REVISTA MAQUIAVEL
EU PRECISO PUBLICAR AQUI CADA ARTIGO QUE ENCONTRO SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA DE NOSSO PAÍS. (MF)
A prisão no Congresso de Ibiúna, o pixo de uma ponta à outra de Salvador, a clandestinidade, a luta pela anistia e pelas mulheres
“Posou à polícia com o número 1099 nas mãos. A expressão não acusava medo, tinha seriedade e dureza. Completando 72 anos em outubro, lembra, é claro, a menina presa em Ibiúna
O 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes, conhecido como Congresso de Ibiúna, nome da cidade do interior de São Paulo que o sediou, em 1968, foi o palco de um dos episódios flagrantes do sufocamento imposto pela ditadura civil-militar aos movimentos sociais de então. Com 120 policiais da Força Pública trancando a estrada próxima, à disposição para uma eventual resistência, uma tropa de outros 135, apoiados por mais 80 do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), detiveram mais de 1000 estudantes. Maria Liège Santos Rocha estava entre eles; com 24 anos, era presidente do Diretório Acadêmico da Universidade Federal da Bahia. Posou à polícia com o número 1099 nas mãos. Cabelos pretos e curtos, a franja disposta em diagonal na testa, os óculos de aro grosso. A expressão não acusava medo, tinha seriedade e dureza.
Diz-se que o congresso foi traído por uma compra de pães — a grande quantidade teria chamado a atenção. Os congressistas estavam reunidos ali em condições precárias: dormiam em galpões cercados de lama; deixavam os sapatos fora, entravam descalços e se deitavam em colchonetes. De saída, precisavam procurar os seus pares na enorme pilha. Comiam nas cocheiras, conforme se conseguisse, de pé ou sentado. Tomavam banho na cachoeira. As plenárias eram feitas numa elevação coberta com lona. No dia fatídico, preparavam-se para começar as atividades quando se viram cercados. Foram levados em caminhões do exército ao centro de Ibiúna. Dali partiram ao presídio Tiradentes, na capital do Estado, onde foram ouvidos pela Polícia Federal. Cada qual, por fim, foi transportado a seu estado. Em Salvador, Liège foi interrogada e entregue aos pais.
Um ato de retaliação se seguiria ainda: os participantes do congresso não puderam se matricular no ano seguinte, sob efeito do decreto-lei 477/1969, que versava sobre “infrações disciplinares” de professores, funcionários e estudantes de estabelecimento de ensino público. “Eu continuei frequentando a escola mesmo cassada”, e a elipse implicada no modo como ela conta a história talvez dê o tom da sua personalidade: “A diretora disse que se eu continuasse indo para lá eu ia ser presa em flagrante. Que eu não podia mais ir lá. Aí sei que um dia eu passei lá e fomos para uma manifestação que ia ser na faculdade de Engenharia”. Que eu não podia ir lá, aí sei que um dia eu passei lá. Forçado dizer que funciona como a frase de uma peça de Samuel Beckett? “Não posso continuar, vou continuar”. Essa visita à faculdade arrastaria Liège à clandestinidade.
“Eu me envolvi em todo o movimento estudantil. O que me motivou foi querer melhorar, querer transformar, querer participar, querer contribuir com esse processo. E ter uma reação contra a ditadura militar”
Completando 72 anos em outubro, Liége é secretária nacional de assuntos da mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Encontrei-a em uma tarde de julho na sede do comitê central do partido, no bairro da República, em São Paulo. Em uma sala de decoração sóbria — alguns cactos pequeninos em uma mesa de resto nua, um quadro da União Brasileira de Mulheres (UBM) na parede — , ela narrou os eventos de Ibiúna e outros momentos da sua trajetória de militância: a tortura do ex-marido pelos militares; a viagem, grávida, por vários estados do país, pela Anistia; o engajamento pelos direitos das mulheres. A fala de Liège tem tons da prosódia nordestina. A mão direita se move sacudindo a pulseira em sons agudos. Lembra, é claro, a menina presa em Ibiúna: um corte semelhante, também séria; nota-se sua reserva, sente-se algum ressabio.
