Luis Ferraris/La Pulseada
Para a teóloga e filósofa Ivone Gebara, a tentativa é de sensibilizar e conscientizar a sociedade não apenas para a causa da dignidade feminina, mas para as necessárias mudanças estruturais que possibilitem uma nova relação entre as pessoas
26/09/2014
Eduardo Campos Lima,
De São Paulo (SP)
Em 2014, a teóloga e filósofa Ivone Gebara completa 70 anos, boa parte deles dedicada às lutas sociais, ao trabalho pastoral com mulheres e ao debate teológico feminista.
Durante o 2º Congresso Internacional Religião, Mídia e Cultura, ocorrido entre 8 e 12 de setembro em São Leopoldo (RS), seu trabalho de mais de três décadas foi reconhecido, com a concessão do título de Doutora Honoris Causa da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (Faculdades EST).
Na entrevista a seguir, Ivone Gebara fala sobre Teologia da Libertação e Teologia Feminista, as lutas das mulheres no terceiro milênio e o debate eleitoral.
Brasil de Fato – Que avanços a Teologia da Libertação trouxe para a espiritualidade cristã?
Ivone Gebara – É muito importante ter claro que o que chamamos de espiritualidade cristã é uma motivação para viver e lutar baseada em valores presentes na vida de Jesus segundo a tradição dos Evangelhos. A Teologia da Libertação dos anos de 1970 e 1980 enfatizou a importância da realidade histórica e do contexto social num tempo e espaço determinados para conhecermos o que se chama tradicionalmente “vontade de Deus”. Não podemos esquecer que os anos de 1970 e 1980 estavam marcados na América Latina pelas ditaduras militares, por um crescimento gigantesco da pobreza e da intervenção econômica do capitalismo internacional. Nesse contexto, a espiritualidade da libertação propunha direcionar nosso olhar, sobretudo para a vida dos pobres e marginalizados de nossas sociedades. Esta postura foi um enorme avanço em relação a uma espiritualidade intimista em que o individuo se relacionava com Deus independente do sofrimento e das injustiças sociais de milhares de pessoas.
Muitos apontavam contradições entre marxismo e cristianismo. Atualmente, ainda é possível falar nessas contradições?
Nos anos de 1970 e 1980 muitos foram os teóricos cristãos que escreveram sobre as relações entre marxismo e cristianismo. De uma maneira geral, boa parte afirmava que o marxismo fornecia um instrumental de análise da exploração do capitalismo e esse instrumento nos ajudava não só a entender, mas a criar condições para mudar os rumos da vida dos mais pobres. Muitos grupos se organizaram em torno dessa ideia e não viam contradição entre o marxismo e o cristianismo, visto que se tratava de viver a justiça nas relações humanas. Creio que essa problemática já pode ser considerada como sendo do passado. Não é novidade constatar a diversidade atual do movimento social na América Latina e especialmente no Brasil. Há movimentos que prescindem do instrumental marxista de análise. Quanto ao cristianismo, o uso do marxismo como mediação analítica diminuiu muito e tem acontecido que muitas igrejas prescindem até de momentos de análise social mais aprofundada e continuam reproduzindo um cristianismo tradicional, acreditando que é disso que o povo precisa.
Hoje a Teologia da Libertação é também teologia feminista?
Muitas teólogas da libertação dos anos de 1980 e 1990 se tornaram feministas, mas a maioria dos teólogos homens continuou sendo apenas da libertação. Dizer isso significa que a teologia feminista não teve muito sucesso nos meios tradicionais de fazer teologia, meios que admitiam a presença das mulheres apenas se elas repetissem o que era dito pelos homens. A dificuldade com a teologia feminista é que ela introduz uma concepção não hierárquica da vida cristã, o que significa que ela também propõe uma visão mais igualitária e horizontal a partir das relações de gênero, que tocam sem dúvida as relações de classe e de raça. Desconstrói as imagens do sagrado centrado no masculino e o poder eclesiástico igualmente centrado numa masculinização da imagem de Deus. Tomamos consciência do quanto uma religião simbolicamente colonizada pelo masculino tem a força de subjugar muitas pessoas e, sobretudo, as mulheres.
Qual o espaço das mulheres no debate teológico atual e qual o papel das mulheres na Igreja?
Perguntar pelo papel das mulheres na Igreja esconde certamente uma grande dúvida. Isto porque raramente se pergunta sobre o papel ou o lugar dos homens na Igreja, visto que a pergunta é desnecessária. Basta constatar que são homens que dirigem, pensam e representam o sagrado nas igrejas. Por isso se pode dizer que a visão sobre o lugar das mulheres nas igrejas e nas teologias depende da interpretação que se faz do ser humano. As pessoas que não querem mais manter as hierarquias de gênero como sendo um destino humano buscarão outras formas de viver o cristianismo em que acreditam, talvez um cristianismo sem submissão institucional e mais aberto a criar laços com grupos e pessoas em busca do bem comum. Os esforços atuais, sobretudo do papa Francisco, não lograram a de fato abordar a problemática antropológica, social, política e religiosa atualmente vivida pelas mulheres. Querem abrir espaços na mesma compreensão da vida cristã sem suspeitar que é justamente essa compreensão hierárquica e misógena que nos faz problema e justifica aberrações não apenas nas instituições religiosas, mas nas instituições sociais e políticas.
