quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

EM LIVRO, FILHOS DE PRESOS POLÍTICOS CONTAM COMO PERDERAM A INFANCIA


PRÁ NINGUÉM ESQUECER (MF)


Em livro, filhos de presos políticos contam como perderam a infância
Produzido pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, publicação revela, em 44 depoimentos, as atrocidades da ditadura militar e as consequências nas vidas das crianças à época
Por Igor Carvalho | Fotos retiradas do livro “Infância Roubada”
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo lançou, no último dia 5 de novembro, o livro “Infância roubada”. A obra reúne depoimentos de 44 pessoas que, quando crianças, tiveram seus pais perseguidos, torturados e assassinados pela ditadura militar.
Relação de crianças banidas do Brasil, durante a ditadura militar
Relação de crianças banidas do Brasil, durante a ditadura militar
No livro, além de histórias de crianças que foram fichadas como “terroristas”, ou de outras que tiveram que acompanhar as sessões de tortura de seus pais, há ainda as que foram banidas do país. As mães de alguns dos 44 depoentes do livro contam como viam a relação dos filhos com a repressão. Todos os relatos do livro foram registrados durante audiências públicas realizadas em maio de 2013, pela Comissão da Verdade paulista, presidida pelo deputado estadual Adriano Diogo (PT).
O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT), que viu o pai, Anivaldo Padilha, ser preso pela ditadura militar, fez uma conexão entre o livro e os recentes protestos que pediram a volta do regime autoritário. “Fiquei oito anos separado de meu pai por conta da ditadura. Eu e minha mãe, até meus quatro anos de idade, não podíamos ter residência fixa. Então, quando se fere a democracia, somos obrigados a conviver com episódios como os narrados no livro”, alertou.
Filho de Virgílio Gomes da Silva, o primeiro desaparecido político da ditadura militar no Brasil, Gregório Gomes da Silva teve dificuldades para lidar com a perda. “Ir para Cuba foi fundamental para compreender a luta do meu pai e não estabelecer uma relação ruim com isso, sem mágoas com meu pai. A repressão nos atingiu diretamente, minha irmã, que tinha quatro meses e ainda mamava, foi separada de nossa mãe e acabou se desnutrindo. Meus irmãos sofriam tortura psicológica, com ameaças frequentes de que seríamos colocados para adoção”, lembra. No livro, quem narra a história da família é seu irmão, que carrega o mesmo nome do pai, Virgílio Gomes da Silva Filho.
Outro drama familiar foi vivido pelos irmãos Edson e Janaína Teles, filhos de César Augusto Teles e Amelinha Teles. Quando crianças, chegaram a morar seis meses na casa de um delegado. “Fui preso com quatro anos de idade, presenciei meus pais sendo torturados. Sofri tortura psicológica na casa do delegado durante os seis meses e vi meus pais resistirem a tudo isso com força”, recorda Edson. Para o filho de Amelinha e César, o período sempre estará presente em sua vida. “Toda essa história provocou um impacto ético, porque o exemplo deles, a forma como encararam a ditadura, criou valores na gente que ficam até hoje. Do ponto de vista das minhas escolhas pessoais, também influenciou, até hoje estudo os regimes autoritários.”
A irmã de Edson, Janaína Teles, tornou-se historiadora e ainda pesquisa o período que vitimou toda a família. Encontrou o que chama de “alívio” quando se deparou com histórias similares à sua. “Passei toda minha infância sem poder falar de meus pais. Fiz terapia várias vezes, até descobrir, com certo alívio, que isso vou carregar para sempre, que cada fase da vida vai me cobrar de uma forma diferente essa infância que me foi roubada”, afirma.
Confira, na íntegra, os depoimentos de Janaína Teles e Virgílio Gomes da Silva Filho.
“Dói gostar dos outros” – Janaína Teles
Amelinha e César em dia de visita no Presídio do Barro Branco, São Paulo, 1976
Amelinha e César em dia de visita no Presídio do Barro Branco, São Paulo, 1976
Vou tentar complementar algumas coisas de que me lembro, das quais o Edson não se lembra. É interessante perceber que nossas lembranças e memórias são complementares.
