quarta-feira, 22 de abril de 2015

MARINA ABRAMOVIC: "QUANTO PIOR SUA INFÂNCIA, MELHOR SUA ARTE'


A maior artista performática do mundo usa há 40 anos o seu corpo como forma de expressão máxima. Já deixou sugarem seu sangue e fez um corte na barriga em formato de estrela. Essa é sua arte. Aqui, ela fala da vida, do amor e da pesquisa sobre espiritualidade que inicia este mês no Brasil


Mariane Morisawa


Anne-Christine Poujoulat/ AFP



cortesia Luciana Brito Galeria


Marina Abramovic frequentemente se declara a “avó da arte performática”. Só que, de avó, ela não tem nada. Aos 65 anos (e com pele de 40), costuma vestir-se de preto e usar os longos cabelos negros soltos. Mas, desta vez, aparece diferente: de camisa creme e calça laranja, com os fios presos num coque, esconde-se do sol numa villa do Lido, em Veneza, embaixo de uma pequena árvore. Hiperativa, foi à cidade­ italiana por duas razões: participar do júri do festival de cinema e divulgar o documentário LIFE AND DEATH OF MARINA ABRAMOVIC, que será exibido este mês no Festival do Rio. Depois disso, a artista volta ao Brasil em dezembro para dar continuidade a pesquisas sobre experiências espirituais para uma exposição encomendada para a Copa do Mundo de 2014.
LIFE AND DEATH começa com a encenação de seu funeral e passa pelos momentos mais importantes da biografia da artista, principalmente a infância complicada­. Nascida em Belgrado, Sérvia, Marina é filha de Vojo Abramovic e Danica Rosi, comunistas que, durante a Segunda­ Guerra na ex-Iugoslávia, lutaram contra os nazistas. Em casa, a disciplina era militar: a mãe criou Marina e o irmão Velimir à base de tapas na cara e toques de recolher às 22h. Só em 1976, quando já tinha 29 anos, a artista se libertou ao mudar para Amsterdã, onde conheceu o artista plástico Ulay, seu parceiro de performances e com quem esteve casada por 12 anos. Os dois produziram grandes obras juntos, até se separarem – de maneira performática, claro –, na Muralha da China, em 1988, caminhando 2.500 quilômetros, partindo de lados opostos e encontrando-se no centro para dizer adeus.
O corpo sempre foi a tela em branco de Marina. Sua expertise é extrapolar os limites mentais e físicos do ser humano. Chegou a cortar-se com uma lâmina durante uma apresentação, desenhando uma estrela de Davi na própria barriga. Escovou o cabelo com um pente de metal até fazer seu couro cabeludo sangrar e, durante seis horas, deixou que o público­ fizesse com ela o que bem entendesse. O resultado: uma cicatriz no peito feita por um dos espectadores que, depois de cortá-la, sugou seu sangue. Nada, porém, foi tão difícil para a artista quanto sentar-se durante três meses, sete horas por dia, numa cadeira de madeira. Isso aconteceu na mostra The Artist is Present, que, em 2010, levou um recorde de 850 mil pessoas ao Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. Anônimos e famosos como Sharon Stone a James Franco entraram na fila para sentar-se à frente de Marina e caíram em lágrimas. Nada mais razoável que dar ela o título de “a grande dama da arte performática”.
"Minha mãe nunca me beijou na vida. Ela
arruinou minha estrutura emocional”
Marie Claire Você declarou que interpretar sua mãe em Life and Death foi a coisa mais difícil que já fez. Por quê? Marina Abramovic O diretor (Bob Wilson) conseguiu definir minha mãe em alguns gestos: a postura, o dedo em riste para ordenar algo e os tapas na cara­. Era exatamente assim. Minha infância foi difícil, muito controlada. Um exemplo: minha mãe ia ao meu quarto, para ver se minha cama estava bagunçada, enquanto eu estava dormindo. E me acordava para arrumar se estivesse. Hoje, se vou a um hotel, os funcionários acham que não durmo lá, porque a cama, de manhã, está em perfeito estado. Ela não me aceitava como eu era. Só quando ela morreu (em 2007) me senti liberada. Li seus diários e fiquei deprimida. Se tivesse lido quando ela era viva, a teria compreendido melhor. Ela era incrivelmente ferida e solitária. Para se defender, construiu essa persona gelada. Em toda minha vida, nunca me beijou. Uma vez perguntei por quê e ela ficou surpresa com a pergunta. Disse que era para não me estragar. Não entendia que fazia exatamente o oposto: arruinou minha estrutura emocional para sempre (RISOS). Por isso,­ reviver todas aquelas lembranças de infância e compartilhá-las com o mundo foi doloroso. E, ao mesmo tempo, libertador. É melhor que qualquer terapia.