Essa trajetória começa na década de 1960, quando ela participou do grupo de jovens Berimbau, em Salvador. Atuavam nas igrejas de Sant’ana e de Santa Clara do Desterro, produzindo debates e eventos de lazer. Depois, compôs um grupo de estudos ligado à Ação Popular — organização de esquerda cristã que, entre outros desenvolvimentos, se desdobrou em união com o PC do B e na criação do PT. Liam os historiadores Nelson Werneck Sodré (1911–1999) e Caio Prado Junior (1907–1990), para estudar a “realidade brasileira”. Ainda mais, “a gente vivia naquele momento de repressão. Tínhamos pessoas de nossa convivência que estavam sendo perseguidos naquele momento de golpe. Você cria um sentimento de resistência ao autoritarismo”.
Apesar de não haver uma influência familiar direta, pode-se pensar que a faísca disso tudo veio do seu pai, Hercilio Sapiencia Rocha. Maria de Lourdes Santos Rocha, a sua mãe, faleceu jovem, em 1964. Funcionário do Banco do Brasil, leitor ávido, “um cara autodidata”, Hercilio marcou os filhos com o hábito da leitura. Não era filiado a nenhum partido, mas “era um cara progressista, que tinha uma visão de mundo democrata”. Dessa criação, passando pelo Berimbau e pela Ação Popular, “quando entrei na faculdade, eu já tinha esse sentimento de participação, de militância. Eu me envolvi em todo o movimento estudantil. O que me motivou foi querer melhorar, querer transformar, querer participar, querer contribuir com esse processo. E ter uma reação contra a ditadura militar”. Era o curso de biblioteconomia da UFBA, do qual seria expulsa tempos depois.
“Eles invadiram a minha casa com o pai de minha filha, Arthur de Paula, e um outro companheiro. Prenderam os dois. Foram barbaramente torturados durante 40 dias”
Salvador amanheceu inteira palavra de ordem. Quando o então governador do estado de Nova York Nelson Rockefeller (1908–1979), neto do criador da petrolífera Standard Oil, veio ao Brasil, em 1969, o movimento estudantil de Salvador planejou uma grande ação: sob o bordão “Fora imperialismo, Abaixo Rockefeller!”, diversas tendências se unificaram e se organizaram de modo a pichar protestos na capital baiana. “Foi emocionante no outro dia: em todos os lugares para que você olhava, tinha uma pichação. Na cidade baixa, na cidade alta, na orla, nas avenidas principais. Foi uma ação conjunta e coletiva de mobilização muito forte”.
No mesmo ano, Liège foi à UFBA para aquela manifestação na faculdade de engenharia. Quando chegaram, viram a Polícia Federal nos arredores e foram informados que o ato mudara. Andando então para a faculdade de arquitetura, ela foi reconhecida pelo diretor da PF, que gritou para os seus correligionários: “Pega ela!”. Ficou presa durante oito dias em uma delegacia feminina. Os companheiros da Ação Popular chegaram à conclusão de que era melhor que ela saísse de cena. Ela permaneceria clandestina de 1970 a 1975, passando dois anos em Fortaleza, no Ceará, e dois anos em Recife, Pernambuco. Foi nesse período que o regime lhe atingiu com mais violência.
Em 1974, nasceu sua primeira filha e ela lhe deu nome de militante: Helenira, em homenagem a Heleniza Rezende (1944–1972), também uma das presas de Ibiúna, integrante da Guerrilha do Araguaia que foi morta a golpes de baioneta. Quando a menina fez dois meses, Liège viajou com ela para ver a família. “Eles invadiram a minha casa com o pai de minha filha, Arthur de Paula, e um outro companheiro. Prenderam os dois. Foram barbaramente torturados durante 40 dias”.