Lembro-me do dia da prisão, o dia 29 [de dezembro de 1972], mas não me lembrava de que tínhamos ajudado a minha tia, Crimeia Alice Schmidt de Almeida, a queimar os documentos guardados na nossa casa. Depois, soube que a casa funcionava como um “aparelho clandestino” voltado às atividades de imprensa do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Lembro-me muito bem, contudo, que durante a noite anterior à nossa prisão, ficamos contando moedas dos nossos cofres. Tempos depois, soube que a Crimeia pensou em fugir conosco, mas ela não tinha nenhum dinheiro e nossas moedas não eram suficientes para possibilitar uma fuga. Lembro-me também da hora da prisão, de quando um casal de policiais bateu à nossa porta. Fui atender e eles foram estranhos, meio grosseiros. Ela foi atendê-los no portão, em seguida, voltou e, nesse momento, minha tia pediu para irmos para um quarto nos fundos da casa. A porta não foi fechada totalmente e por uma fresta fiquei tentando ouvir o que estava sendo dito, porque senti que a situação estava muito ruim.
De repente, vieram os policiais e nos tiraram daquele quarto. Começou uma movimentação grande, uma gritaria e fomos levados para uma C14, onde havia muitas armas no chão. Então, perguntei alguma coisa para o soldado e ele me disse “Cala a boca, comunista!”, ou algo assim. O estranho é que os carros eram pintados de cor azul claro.
Fomos levados para o DOI-CODI (localizado na 36a. delegacia de polícia). Eu tinha 5 para 6 anos, então, imagino que por isso eu tenha mais lembranças do que o Edson. Fui levada para uma cela onde meus pais estavam sentados numa mesa, onde parecia haver dois pratos de sopa ou de outra comida. Eles não conseguiam se mexer e nem falar direito porque estavam muito machucados.
Antes, eu fora levada para a cela onde minha mãe estava sendo torturada, eu a vi na cadeira do dragão. Mas não me lembro disso. Só me recordo de ter ficado muito chocada e de abraçá-los, beijá-los e, mesmo assim, eles não conseguiam se mexer. Depois de muitos anos, senti-me culpada por não conseguir lembrar-me dessas coisas direito. Isso me atormentava um pouco. Depois, fui entendendo que isso era uma autoproteção e que não havia como lembrar de fatos tão dolorosos.
Não sei quantos dias ficamos lá, mas, na minha memória, a gente ficou mais ou menos uma semana. E ficávamos o dia inteiro no DOI-CODI, entrando e saindo das celas, mas, especialmente, ficando no estacionamento…Tentávamos inventar brincadeiras, disfarçar para nós mesmos, fazer o tempo passar porque não entendíamos o que acontecia ali.
De noite, nos levavam para uma casa muito grande. Na minha lembrança, ela ficava perto do DOI-CODI. Dormíamos ao lado da cozinha em uma cama de campanha militar, dessas que dobram. Eu não conseguia dormir direito, pois a luz da cozinha ficava acesa e eu estava bastante preocupada com aquela situação… Não estava acostumada a dormir longe dos meus pais.
O comandante do DOI-CODI/SP entre 1970 e 1974, Carlos Alberto Brilhante Ustra, deu uma versão cínica para o nosso sequestro em seu primeiro livro. Segundo ele: “[...] Para não mandar as crianças para o Juizado de Menores, uma moça, Sargento da Polícia Feminina do Estado de São Paulo, ofereceu-se para tomar contar dos menores em sua casa, enquanto aguardávamos a chegada dos familiares do casal, que se encarregariam da guarda deles. Diariamente, a meu pedido, as crianças eram levadas ao DOI para visitarem seus pais. [...]”. Vale ressaltar que a casa onde me recordo ter pernoitado era bem grande e não poderia ser a moradia de uma sargento da Polícia Feminina.