MC O que sua mãe achava de sua arte? MA Quando fui limpar a casa dela, depois que ela morreu, achei todos os livros sobre o meu trabalho. Ela arrancava as páginas com as fotos em que eu aparecia nua. Sobravam poucas folhas, só as que poderia mostrar para os vizinhos. Ela era muito conservadora. Eu era uma amea­ça. Quando comecei as performances, meus pais se perguntaram o que estava acontecendo. Cortar uma estrela na barriga já era difícil naquela época. Mas me deu coragem. Depois de me mudar para Amsterdã, não sabia o que fazer lá, tudo era livre. Ninguém se importava se eu estava nua ou se cortava uma estrela na barriga. Tive que criar novas regras para poder quebrar.
MC Sua infância foi preponderante na arte? MA Como eu digo: “Quanto pior sua infância, melhor sua arte”.
"Queria ter sido capaz de ser feliz
no amor. Mas não fui”
MC Como foi viver seu funeral em LIFE AND DEATH OF MARINA...? MA Tão bom! Todos os dias ficava 40 minutos dentro do caixão. Pensava: “Deus, e se eu morrer e achar que estou numa peça de teatro?” (RISOS). É muito terapêutico. Nos ensaios e em cada apresentação da peça, eu tinha de morrer. Ao ser confrontada com a morte, você aprende a aproveitar a vida. Agora há uma ideia de fazer uma turnê com outra pessoa. Adoraria que a atriz inglesa Charlotte Rampling me interpretasse.
MC Você tem algo de que se arrependa na vida? MA Queria ter sido capaz de ser feliz­ no amor. Não fui. Tive relacionamentos por 12 anos, e eles foram embora. Os dois eram artistas, por isso, disse que nunca mais ia me relacionar com um. Um astronauta seria o ideal (RISOS). Ele sempre está no espaço, mas você sabe onde ele está e pode continuar­ fazendo seu trabalho na Terra.
MC Como se mantém jovem? MA É o maquiador. Ontem eu tinha 60 anos, hoje, 50 (RISOS). Tenho trabalhado como louca, passo horas em aviões. Não tenho tempo de envelhecer, porque no avião o tempo é mais curto. Minha avó viveu até os 103 anos, e a mãe dela até 116, então ainda vou durar. Não fiz plástica no rosto. Se você está pensando isso, errou. Mas também não bebo, porque tenho dores de cabeça­. Sou uma grande consumidora de iogurte e leite. Não fumo. Não acredito em drogas e me trato com medicina ayurvédica.
MC Tem gente que diz que fazer sexo também ajuda...
MA Sexo é uma boa coisa. Eu gosto (RISOS). Ando procurando ter mais sexo (RISOS). Não é fácil, porque acredito no amor. Essa, aliás, é minha maior frustração. Acredito, mas não fui capaz de ser feliz no amor. Conheci o Ulay no dia do nosso aniversário – nascemos no mesmo dia. Ele me disse: “É meu aniversário”. Pedi para ver seu documento. Ele não tinha, mas mostrou sua agenda. Eu não acreditei­, porque o dia do aniversário, 30 de novembro, não estava lá. E a primeira coisa que eu faço quando compro uma agenda todo ano é arrancar essa página do aniversário. Nós nos apaixonamos na mesma noite. Foi uma grande história de amor, achava que ia ser para sempre. Vivíamos juntos e trabalhávamos juntos. O problema era o público que nunca olhou nosso trabalho como um só. Sempre diziam: “Ah, ela é a mais forte”. E vocês, jornalistas, nunca punham o nome dele no jornal. Mataram meu relacionamento, porque ele começou a sofrer e a me punir sendo infiel.
MC Quando você e Ulay se separaram, em 1988, decidiram que seria por meio de uma grande performance na Muralha da China. Por quê? MA Essa era uma performance que queríamos fazer antes da separação. Esperamos oito anos pela permissão do governo chinês­ e, quando finalmente conseguimos, nosso casamento já estava no fim. Mesmo assim, decidimos fazer a performance e usá-la como uma forma de dizer adeus. Caminhamos 2.500 quilômetros cada um, partindo­ de lados opostos e nos encontramos no meio da muralha para nos despedirmos. Foi o momento mais difícil da minha vida profissional e pessoal.
MC Há diferenças entre a arte dos homens e das mulheres? MA Sempre perguntei por que havia tantos homens no mundo­ das artes e menos mulheres­. E a verdade é que as mulheres são menos dispostas a se sacrificar. As mulheres querem tudo: trabalho, marido, amor pela vida inteira, filhos, a merda toda. Você só tem uma vida! E a única energia que tem no seu corpo é sexual­. A questão é como transformar sua energia sexual em energia criativa­. É preciso envolver cada molécula, não pode fazer pela metade­. Vemos mulheres com grandes carreiras, que vão por água abaixo quando têm filhos. Para os homens, isso não importa.
MC Sacrificou a maternidade por causa da arte? MA Não. Nunca quis ter filhos mesmo. Nunca fui maternal. A arte é tão importante para mim... Fiz minha primeira exposição aos 12 anos. Eu não queria outra coisa. Adoraria ter amor verdadeiro. Mas o meu problema é que os homens que me amam querem me mudar. Eles não suportam uma mulher que tem opinião e poder. Isso os mata. É terrível. A mulher precisa saber que, se a carreira vem em primeiro lugar, os homens não aguentam.
"Fui convidada para fazer um trabalho para
a Copa, no Brasil, sobre espiritualidade
e xamanismo”
