O psiquiatra, que recentemente lançou um livro sobre divórcios litigiosos, diz que muitas separações são precipitadas e defende a guarda partilhada quando os pais mantêm uma relação cordial
25 Abril 2015 • Ana Catarina André
O Tribunal é Réu é o título do seu último livro. O tribunal é o principal responsável pelos problemas associados ao divórcio?
Estamos a falar de divórcios litigiosos em que há um conflito entre o homem e a mulher. A tese deste livro é que o tribunal aumenta o conflito do casal por duas razões: em primeiro lugar, o sistema favorece uma lógica de vencedor e vencido e isso é evidente desde o primeiro requerimento, desde a primeira alegação; depois o tribunal demora muito tempo a tomar decisões relativas à guarda das crianças - quando há conflito entre os pais o processo prolonga-se em média por dois anos, mas pode demorar mais anos. Isto na vida de uma criança é muito tempo: uma criança de três anos é completamente diferente de uma de cinco e uma de cinco de outra de sete. Muitas vezes, a decisão vem num momento que já não corresponde ao que a criança está a viver naquela altura. Por outro lado, este é um problema fundamental do tribunal: a avaliação não é bem-feita.
Como assim?
O tribunal não tem capacidade para fazer uma avaliação da situação da família porque não tem recursos de assessoria técnica isenta e os juízes, no meu entender, não têm formação específica sobre desenvolvimento infantil e sobre as novas famílias. Estas razões fazem com que o tribunal aumente o conflito do casal, demore muito tempo a resolver a situação e sobretudo esqueça a criança. Quando falo com pessoas que passaram por processos destes, verifico que a criança é esquecida. É esquecida, muitas vezes, pelo pai ou pela mãe que estão em conflito e querem ganhar o processo e pelo próprio tribunal que fica emaranhado no seu funcionamento e perde de vista a criança.
A resolução deste tipo de casos não devia, então, ser uma decisão jurídica?
Desejo que se façam muitas prevenções das crises do casamento. Pode ser através da terapia de casal, de um médico de família com formação na área, de um psicólogo ou até de um amigo. Um casal não deve recorrer logo ao divórcio perante uma crise. Deve deter-se e tentar resolver a crise entre si. Em termos do tribunal é muito importante que, a certa altura, o juiz possa fazer parar o processo e enviar o casal para mediação familiar ou para uma intervenção terapêutica. Isto é pouco usado em Portugal. É muito importante que o juiz tenha essa percepção: manter o processo em tribunal com alegações e contra-alegações aumenta o conflito. E o pior que pode acontecer à criança é verificar que os pais continuam em desacordo. Os estudos demonstram que a principal consequência negativa do divórcio é a manutenção da conflitualidade entre os pais. Como se mantém durante vários anos – e o tribunal deve ser, na minha opinião, o réu desse processo – a criança fica lesada, não só pela perda de um dos progenitores, mas também pelo conflito que se mantém entre ambos.
É por isso que recorre a metáforas kafkianas para abordar este tema?
Já não lia Kafka há muitos anos. Fui rever O Castelo e O Processo e achei que era extremamente actual e que dava esta ideia. Em tribunal as pessoas estão sempre perdidas. Ninguém indica as coisas. As testemunhas ficam sozinhas numa sala. Os adiamentos são frequentes. Na minha opinião, os juízes têm muito pouco respeito pela vida das pessoas. Em situações de divórcio é um mundo muito hostil para o pai e para a mãe e, quando a criança é chamada, é preciso tomar muitas precauções. O título O Tribunal é o Réu é um grito de alerta para modificar o funcionamento dos tribunais de família, até por uma razão que ainda não falei: muitas vezes as decisões são tomadas e depois não são cumpridas.
O divórcio tem sempre impacto na vida da criança. Esse impacto é menor se os pais explicarem bem à criança a separação e disseram à criança como é que vai ver um e outro.
E nos casos litigiosos?