Liège não retornaria mais ao Recife. Desse momento, ocorreu não só o aprendizado da dor, mas também o da solidariedade: “Muitas vezes as pessoas não sabem quem você é, mas convivem, são solidárias. Uma freirinha, acho que ela era americana ou inglesa, quando soube que tinham invadido a nossa casa, saiu com uma marmita de delegacia em delegacia”.
“Cê vai parir essa criança aqui! ”, lhe advertia um companheiro. “Ele ficava com dor na consciência porque eu grávida daquele jeito viajava de ônibus”
Em julho de 1975, voltou à Salvador. Pouco após, Helenira morreu. Só em dezembro desse ano, seu ex-companheiro foi liberto. Já em 1976, Liège conseguiu reabrir o curso de biblioteconomia; chegaria a conclui-lo. Nasce nesse ano sua segunda filha, Lia — o nome era o apelido que Liège usava na clandestinidade. Esparsos meses depois do nascimento, o pai foi preso outra vez. Conta Liège que seus primeiros meses foram todos visitando o pai no presídio Lemos de Brito: “Quando ela fez um ano, meu pai fez uma festinha pra ela. A gente fez um bolo e levou para o presídio”.
A proximidade com essa espécie de drama a levou a se aproximar do Movimento Feminino pela Anistia (MFA), fundado pela advogada Therezinha Zerbini (1928–2015), em São Paulo. Liège fez parte da organização da seção baiana do movimento, e amparou a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia. “A luta pela Anistia era uma questão de sobrevivência para as pessoas que estavam presas. Enfrentar o regime militar, lutar pela democracia, lutar pela liberdade, porque você tinha pessoas queridas, próximas, que estavam presas, que tinham sido torturadas, que tinham sido mortas. Era uma coisa que movia, que organizava, que mobilizava as pessoas. Foi um momento muito forte na nossa vida. A gente tinha uma ação permanente”.
Por causa do movimento pela anistia, Liège viajou pelo Nordeste — Recife; Aracaju, no Sergipe; Maceió, em Alagoas; Natal, no Rio Grande do Norte — visitando os núcleos do CBA, sempre de ônibus, pois não havia recursos para deslocamentos de avião. À época, estava grávida de Maíra, sua terceira filha. “Cê vai parir essa criança aqui nesse CBA!”, lhe advertia um companheiro de luta. “Ele ficava com dor na consciência porque eu grávida daquele jeito viajava de ônibus”. Suas filhas marcariam a vitória do movimento, mas de outras maneiras.
Lia se tornou um símbolo. O hoje juiz Theodomiro Romeiro dos Santos — primeiro condenado à morte na República brasileira, fugido da prisão às vésperas da aprovação da Anistia — tirou uma foto da menina, com um ano, atrás das grades, com “anistia” escrito no chão à sua frente. A fotografia acabou sendo o cartão-postal que os presos enviaram no Natal de 1977, e atingiu a mídia nacional e internacional. Maíra não nasceu na estrada; veio ao mundo em 22 de julho de 1979, um mês antes da promulgação da lei, em 28 de agosto. No ato de comemoração, Liège se colocou com as duas nas escadarias da igreja do Bonfim e ouviu a leitura, por Haroldo Lima, um dos fundadores da Ação Popular, de uma carta que fazia referência à fuga de Theodomiro. Liège sempre ressalta, quando relembra em entrevista essa leitura, a frase: “E viva a liberdade!”.
“Que perspectiva você quer construir? É um projeto pessoal ou é um projeto político? O que move as pessoas? Respeitar as diferenças, superar as diferenças. Isso é o que move”
Pela via da militância e com outros efeitos, Liège chega à mesma convicção que a filósofa Hannah Arendt: política é estado de alerta. A mobilização pela anistia, “foi uma batalha muito grande, muito intensa. Havia esperança e um sentimento de que você tinha que permanentemente estar em alerta para que as coisas mudassem, para que as coisas acontecessem”. Ter vivido essa luta permite que fale sobre as suas lições táticas. Para Liège, o movimento “funcionou porque tinha a mobilização permanente de vários setores — artistas, intelectuais, estudantes, profissionais — e tinha uma articulação internacional — com a Anistia Internacional e a Liga dos Povos. Essa foi uma mobilização muito vibrante, no sentido de ‘nós temos de avançar nessa luta’”.