MC Qual foi o momento em que foi mais feliz? MA O momento mais feliz da minha vida foi quando estava na Austrália, com o Ulay. Vivía­mos em duas tribos diferentes, ele com os homens, eu com as mulheres. Nos encontrávamos nas noites de Lua Cheia, como os homens e mulheres da tribo, fazíamos amor como loucos e nos separávamos de novo. Durante esse ano, vivi sem dinheiro, a base de ratos, lagartos. Só o que importava era o nascer e o pôr do sol. Sentava com as mulheres ao redor da fogueira, elas estavam em silêncio, mas conversavam com minha mente. Era incrível. Acordava de manhã e apenas ficava feliz de estar viva.
MC Por que foi embora, então? MA É uma boa pergunta. Ficamos lá por um ano. Sempre senti que tinha uma missão com a minha arte. E transmito cada experiência, cada aprendizado para o público. Fui para o Tibete aprender com a vida dos monges, a meditar e a me concentrar. Estive no Brasil algumas vezes, porque o xamanismo é uma coisa incrível. Veja: eu trabalho com uma forma de arte imaterial. Não há nada para tocar. É só energia. Não aprendemos sobre energia na nossa cultura ocidental de merda, com nossas tecnologias... Esses povos sabem. Então, minha função como artista é ir lá, pegar essa informação e difundir.
MC Como vai ser seu projeto sobre espiritualidade no Brasil? MA O Brasil é muito importante para mim. Fui para lá pela primeira vez em 1989, antes da conferência Rio-92. Visitei a Amazônia, Belo Horizonte e Belém com um grupo de artistas. Desde então, como trabalho com pedras e cristais, vou para o Brasil com frequência. Visito as minas­, os lugares aonde os brasileiros não vão. E agora me chamaram para fazer um grande projeto para­ a Copa do Mundo. Fico dezembro, janeiro e fevereiro pesquisando, visitando os lugares de energia especial, como Alto Paraíso, encontrando os xamãs, vendo o candomblé. Porque a arte performática é sobre energia imaterial. Estou interessada nisso, e o Brasil é incrível.
MC O que gostaria de fazer antes de morrer? MA Penso muito no último estágio da minha vida, em legado. Aprendi tanto sobre performance que posso dar a jovens artistas um pouco da minha experiên­cia. É o que quero fazer. Com o grande arquiteto Rem Koolhaas criei o conceito do Instituto de Artes da Performance Marina Abramovic, que fica no norte de Nova York. Não escolhi meu nome porque sou egocêntrica. Estou para a arte como uma marca, tipo jeans ou Coca-Cola. Quando meu nome está lá, significa que é performance.
"Estou para a arte como uma marca, tipo
Coca-cola ou Jeans. Meu nome é
sinônimo de performance”
MC Como será o Instituto? MA Quem entrar vai ter de assinar um contrato. Precisa ficar pelo menos seis horas lá. É simples: você me dá seu tempo, eu dou minha experiência. Relógios e telefones ficam fora e é necessário vestir um jaleco. Assim, você se transforma em pesquisador e se iguala aos outros. Ano que vem vou ter de parar minhas atividades para levantar US$ 15 milhões. Não consigo fazer almoços intermináveis com possíveis investidores. Tenho outra ideia para levantar dinheiro. Meu público, em geral, é jovem. A pessoa que me ajudou a ter um público jovem é Lady Gaga. Ela foi ver a performance no MoMA. Os garotos souberam que ela estava lá pelo Twitter e acabaram indo me ver. Lady Gaga é generosa, muito mais que a Madonna, que tira muito das artes visuais e nunca diz de onde. Lady Gaga sempre se inspira nas artes visuais e cita o autor.
MC O que aprendeu sobre si mesma em tantos anos de performance? MA Muito. Quando achei meu diário, de quando tinha 14 anos, vi que era a mesma pessoa frágil e infantil de antes! Emocionalmente, ainda sou a mesma criança. No começo de um trabalho, você não entende nada, não sabe de onde vem, mas tem essa urgência de fazer. Muito mais tarde, consegue compreender. A mais importante pergunta é: por que sou artista, por que estou aqui?
MC E por quê? MA Vou contar uma história. Recebi uma ligação de um escritor de ficção científica, Kim Stanley Robinson (AUTOR DA PREMIADA SÉRIE Mars Trilogy), quando estava em Los Angeles. Fui almoçar com ele, que colocou na mesa seu livro, chamado 2312, e disse: “Você é uma das personagens, faz performances em asteroides, em Mercúrio, antigravitacionais”. Eu perguntei: “Por que eu?”. Ele respondeu: “Porque seu trabalho é tão imaterial que é bom para viagens intergalácticas!” (RISOS). Depois disso, fui conhecer alguns xamãs. Conheci uma mulher, um oráculo que diz seu passado, presente e futuro. Ela usa pedras de meteoritos e me disse: “Você nunca se sente em casa em nenhum lugar”. O que é verdade. E aí ela completa: “Seu DNA é galáctico. Você foi mandada a esse planeta com a missão de ajudar os humanos a transcender a dor”. Faz sentido para mim. 

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