Como uma bola de futebol selou, cem anos atrás, a trégua entre inimigos que se trucidavam
por Nirlando Beirão —The Art Archive / Imperial War Museum / AFP
A mais bela partida de futebol de todos os tempos
A mais bela partida de futebol de todos os tempos não se exprimiu em requintes de técnica, tampouco em exuberância de gols (terminou, supõe-se vagamente, em 3 a 2 para o improvisado esquadrão dos Fritz). Mas, removida a suspeita de uma lenda arquitetada, espanada a densa neblina do passado, os lances e os dribles protagonizados em Saint-Yvon, ou Saint-Yves, em território belga, precisamente cem anos atrás, insistem ainda hoje em simbolizar, mesmo quando tudo é propício ao ódio, como era o caso daquele trágico momento do Natal de 1914, a obstinada irrupção da fraternidade, a sorrateira sedução da concórdia.
Talvez tenha sido mais de um, além daquele de Saint-Yvon, os rachas de futebol que fizeram emergir das trincheiras de tediosa violência e, em apenas quatro meses de guerra, com indícios de eterna imobilidade, os inimigos adornados de lama, de sujeira e de bandagens para uma confraternização de Natal sabe-se lá por quê.
O papa genovês Bento XV, recém-empossado no trono de São Pedro, quis reivindicar os méritos da trégua inédita em meio à atroz carnificina, mas é improvável que lá em seus buracos imundos compartilhados pelos ratos e inundados pelas chuvas os combatentes do Kaiser, os súditos da monarquia britânica, os circunscritos da República francesa estivessem sintonizados com a Rádio do Vaticano e propensos a se sensibilizar com aquelas inócuas arengas pacifistas ditadas do balcão da Santa Sé. “As armas devem ficar silenciosas pelo menos na noite em que os anjos cantam”, pediu Bento XV. Falava aos arrogantes dirigentes, não aos sofridos combatentes. Errou de endereço.
Durou seis dias a trégua de Natal – melhor seria dizer “as tréguas” de Natal, pela extensão que o rastilho de civilizada camaradagem e de franca cortesia percorreu naquele no man’s land que começava na região de Ploegsteert, na Bélgica, e ia dar na fronteira francesa de Comines, do outro lado do Rio La Lys. Mais de 100 mil combatentes – pelos cálculos do historiador norte-americano Stanley Weintraub – descansaram suas armas.
O futebol foi só uma faceta do pacífico convívio, embora monumentalmente emblemático, já que o entrechoque natural da disputa pela bola e da ânsia de vitória, sempre propenso, como se sabe, a prorromper em explosões de fúria e em franca pancadaria, mesmo em situações amistosas e em nações que se dizem cordiais, transcorreu em clima de fair-play, de elegância e de alegria quase lírica entre rivais que até aquele dia estavam tentando se matar uns aos outros – e que, passada a trégua, continuam febrilmente tentando, em obediência aos desígnios dos arautos da patriotice.
Foi difícil acreditar no que acontecia e os relutantes chefes militares de ambos os lados, impotentes diante do súbitointermezzo de abraços, de cigarros trocados, de rações repartidas, fariam o possível para desacreditar a nobreza de um gesto tão espontâneo e, na interpretação do Estado-Maior, tão insubordinado. De fato, o precedente estava aberto e a partir daí qualquer comportamento considerado tíbio ou insubmisso passou a merecer fuzilamento sumário (em 1917, a insatisfação das tropas francesas iria prorromper em sucessivos motins, punidos com corte marcial e pena de morte).
Felizmente, a imprensa britânica estava de olho e, após a virada de 1914 para 1915, jornais como o Evening News, oDaily Telegraph e o Glasgow News (sim, havia muitos soldados escoceses naquele front; alguns deles, naquela partida histórica) vieram a publicar cartas de praças e oficiais, ainda impregnadas de surpresa, narrando os tais acontecimentos do Natal.
“Era uma linda noite de luar, o chão gelado, branco por quase toda parte, e, por volta das 7, 8 horas, havia muita comoção nas trincheiras alemãs e muitas luzes – não sei de onde vinham”, escreveu o cabo Albert Moren, da 2º Regimento da Rainha, paralisado nas vizinhanças de La Chapelle d’Armentières. “De repente, começaram a cantarNoite Feliz – Stille Nacht. Nunca vou esquecer de música tão bonita.”
As luzes intermitentes vinham das velas com que os alemães emolduravam, no oco das barricadas, suas surpreendentes árvores de Natal. A temperatura andava pelos 8 graus negativos, mas um súbito espírito natalino baixou para aquecer os corações. “Começamos a cantar O Come, All Ye Faithful”, anotou o fuzileiro Graham Williams, da 1ª Brigada de Fuzileiros de Londres, “e imediatamente os alemães se uniram cantando o mesmo hino em suas palavras latinas, Adeste Fideles. Que coisa extraordinária – duas nações inimigas entoando o mesmo cântico no meio da guerra”.
O inesperado dueto da harmonia inspirou no capitão Josef Sewald, do 17º Regimento Bávaro, um gesto de ousadia. “Gritei para os nossos inimigos que não queríamos atirar e que faríamos uma trégua de Natal”, relembrou anos depois. “Disse que eu viria do meu lado e que poderíamos conversar entre nós. A princípio, houve silêncio, voltei a gritar e um inglês gritou, ‘Parem os tiros!” Aí um deles saiu das trincheiras e eu fiz o mesmo, e nos aproximamos e trocamos um aperto de mãos – um tanto cautelosos!”