“Que perspectiva você quer construir para o país? É um projeto pessoal ou é um projeto político? O que move as pessoas? No CBA tinha um objetivo claro. Respeitando as diferenças, superando as diferenças, porque você estava querendo defender a democracia. Isso é o que move. Não se eu penso assim ou assado, mas ter um objetivo ali que está colocado na mesa, e se você não unir forças você não consegue. Toda construção de unidade é difícil porque você tem de abrir mão de determinadas coisas em prol de algo que é comum a todos. Porque se você quer pegar aquele saco ali, você tem de ver se você vai precisar de ajuda ou se você vai levar sozinho. Você tem de ver a correlação de forças que você tem naquele momento. Para derrotar aquele inimigo você tem de ver com que forças o inimigo conta, ver que aliados você tem”.
Da esquerda para a direita, Liège Rocha é a quarta nessa foto do Grande Encontro da Mulher Baiana, realizado na Biblioteca Central dos Barris, em 1982 | imagem: Alice Portugal (com o microfone), no Flickr
Ao longo da vida, porém marcadamente a partir dos anos 1980, com o término do ativismo pela anistia, Liège se dedicou à luta do feminismo. Fundou o Comitê Pró-Organização do Movimento Feminista na Bahia no início da década e em 1982 participou da organização do Grande Encontro da Mulher Baiana, na Biblioteca Central dos Barris. Ela conta que, na reabertura, “as mulheres no Brasil inteiro jogaram um papel importantíssimo. A constituição de 1988 foi considerada uma das mais avançadas do mundo na questão dos direitos da mulher”. Ela ressalta ainda as lutas por direitos sociais — “salário igual para trabalho igual” e creche universal dos 0 aos 6 anos. “Pouca gente sabe que, segundo a Constituição, a creche é um direito dos trabalhadores e trabalhadores. Quem lutou por isso? As mulheres. Os homens nem sabem disso, que podem exigir a creche no local de trabalho”.
“Essa é uma questão que você incorpora e não sai mais de você”, afirma Liège, “[August] Bebel [um dos fundadores do Partido Social-Democrata alemão], fala que a emancipação das mulheres caminha pari passu com a emancipação humana — e é verdade”. Ainda mais, “as mulheres hoje são protagonistas da história. Estiveram muito tempo na invisibilidade — nos consideravam cidadãos de segunda categoria. E as mulheres hoje são atrizes principais nesse processo de transformação”.
Ao longo da vida, porém marcadamente a partir dos anos 1980, Liège se dedicou à luta do feminismo
“Essa luta pelo direito das mulheres, pelas transformações, pela mudança de visão de mundo, para superar discriminações, é um negócio que move você no dia a dia”. Liège continua em luta. “Outro dia eu estava no ônibus, uma mulher sentou atrás de mim dizendo que esse negócio de Dilma e Lula conseguir que preto e pobre vá para universidade, o nível da universidade caiu. Eu falei: como, minha senhora? Os comentários que você ouve… você tem que estar o tempo todo rebatendo. Minha filha diz: “Minha mãe, você interage demais, qualquer dia desses você apanha na rua”, mas tem coisas que você não pode ficar com cara de paisagem, com cara de pastel”.
Memórias é uma série da Maquiavel dedicada à histórias em que vida e política, vivência e militância, se entrelaçam.
Duanne Ribeiro é membro da equipe editorial da Maquiavel. Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília, mestrando em ciência da informação, pós-graduado em gestão cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e graduado em filosofia, todos pela USP. É analista de comunicação para o Itaú Cultural, editor daCapitu e colunista do Digestivo Cultural.