Quando há conflito, os pais começam logo por não explicar bem o que se passa. Se o assunto cai em tribunal, a criança percebe que há qualquer coisa que não entende completamente. Sou director do serviço de psiquiatria do Hospital Santa Maria e recebo vários pedidos de juízes para designar um psicólogo que acompanhe uma criança que vai ser ouvida em tribunal. Isto deveria ser uma prática corrente: ter um técnico que ajuda a criança no diálogo com o juiz e com o procurador. Ontem estive em Coimbra numa sessão sobre estes temas e um pai contou-me que tinha sido acusado de violência doméstica e abuso sexual em relação à filha de 9 anos. O juiz encarregue do caso decidiu ouvir a menina e fez isso com muito tacto, na presença de um psicólogo. Acabou por perceber que se tratava de alienação parental. Devido à guerra entre os progenitores, a criança foi puxada para um dos pais, neste caso a mãe, e influenciada negativamente em relação ao outro.
Os tribunais contribuem para a alienação parental?
Completamente.
O que é que está na raiz desta alienação, mais do que isso: o que está na origem desta guerra entre cônjuges?
Não lhe sei responder a isso. Essa é a pergunta que mais me inquieta. Sou psiquiatra há muitos anos e o que me impressiona mais é a raiva entre os casais. Anos depois de uma separação, mantêm-se sentimentos negativos de uma profundidade enorme. No livro, conto que fiz estágios em muitos sítios (prisões, etc., etc.) e o que me impressionou mais foi o tempo que passei num tribunal de família, a violência que havia, as coisas que a mulher e o homem diziam um ao outro. Muitas vezes os casais que se odeiam muito, já se amaram muito. Há situações muito interessantes de casais que estão em conflito e que, de vez em quando, se encontram para terem relações sexuais e depois continuam em conflito. Lembro-me de um menino de 6 anos que ia passar o fim-de-semana com o pai e depois voltava para a mãe. A roupa dele aparecia rasgada e a mãe estava permanentemente a recorrer ao tribunal para fazer queixa disso. Veio a provar-se, mais tarde, que era ela que cortava a roupa com uma tesoura. O que leva uma pessoa a fazer isso? Uma raiva profunda. Quando estudei esse caso, verifiquei que era um casal que no início teve uma paixão enorme, uma entrega total e depois rompeu. Ele foi infiel.
Muitas vezes as pessoas vão viver juntas sem perceberem se têm capacidade para isso.
DANIEL SAMPAIO
Esta raiva pode resultar de uma relação pouco sólida?
Normalmente o conflito começa por ser um conflito de comunicação. Há casais que se afastam, outros que têm uma relação violenta. Tudo isto levou ao divórcio. Aquilo que caracteriza a relação é justamente uma ambivalência.
Defende que hoje há muitas separações pouco reflectidas. E cito-o: "uma separação sem este percurso de luta e de tentativa de crescimento emocional é uma decisão pouco corajosa e constitui o ponto de partida para um divórcio doloroso e com muitas repercussões negativas para os filhos".
Muitas vezes as pessoas vão viver juntas sem perceberem se têm capacidade para isso. Uma coisa é namorar, outra coisa é o quotidiano. É preciso ter um reconhecimento grande do que se está a passar com o outro. Se eu sou casado, tenho de pensar no que se está a passar com a minha mulher. Tenho de pensar em mim, mas sobretudo nela. Tenho de fazer um movimento para dentro de mim, mas também para dentro dela. Isto é um bocadinho contrário à vida de hoje: muitas horas de trabalho, problemas de emprego, questões com os filhos e com as famílias do outro. Há uma série de questões que fazem com que a observação do outro seja adiada. É então que o casal começa a entrar em conflito ou a afastar-se.
As questões que advêm hoje do divórcio são muito diferentes de há 20 anos?
Sim. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, a relação entre o casal ficou mais igualitária e isso implica uma partilha das tarefas domésticas, da educação dos filhos. Hoje, a vida dos casais é muito exigente.
Isso pode explicar, em parte, o aumento do número de divórcios?
Sem dúvida que sim. Até à segunda metade do século XX, a mulher aceitava tudo. Com a emancipação, a mulher passou a contestar esse papel tradicional. E há uma grande exigência: os dois querem ser felizes. O que é ser feliz? É estarem bem um com o outro, entenderem-se, terem uma boa realização sexual, terem disponibilidade para os filhos, terem amigos. A vida dos casais com filhos pequenos é muito difícil, têm de estar atentos um ao outro e, de facto, não há tempo. As questões da sexualidade são muito interessantes. Os homens acham que se tiverem uma relação sexual fica tudo resolvido. As mulheres não são assim. Têm uma exigência maior de entrega e carinho. Os homens às vezes dizem-me: já não me realizo sexualmente com ela. As mulheres não dizem isso. Dizem: eu já não consigo estar disponivelmente sexualmente, porque estou cansada. Tudo isto interfere na comunicação.
