória, facilmente conjurável por ritos públicos apenas aparentemente profanos, como o scatch.Contra tais pessoas, bastam dois argumentos, mas elas não os ouvirão: que o real, o homem apenas o conhece mediante signos, formas mais ou menos simbólicas e que, juntas, provavelmente não reconstituem uma verdade única de fundo; e que é sempre a rigidez que ao final provocará a explosão de uma coisa, uma ideia, um sistema ou uma civilização — nunca a maleabilidade. O caos, em seu incessante e inesgotável movimento, corrói com maior voracidade o que lhe tenta a todo custo resistir, e é por isso, como diz o Belchior, “que o novo sempre vem”.



por Waldísio Araújo
www.waldisio.com

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