EU PRECISO PUBLICAR AQUI CADA ARTIGO QUE ENCONTRO SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA DE NOSSO PAÍS. (MF)
A prisão no Congresso de Ibiúna, o pixo de uma ponta à outra de Salvador, a clandestinidade, a luta pela anistia e pelas mulheres
“Posou à polícia com o número 1099 nas mãos. A expressão não acusava medo, tinha seriedade e dureza. Completando 72 anos em outubro, lembra, é claro, a menina presa em Ibiúna
O 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes, conhecido como Congresso de Ibiúna, nome da cidade do interior de São Paulo que o sediou, em 1968, foi o palco de um dos episódios flagrantes do sufocamento imposto pela ditadura civil-militar aos movimentos sociais de então. Com 120 policiais da Força Pública trancando a estrada próxima, à disposição para uma eventual resistência, uma tropa de outros 135, apoiados por mais 80 do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), detiveram mais de 1000 estudantes. Maria Liège Santos Rocha estava entre eles; com 24 anos, era presidente do Diretório Acadêmico da Universidade Federal da Bahia. Posou à polícia com o número 1099 nas mãos. Cabelos pretos e curtos, a franja disposta em diagonal na testa, os óculos de aro grosso. A expressão não acusava medo, tinha seriedade e dureza.
Diz-se que o congresso foi traído por uma compra de pães — a grande quantidade teria chamado a atenção. Os congressistas estavam reunidos ali em condições precárias: dormiam em galpões cercados de lama; deixavam os sapatos fora, entravam descalços e se deitavam em colchonetes. De saída, precisavam procurar os seus pares na enorme pilha. Comiam nas cocheiras, conforme se conseguisse, de pé ou sentado. Tomavam banho na cachoeira. As plenárias eram feitas numa elevação coberta com lona. No dia fatídico, preparavam-se para começar as atividades quando se viram cercados. Foram levados em caminhões do exército ao centro de Ibiúna. Dali partiram ao presídio Tiradentes, na capital do Estado, onde foram ouvidos pela Polícia Federal. Cada qual, por fim, foi transportado a seu estado. Em Salvador, Liège foi interrogada e entregue aos pais.
Um ato de retaliação se seguiria ainda: os participantes do congresso não puderam se matricular no ano seguinte, sob efeito do decreto-lei 477/1969, que versava sobre “infrações disciplinares” de professores, funcionários e estudantes de estabelecimento de ensino público. “Eu continuei frequentando a escola mesmo cassada”, e a elipse implicada no modo como ela conta a história talvez dê o tom da sua personalidade: “A diretora disse que se eu continuasse indo para lá eu ia ser presa em flagrante. Que eu não podia mais ir lá. Aí sei que um dia eu passei lá e fomos para uma manifestação que ia ser na faculdade de Engenharia”. Que eu não podia ir lá, aí sei que um dia eu passei lá. Forçado dizer que funciona como a frase de uma peça de Samuel Beckett? “Não posso continuar, vou continuar”. Essa visita à faculdade arrastaria Liège à clandestinidade.
“Eu me envolvi em todo o movimento estudantil. O que me motivou foi querer melhorar, querer transformar, querer participar, querer contribuir com esse processo. E ter uma reação contra a ditadura militar”
Completando 72 anos em outubro, Liége é secretária nacional de assuntos da mulher do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Encontrei-a em uma tarde de julho na sede do comitê central do partido, no bairro da República, em São Paulo. Em uma sala de decoração sóbria — alguns cactos pequeninos em uma mesa de resto nua, um quadro da União Brasileira de Mulheres (UBM) na parede — , ela narrou os eventos de Ibiúna e outros momentos da sua trajetória de militância: a tortura do ex-marido pelos militares; a viagem, grávida, por vários estados do país, pela Anistia; o engajamento pelos direitos das mulheres. A fala de Liège tem tons da prosódia nordestina. A mão direita se move sacudindo a pulseira em sons agudos. Lembra, é claro, a menina presa em Ibiúna: um corte semelhante, também séria; nota-se sua reserva, sente-se algum ressabio.