Os cônjuges são mais egoístas hoje em dia?
As pessoas são muito individualistas, procuram o seu bem-estar, também porque trabalham muito. Muita gente vai para casa responder a emails do serviço. Isto faz com que as pessoas fiquem objectivamente cansadas.
Quais são hoje as particularidades do divórcio e das suas implicações na vida das crianças?
Actualmente as crianças não se sentem estranhas por ter pais separados. O mais importante é a maneira como o pós-divórcio ocorreu e é aí que o tribunal é réu, porque prolonga o conflito. Muitas vezes as crianças percebem que são uma arma de arremesso entre o pai e a mãe. Deixa de dormir, de comer e de ter rendimento na escola. Isso é que nós temos de evitar.
Algumas crianças ficam com aversão a relacionamentos…
É uma consequência a longo prazo. Alguns estudos mostram isso.
Há também cada vez mais crianças que têm de lidar com os namorados dos pais e com uma terceira família.
As crianças têm uma boa capacidade de adaptação, mas é preciso que os adultos percebam que essa adaptação não é fácil e que não pode ser forçada. Muitas vezes, depois de uma ruptura afectiva, as pessoas precipitam-se numa nova relação e quando embarcam nesse relacionamento, no fundo, ainda estão a fazer o luto da relação anterior. A relação só deve ser dada a conhecer à criança quando é estável.
A guarda partilhada é a melhor opção para as crianças?
É preciso haver um diálogo mínimo entre o pai e a mãe para a guarda partilhada funcionar. Depois as duas casas não devem ser muito distantes. Deve haver muito cuidado para que a criança tenha dois locais que, de facto, sinta como seus. Se tem um quarto em casa da mãe, deve ter um em casa do pai. Deve ter os objectos fundamentais nos dois locais. Quando o diálogo entre o casal é razoável e centrado na criança, sou a favor da guarda partilhada mesmo nos casos de crianças relativamente pequenas. Há quem diga que não se adoptar com menores de 3 anos, mas não tenho essa opinião. Depende da avaliação do tribunal e da existência de competências de um lado e de outro. Hoje em dia há homens com grande capacidade para tomar conta das crianças. Houve uma mudança enorme nos últimos 20 anos. Há pais jovens que têm uma enorme competência para cuidar de crianças pequenas. Evidentemente que no primeiro ano de vida, em que a criança está muito dependente da mãe, não fará muito sentido, mas aos 2/ 3 anos não vejo nenhum inconveniente.
Os avós estão a perder relevância na vida das crianças?
Acho que não podem perder importância. Os avós conferem um papel de estabilidade à criança. No meio da confusão da ruptura dos pais, do aparecimento do namorado do pai ou da mãe, os avós são muitas vezes um porto seguro para as crianças e adolescentes. Portanto o papel dos avós deve ser valorizado – agora já há jurisprudência sobre isso e os avós têm direito a visitas em situações de divórcio. Na guarda partilhada não devem perder importância, porque podem ser um apoio.
As crianças e os adolescentes são mais ouvidos actualmente
AUTOR PROFISSÃO
A actual diversidade familiar é inevitável no futuro ou poderemos voltar a ter maioritariamente famílias tradicionais?
Não e nem acho isso uma coisa negativa. Conheço padrastos e madrastas que funcionam muitíssimo bem. No outro dia, fui a um clube desportivo com um dos meus netos e ele disse-me uma coisa espantosa sobre um colega: "não sei se aquela é a madrasta ou a mãe dele". Eu achei aquilo extraordinário. À primeira vista, a relação que as duas senhoras estabeleciam com o menino era semelhante. É assim é que deve ser. Há casos positivos.
As crianças são cada vez mais esquecidas?
Não, acho que as crianças e os adolescentes são mais ouvidos actualmente. Há 35/40 anos, quando me comecei a interessar por estas temáticas, os meus mestres diziam-me para trabalhar com adolescentes porque ninguém se interessava por esta área. Hoje, os meus colegas mais novos riem-se quando lhes falo nisso. As crianças e os adolescentes têm mais voz. Isso é uma evolução indiscutível. O que acho é que as crianças não são protegidas devidamente, como já expliquei
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