E assim os apertos de mão se multiplicaram ao longo de todo o front ocidental. “Feliz Natal, dizíamos uns aos outros, e logo estávamos conversando como se nos conhecêssemos há anos”, escreveu o cabo John Ferguson, do 2º Regimento dos Highlanders.
Na manhã de Natal, uma missa bilíngue rezada por um padre escocês e um seminarista alemão selou o momento de ecumênica harmonia, “um espetáculo extraordinário”, deslumbrou-se o tenente Arthur Pelham Burn, do 6º Regimento dos Highlanders. “Os alemães alinhados de um lado, os britânicos de outro, os oficiais à frente, todos de cabeça descoberta.”
Enquanto isso, o tenente inglês Bruce Bairnsfather admirava uma cena de banalidade profana: “Um cabeleireiro amador, em trajes civis, cortava os longos cachos de um Boche dócil, ajoelhado no chão duro, enquanto a máquina operava”. Daí ao futebol foi um passo. “Os ingleses trouxeram a bola”, contou o tenente Kurt Zehmisch, do 134º Regimento Saxão de Infantaria. “Como foi estranho e como foi maravilhoso. O Natal, celebração do Amor, conseguiu unir como amigos, por um instante, inimigos mortais.”
Em Sant-Yvon, a memorável partida só terminou porque a bola rebateu numa daquelas cercas de arame farpado que protegiam as trincheiras e furou irremediavelmente. Há registro de que, além dos Fritz e dos Bobs, franceses e belgas também aproveitaram o desarmamento de Natal para soltar seus petardos – futebolísticos, é bom esclarecer –, embora a aproximação dos Frogs (Froschfresser, comedores de rã, em alemão) com os Fritz fosse sempre mais constrangida, resultado das feridas ainda abertas do conflito franco-prussiano de 1870.
Ainda assim, as balas calavam quando um dos lados tentava resgatar seus feridos. Numa dessas pausas informais, escreveu aos familiares o cabo Marcel Decobert, chegou às mãos da tropa gaulesa em Comines uma carta enviada pelo batalhão bávaro, postado bem ali adiante. “Caros camaradas, amanhã é Natal, nós queremos a paz. Vocês não são nossos inimigos. Eles estão do outro lado (referia-se, talvez, aos ingleses). Nós admiramos a grande Nação Francesa. Viva a França, nossas saudações”. Assinado: “Os Bávaros, ditos os Bárbaros”. Toque de humor em tempos de cólera.
Foi um francês, Michel Platini, à frente da União Europeia de Futebol (Uefa), quem programou para esta quinta-feira, em torno da Igreja de São Martinho, em Ypres, uma cerimônia que traga, para um esporte sujeito a surtos marciais, a pacífica lição de 1914.
Como a reunião do Conselho Europeu estava prevista para esta sexta, chefes de Estado eram aguardados. Dia 17, um selecionado do time do Exército britânico enfrenta o do Exército germânico em Aldershot, a 60 quilômetros de Londres. Os ingleses, de sua parte, já tinham se antecipado às comemorações. Todos os jogos do fim de semana, da Premier League às divisões inferiores, fizeram referência ao exemplar momento de coexistência entre rivais.
O historiador marxista Eric Hobsbawm celebrou nas tréguas de Natal um efêmero hiato em meio às exacerbações nacionalistas que haviam submergido o sonho do internacionalismo proletário. O conflito de 1914 – observou Hobsbawm – acabaria por “democratizar a guerra”, no pior sentido da palavra. “Civis e a vida civil viraram alvos estratégicos certos, às vezes principais”, escreveu (em Era dos Extremos, Cia. das Letras). Até então, entregues aos profissionais, aos especialistas, “sobretudo os de posição social semelhante”, as guerras não excluíam respeito, regras “ou mesmo um certo cavalheirismo”.
Foi o que se viu no Natal. E depois? “O chamado sistema ‘viva e deixa viver’ surgiu em certos setores da Frente Ocidental em 1914 e 1915”, narra Niall Ferguson (em O Horror da Guerra, Editora Planeta). “Em essência, havia um acordo tácito de cessar-fogo durante as refeições, ou enquanto os feridos eram resgatados; desenvolveu-se um sistema de ‘olho por olho’ em que cada tiro não provocado seria devolvido em retaliação. As patrulhas noturnas rivais se evitavam mutuamente. Os franco-atiradores pararam de atirar, se é que atiravam. Mais tarde, quando vieram as ordens oficiais para retomar o combate, a violência foi apenas ‘ritualizada’.”
Ainda assim, a Primeira Grande Guerra faria 14 milhões de vítimas antes do cessar-fogo definitivo, em novembro de 1918. Atolados nas fronteiras intermináveis, os exércitos esvaíam-se em dor e sangue. A mortandade ditada pelos altos poderes suplantou as relíquias afetivas daquele fugaz beau geste. Os próprios protagonistas, como o capitão Charles Buffalo Bill Stockwell, do 2º Corpo Real de Fuzileiros Galeses, conta que um alemão, de seu abrigo fortificado, hasteou um lençol onde se lia: “Obrigado”. “Fizemos, nós dois, uma reverência, acenamos e voltamos à trincheira. Ele deu dois tiros para o ar e a guerra recomeçou.”
De lado a lado, nem todo mundo ficou feliz com tamanha troca de amenidades. A posteridade registrou o desabafo de um cabo austríaco que se alistara na 16ª Brigada Bávara. “Essas coisas não deviam acontecer em tempo de guerra”, irritou-se ele. “Os alemães perderam todo o senso de honra?” O nome do enfezadinho era: Adolf Hitler.
*Reportagem publicada originalmente na edição 830 de CartaCapital, com o título "Milagre de Natal"
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