Essa trajetória começa na década de 1960, quando ela participou do grupo de jovens Berimbau, em Salvador. Atuavam nas igrejas de Sant’ana e de Santa Clara do Desterro, produzindo debates e eventos de lazer. Depois, compôs um grupo de estudos ligado à Ação Popular — organização de esquerda cristã que, entre outros desenvolvimentos, se desdobrou em união com o PC do B e na criação do PT. Liam os historiadores Nelson Werneck Sodré (1911–1999) e Caio Prado Junior (1907–1990), para estudar a “realidade brasileira”. Ainda mais, “a gente vivia naquele momento de repressão. Tínhamos pessoas de nossa convivência que estavam sendo perseguidos naquele momento de golpe. Você cria um sentimento de resistência ao autoritarismo”.
Apesar de não haver uma influência familiar direta, pode-se pensar que a faísca disso tudo veio do seu pai, Hercilio Sapiencia Rocha. Maria de Lourdes Santos Rocha, a sua mãe, faleceu jovem, em 1964. Funcionário do Banco do Brasil, leitor ávido, “um cara autodidata”, Hercilio marcou os filhos com o hábito da leitura. Não era filiado a nenhum partido, mas “era um cara progressista, que tinha uma visão de mundo democrata”. Dessa criação, passando pelo Berimbau e pela Ação Popular, “quando entrei na faculdade, eu já tinha esse sentimento de participação, de militância. Eu me envolvi em todo o movimento estudantil. O que me motivou foi querer melhorar, querer transformar, querer participar, querer contribuir com esse processo. E ter uma reação contra a ditadura militar”. Era o curso de biblioteconomia da UFBA, do qual seria expulsa tempos depois.
“Eles invadiram a minha casa com o pai de minha filha, Arthur de Paula, e um outro companheiro. Prenderam os dois. Foram barbaramente torturados durante 40 dias”
Salvador amanheceu inteira palavra de ordem. Quando o então governador do estado de Nova York Nelson Rockefeller (1908–1979), neto do criador da petrolífera Standard Oil, veio ao Brasil, em 1969, o movimento estudantil de Salvador planejou uma grande ação: sob o bordão “Fora imperialismo, Abaixo Rockefeller!”, diversas tendências se unificaram e se organizaram de modo a pichar protestos na capital baiana. “Foi emocionante no outro dia: em todos os lugares para que você olhava, tinha uma pichação. Na cidade baixa, na cidade alta, na orla, nas avenidas principais. Foi uma ação conjunta e coletiva de mobilização muito forte”.
No mesmo ano, Liège foi à UFBA para aquela manifestação na faculdade de engenharia. Quando chegaram, viram a Polícia Federal nos arredores e foram informados que o ato mudara. Andando então para a faculdade de arquitetura, ela foi reconhecida pelo diretor da PF, que gritou para os seus correligionários: “Pega ela!”. Ficou presa durante oito dias em uma delegacia feminina. Os companheiros da Ação Popular chegaram à conclusão de que era melhor que ela saísse de cena. Ela permaneceria clandestina de 1970 a 1975, passando dois anos em Fortaleza, no Ceará, e dois anos em Recife, Pernambuco. Foi nesse período que o regime lhe atingiu com mais violência.
Em 1974, nasceu sua primeira filha e ela lhe deu nome de militante: Helenira, em homenagem a Heleniza Rezende (1944–1972), também uma das presas de Ibiúna, integrante da Guerrilha do Araguaia que foi morta a golpes de baioneta. Quando a menina fez dois meses, Liège viajou com ela para ver a família. “Eles invadiram a minha casa com o pai de minha filha, Arthur de Paula, e um outro companheiro. Prenderam os dois. Foram barbaramente torturados durante 40 dias”.