Constata-se hoje o enfraquecimento dos movimentos sociais gestados nas décadas de 1960 e 1970. A Teologia da Libertação tem ainda um papel para alimentar esses movimentos?
Quando se fala do papel da Teologia da Libertação em alimentar movimentos sociais se está imaginando que a Teologia da Libertação é algo mais ou menos pronto aplicável a diferentes situações. Em outros termos, se tem uma visão mais ou menos estática da teologia ou do pensamento religioso e de sua ação em nossa realidade. A ideia de que as teorias se aplicam às práticas precisa ser modificada. Penso que o discurso religioso libertário dos anos de 1970 e 1980 se afirmava a partir de um contexto histórico nacional e internacional que alimentava certas práticas sociais e políticas. Hoje estamos em outro contexto muito mais plural e no qual as Igrejas já não têm o mesmo papel social, salvo algumas poucas exceções.
Nota-se hoje uma fragmentação e compartimentação das lutas sociais, muitas vezes sem articulação mais ampla. Como analisar a luta feminista neste contexto?
A luta feminista está presente em diferentes âmbitos sociais. Existem várias instâncias de organização, como a Associação das Mulheres Brasileiras (AMB), a Marcha Mundial das Mulheres, o Movimento Nacional de Mulheres Agricultoras, o MST das Mulheres etc. Cada articulação dessas engloba vários grupos de mulheres, mas nenhum tem a pretensão de dizer a última palavra de como deve ser a vida das mulheres. Há autonomia e interrelação. A tentativa é de sensibilizar e conscientizar a sociedade não apenas para a causa da dignidade feminina, mas para as necessárias mudanças estruturais que possibilitem uma nova relação entre as pessoas. E isto nós mulheres temos conseguido gradativamente, com todas as contradições inerentes aos processos sociais. Creio que já não temos a ingenuidade de acreditar que se todo o mundo for feminista segundo tal ou tal modelo os problemas do mundo ou do país estarão resolvidos. Cada pessoa e cada grupo tem uma compreensão da vida e da história e temos que aprender a lidar com esse pluralismo e essa complexidade, pois estamos seguras que já não é uma única visão do mundo que vai prevalecer.
Como reconstruir uma aliança entre as lutas sociais e a produção intelectual?
Este é o velho problema da relação entre teoria e prática presente desde a Antiguidade, passando por Marx, Gramsci e outros tantos. Não há solução definitiva para ele. Para mim, existe a necessidade das/dos intelectuais fazerem algumas escolhas, ou seja, para onde e para quem direcionar sua pesquisa e reflexão. Entretanto, estou consciente de que não se pode mais estabelecer um modelo de intelectual único, sobretudo porque muitas vezes os intelectuais mais atuantes não são os que escrevem livros ou têm um blog, mas aqueles e aquelas que estão dentro da problemática que fere suas vidas. São as empregadas domésticas que conhecem sua situação por dentro, são as mulheres vítimas de violência doméstica, são os indígenas cujas terras foram tomadas que percebem por onde passam os veios da violência e das possíveis saídas. O papel das/dos intelectuais muitas vezes é o de fazer as boas perguntas para acordar a consciência adormecida, perguntas que levam a encontrar caminhos de breve restauração da vida. A partir dessas perguntas, recuperar exemplos do passado para ajudar a ver na história a complexa trama dos acontecimentos e as contradições da vontade humana. É também papel dos intelectuais conviver para além das análises políticas e econômicas nos momentos de gratuidade, nas festas e celebrações que marcam instantes importantes da vida e revelam algo para além das teorias estabelecidas.
No atual debate eleitoral os candidatos são convidados a se posicionar em relação ao aborto e ao casamento homoafetivo. Essas questões são políticas?
Durante muito tempo essas questões não apareciam explicitamente no cenário político cotidiano nem nos períodos de eleições. Hoje, o movimento social abriu-se para outros problemas sociais que revelam a complexidade das questões políticas. Muitas pessoas acreditam que essas questões são menores e não deveriam entrar no debate político visto que polarizam posições e confundem a opinião pública. Distinguem entre as grandes questões políticas e as pequenas questões que não merecem ser chamadas de políticas. Mas, a meu ver, justamente essas questões aparentemente sem importância revelam as posturas íntimas dos candidatos e os mostram para o grande público, para além dos chavões habituais das promessas de campanha. Nessas questões eles não podem se esconder, mesmo que muitas vezes tentem fazê-lo. Sem dúvida são questões constrangedoras para muitos, mas são elas que abrem as portas, por exemplo, para a reflexão sobre a educação dos filhos de casais homossexuais, sobre os conteúdos educacionais apresentados nas escolas, sobre uma economia que deve prever situações plurais, sobre políticas públicas para os que não se enquadram nos conceitos de “normalidade”. Da mesma forma, questões sobre a legalização e descriminalização do aborto abrem a reflexão para a problemas de saúde pública e da responsabilidade humana (masculino e feminina) em relação à sua prole e à vida em comum. Essas aparentes pequenas questões são a novidade das novas políticas atuais porque tocam a ecologia humana na sua complexidade real. A questão da economia mundial, por exemplo, se traduz também em tráfico de mulheres, de meninas, de menores, em pornografia, em pedofilia, em drogas, aborto, doenças sexualmente transmissíveis. Este é o concreto cotidiano da vida das populações do mundo.
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