segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

MIA COUTO: CIENTISTA DE DIA E ESCRITOR A NOITE


 / POR ANDRÉ BERNARDO (Foto: Ulf Andersen/Getty Images)











POR ANDRÉ BERNARDO

Em 2008, a equipe do biólogo Mia Couto foi contratada por uma companhia petrolífera para avaliar os impactos ambientais em um projeto de prospecção de gás numa aldeia remota de Moçambique. Ele estava acampado na vila de Palma, a 2,6 mil quilômetros de Maputo, a capital do país, quando alguém da expedição veio avisá-lo certa noite: “Venha ver, Mia, há um homem morto lá fora!”. Quando soube, já no mato e às escuras, que a vítima havia sido devorada por leões, sentiu-se transportado para uma narrativa de terror. “Medos antigos me invadiram e regressei à tenda para acender a lanterna e começar a escrever. E escrevi como se respirasse. Naquele momento, a escrita era o único refúgio que conhecia”, recorda.

Desta experiência aterrorizante, que resultou na morte de 26 nativos no curto intervalo de quatro meses, nasceu A Confissão da Leoa, seu 12º livro, lançado no Brasil em 2012. Para o moçambicano, de 58 anos, vencedor em 2013 do prestigiado prêmio americano Neustadt, biologia e literatura sempre caminharam juntas. “A biologia, para mim, não é uma profissão. É uma entrega apaixonada, tanto quanto a literatura. Como dizia Anton Tchekhov, quando lhe perguntavam sobre medicina e literatura, não há aqui traição alguma, mulher e amante são a mesma pessoa”, afirma o escritor, que se dedica à biologia durante o dia, quando dirige uma empresa de impacto ambiental, e à literatura na calada da noite, quando sofre com crises de insônia.
MIA COUTO
NOME:  António Emílio Leite Couto.
NASCIDO EM: 5 de julho de 1955, em Beira (Moçambique).
PRINCIPAIS OBRAS: Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra  (2003),  Terra Sonâmbula (2007), Venenos de Deus, Remédios do Diabo (2008), O Gato e o Escuro (livro infantil, 2008), E se Obama Fosse Africano
Antes de cursar biologia, ele tentou medicina. Saiu de Beira, segunda maior cidade de Moçambique, ainda adolescente e foi morar em Lourenço Marques, então capital do país. Na faculdade, optou por psiquiatria, mas  mudou de ideia ao visitar instituições para doentes mentais. “Comecei a ter dúvidas sobre se queria entregar minha vida a um permanente convívio com a doença. É como se eu receasse que esse lado sombrio me roubasse o esplendor da vida”, pondera. Mas as escolhas pessoais tiveram de esperar. Mia se alistou na Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) para lutar pela independência de seu país.
Para entrar no movimento, Mia passou por um ritual chamado “confissão de sofrimento”. Os aspirantes a guerrilheiros tinham de explicar os motivos pelos quais queriam lutar contra o colonizador português. Como não tinha uma história triste para contar, resolveu inventar uma. Não foi preciso. Na sua vez, os líderes da Frelimo perguntaram: “É você que escreve poesias?”. Encabulado, respondeu que sim. “Então tudo bem. Pode entrar”, ordenaram. Enquanto lutou pela independência, de 1972 a 1975, Mia jamais disparou um tiro. Embora fossem bem-vindos ao movimento, os brancos não tinham autorização para portar armas de fogo. Por conta disso, foi escalado para trabalhar como jornalista em A Tribuna (jornal que circulou entre 1962 e 1975, quando teve a sede incendiada por colonos contrários à independência de Moçambique).
A independência veio em 1975. Mas a paz estava distante. Entre 1976 e 1992, Moçambique viveu uma guerra civil com quase 1 milhão de mortos. “Chocou-me o modo como muitos dos revolucionários se apressaram a tornar-se semelhantes aos opressores”, lamenta. Ao retomar os estudos, em 1985, trocou a psiquiatria pelos bichos — um ano depois publicou Vozes Anoitecidas, seu primeiro livro. “Ao fazer biologia, ganhei proximidade com criaturas que me contam histórias. Às vezes, são bichos. Outras, rios e árvores. Sei que não estou romantizando. A biologia me serve de tradutora dessas criaturas e me ensina que existem linguagens não humanas que me humanizam”, diz.
O amor pelos animais é tanto que aos dois anos pediu aos pais que passassem a chamá-lo de Mia. Na época, o pequeno Antônio Emílio Leite Couto, seu nome de batismo, vivia entre os gatos. Por vezes, chegava a acreditar que era um felino. “Era uma viagem de identidade. Essa fantasia pode ser normal em qualquer criança. O que não foi normal foi os meus pais aceitarem isso como uma decisão adulta”, diverte-se.
O nome  gera situações curiosas. Mia Couto perdeu a conta de quantas vezes foi confundido com uma mulher. Certa ocasião, em visita a Cuba, os assessores do ditador Fidel Castro chegaram a presenteá-lo com um vestido.
O BIÓLOGO EM AÇÃO: Mia Couto durante o trabalho de campo, à beira de um rio (esq.), no interior (dir.) e em um centro de reabilitação de aves de Moçambique (acima). Escritor não vê conflito entre trabalho de cientista e o de escritor: "A biologia para mim não é uma profissão. É uma entrega apaixonada". (Foto: Divulgação)
ATIVISMO ECOLÓGICO
Em 1996, Mia Couto e mais quatro amigos, todos biólogos, fundaram uma empresa de consultoria ambiental, a Impacto. Para ele, o maior problema de Moçambique é a miséria que castiga a maior parte da população e também traz prejuízos ambientais. Em 2013, o país foi o 185º no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). “Uma relação predatória e imediatista consolidou-se. Onde havia preceitos para criar equilíbrios duradouros com os processos naturais prevaleceu a luta pela sobrevivência”, critica. “A solução não é ambientalista. Passa por negar essa falsa dicotomia que opõe  conservação da natureza ao progresso.”
Ano passado, Mia acrescentou dois prêmios à coleção: além do Neustadt, concedido a cada dois anos pela Universidade de Oklahoma, recebeu o Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa. Como escritor, já foi traduzido para sete idiomas e publicado em mais de 20 países. Como biólogo, se considera um “mau cientista” por não ter resposta pra tudo. “Muitas vezes, a ciência é assaltada pela tentação da certeza, uma espécie de substituto da fé. Os cientistas perdem um dos mais cativantes desafios do saber: ter dúvidas. Tenho resistência a entregar a explicação do universo a uma única via de respostas. Tantas são as lógicas do universo que ele deveria ser chamado de pluriverso”, ri o biólogo, que não perde a mania de criar novas palavras.

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