Liège não retornaria mais ao Recife. Desse momento, ocorreu não só o aprendizado da dor, mas também o da solidariedade: “Muitas vezes as pessoas não sabem quem você é, mas convivem, são solidárias. Uma freirinha, acho que ela era americana ou inglesa, quando soube que tinham invadido a nossa casa, saiu com uma marmita de delegacia em delegacia”.
“Cê vai parir essa criança aqui! ”, lhe advertia um companheiro. “Ele ficava com dor na consciência porque eu grávida daquele jeito viajava de ônibus”
Em julho de 1975, voltou à Salvador. Pouco após, Helenira morreu. Só em dezembro desse ano, seu ex-companheiro foi liberto. Já em 1976, Liège conseguiu reabrir o curso de biblioteconomia; chegaria a conclui-lo. Nasce nesse ano sua segunda filha, Lia — o nome era o apelido que Liège usava na clandestinidade. Esparsos meses depois do nascimento, o pai foi preso outra vez. Conta Liège que seus primeiros meses foram todos visitando o pai no presídio Lemos de Brito: “Quando ela fez um ano, meu pai fez uma festinha pra ela. A gente fez um bolo e levou para o presídio”.
A proximidade com essa espécie de drama a levou a se aproximar do Movimento Feminino pela Anistia (MFA), fundado pela advogada Therezinha Zerbini (1928–2015), em São Paulo. Liège fez parte da organização da seção baiana do movimento, e amparou a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia. “A luta pela Anistia era uma questão de sobrevivência para as pessoas que estavam presas. Enfrentar o regime militar, lutar pela democracia, lutar pela liberdade, porque você tinha pessoas queridas, próximas, que estavam presas, que tinham sido torturadas, que tinham sido mortas. Era uma coisa que movia, que organizava, que mobilizava as pessoas. Foi um momento muito forte na nossa vida. A gente tinha uma ação permanente”.
Por causa do movimento pela anistia, Liège viajou pelo Nordeste — Recife; Aracaju, no Sergipe; Maceió, em Alagoas; Natal, no Rio Grande do Norte — visitando os núcleos do CBA, sempre de ônibus, pois não havia recursos para deslocamentos de avião. À época, estava grávida de Maíra, sua terceira filha. “Cê vai parir essa criança aqui nesse CBA!”, lhe advertia um companheiro de luta. “Ele ficava com dor na consciência porque eu grávida daquele jeito viajava de ônibus”. Suas filhas marcariam a vitória do movimento, mas de outras maneiras.
Lia se tornou um símbolo. O hoje juiz Theodomiro Romeiro dos Santos — primeiro condenado à morte na República brasileira, fugido da prisão às vésperas da aprovação da Anistia — tirou uma foto da menina, com um ano, atrás das grades, com “anistia” escrito no chão à sua frente. A fotografia acabou sendo o cartão-postal que os presos enviaram no Natal de 1977, e atingiu a mídia nacional e internacional. Maíra não nasceu na estrada; veio ao mundo em 22 de julho de 1979, um mês antes da promulgação da lei, em 28 de agosto. No ato de comemoração, Liège se colocou com as duas nas escadarias da igreja do Bonfim e ouviu a leitura, por Haroldo Lima, um dos fundadores da Ação Popular, de uma carta que fazia referência à fuga de Theodomiro. Liège sempre ressalta, quando relembra em entrevista essa leitura, a frase: “E viva a liberdade!”.
“Que perspectiva você quer construir? É um projeto pessoal ou é um projeto político? O que move as pessoas? Respeitar as diferenças, superar as diferenças. Isso é o que move”
Pela via da militância e com outros efeitos, Liège chega à mesma convicção que a filósofa Hannah Arendt: política é estado de alerta. A mobilização pela anistia, “foi uma batalha muito grande, muito intensa. Havia esperança e um sentimento de que você tinha que permanentemente estar em alerta para que as coisas mudassem, para que as coisas acontecessem”. Ter vivido essa luta permite que fale sobre as suas lições táticas. Para Liège, o movimento “funcionou porque tinha a mobilização permanente de vários setores — artistas, intelectuais, estudantes, profissionais — e tinha uma articulação internacional — com a Anistia Internacional e a Liga dos Povos. Essa foi uma mobilização muito vibrante, no sentido de ‘nós temos de avançar nessa luta’”.
“Que perspectiva você quer construir para o país? É um projeto pessoal ou é um projeto político? O que move as pessoas? No CBA tinha um objetivo claro. Respeitando as diferenças, superando as diferenças, porque você estava querendo defender a democracia. Isso é o que move. Não se eu penso assim ou assado, mas ter um objetivo ali que está colocado na mesa, e se você não unir forças você não consegue. Toda construção de unidade é difícil porque você tem de abrir mão de determinadas coisas em prol de algo que é comum a todos. Porque se você quer pegar aquele saco ali, você tem de ver se você vai precisar de ajuda ou se você vai levar sozinho. Você tem de ver a correlação de forças que você tem naquele momento. Para derrotar aquele inimigo você tem de ver com que forças o inimigo conta, ver que aliados você tem”.
Da esquerda para a direita, Liège Rocha é a quarta nessa foto do Grande Encontro da Mulher Baiana, realizado na Biblioteca Central dos Barris, em 1982 | imagem: Alice Portugal (com o microfone), no Flickr
Ao longo da vida, porém marcadamente a partir dos anos 1980, com o término do ativismo pela anistia, Liège se dedicou à luta do feminismo. Fundou o Comitê Pró-Organização do Movimento Feminista na Bahia no início da década e em 1982 participou da organização do Grande Encontro da Mulher Baiana, na Biblioteca Central dos Barris. Ela conta que, na reabertura, “as mulheres no Brasil inteiro jogaram um papel importantíssimo. A constituição de 1988 foi considerada uma das mais avançadas do mundo na questão dos direitos da mulher”. Ela ressalta ainda as lutas por direitos sociais — “salário igual para trabalho igual” e creche universal dos 0 aos 6 anos. “Pouca gente sabe que, segundo a Constituição, a creche é um direito dos trabalhadores e trabalhadores. Quem lutou por isso? As mulheres. Os homens nem sabem disso, que podem exigir a creche no local de trabalho”.
“Essa é uma questão que você incorpora e não sai mais de você”, afirma Liège, “[August] Bebel [um dos fundadores do Partido Social-Democrata alemão], fala que a emancipação das mulheres caminha pari passu com a emancipação humana — e é verdade”. Ainda mais, “as mulheres hoje são protagonistas da história. Estiveram muito tempo na invisibilidade — nos consideravam cidadãos de segunda categoria. E as mulheres hoje são atrizes principais nesse processo de transformação”.
Ao longo da vida, porém marcadamente a partir dos anos 1980, Liège se dedicou à luta do feminismo
“Essa luta pelo direito das mulheres, pelas transformações, pela mudança de visão de mundo, para superar discriminações, é um negócio que move você no dia a dia”. Liège continua em luta. “Outro dia eu estava no ônibus, uma mulher sentou atrás de mim dizendo que esse negócio de Dilma e Lula conseguir que preto e pobre vá para universidade, o nível da universidade caiu. Eu falei: como, minha senhora? Os comentários que você ouve… você tem que estar o tempo todo rebatendo. Minha filha diz: “Minha mãe, você interage demais, qualquer dia desses você apanha na rua”, mas tem coisas que você não pode ficar com cara de paisagem, com cara de pastel”.
Memórias é uma série da Maquiavel dedicada à histórias em que vida e política, vivência e militância, se entrelaçam.
Duanne Ribeiro é membro da equipe editorial da Maquiavel. Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília, mestrando em ciência da informação, pós-graduado em gestão cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e graduado em filosofia, todos pela USP. É analista de comunicação para o Itaú Cultural, editor daCapitu e colunista do Digestivo Cultural.
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