Durante o dia eles nos levavam de volta para o DOI-CODI. Ficávamos lá, entrando naqueles corredores escuros. Ouvíamos gritos, depois alguém nos punha para fora e a gente ficava no estacionamento. E, de vez em quando, aparecia alguém para falar conosco. Lá pelas tantas, alguém falou que aquilo era um hospital. Pensei: “Bom, meus pais parecem doentes mesmo, mas aqui não tem ninguém vestido de branco. Como isso aqui é um hospital?”. 
Frequentemente, perguntava pela minha mãe e o delegado dizia que não era para falarmos dela porque era comunista! Eu queria mandar carta para meus pais. Estava começando a aprender a escrever, queria que alguém escrevesse uma carta e queria receber cartas dos meus pais. Mas eles respondiam que não era permitido falar desse assunto.
Tenho lembranças muito desconexas sobre aquele período. Uma delas é de quando o delegado colocou uma arma na mesa e disse que não era para perguntar da minha mãe. Ele era uma pessoa agressiva. Eu não me lembro da cena do zoológico relatada pelo Edson, mas havia uma atmosfera de muito medo naquela casa. Eu frequentava uma escola nesse período, onde todos os dias éramos obrigados a ouvir aquela canção do Roberto Carlos, acho que se chamava “Jesus Cristo”, no autofalante da escola. Para mim aquele era um ambiente estranho, pois eu não tinha formação religiosa e éramos constrangidos a rezar. O delegado nos forçava a tratá-lo por “senhor”, o que não era costume na minha família.
Um seis meses depois, a Crimeia apareceu, escondida, a gente brincava no jardim em frente da casa. Ela nos chamou do outro lado da rua, fazendo “psiu”. A partir daí, ela começou a nos encontrar escondida. Eu não me recordo dos detalhes, mas ela mandou não falarmos que estávamos nos encontrando com ela. A gente obedecia porque sabia que aquele lugar não era bom, e a Crimeia era uma lembrança boa… Nós havíamos convivido com ela e com meus pais juntos. Nós não conhecíamos ninguém da família, cuja maioria vivia em Minas Gerais, pois nascemos na clandestinidade…
Amelinha, Padre Renzo Rossi, Crimeia, Edson e Janaína, Rio de Janeiro, 1975
Amelinha, Padre Renzo Rossi, Crimeia, Edson e Janaína, Rio de Janeiro, 1975
A Crimeia explicou o que tinha acontecido com meus pais, que eles não haviam nos abandonado. O delegado e nossos primos, os filhos dele, falavam que meus pais tinham nos abandonado. E eu pensava: “A gente se gostava tanto, como é que eles me abandonaram?” Não fazia sentido. Então, a Crimeia apareceu e nos explicou que eles estavam presos, e que não tinha como saírem de lá.
Eu achava que tinha gente doente lá, por isso ouvia gritos. “Mas como um hospital pode ser escuro deste jeito?”, pensava. Enfim, eu não entendia nada, e um dia aquele mesmo casal que tinha batido à porta para nos prender nos levou para Belo Horizonte (MG). Lá, na casa desse tio policial, Edelton Bosco Alvarenga Machado, casado com uma irmã do meu pai, eu tinha que acordar mais cedo porque era uma espécie de assistente da empregada doméstica. Eu fazia o café da manhã tava acontecendo. E ela repetia com paciência as explicações. Para fazer a gente dormir, ela contava histórias da Guerrilha do Araguaia. Só que não contava a parte violenta da história, e sim que ela havia cuidado de uma oncinha, que tinha tido uma lontra chamada “pilontra”, uma égua que se chamava “Marta Rocha”, porque tinha uma bunda grande igual a da miss, enfim, ela contou sobre os vários filhotes de animais que criou e sobre a vida na mata… Então, a minha relação com a Guerrilha do Araguaia começou desde muito cedo. Obviamente, eu não entendia o que era a Guerrilha do Araguaia, mas sabia que a Crimeia havia morado muitos anos na Floresta Amazônica juntamente a outros amigos e companheiros.
A Crimeia explicou também que o [Carlos Nicolau] Danielli fora assassinado. Ela teve de repetir algumas vezes porque isso tinha acontecido com ele, sobre o porquê dos militares não gostarem de nós… Ele era como um tio muito querido, o tio “Sig”, que frequentava a nossa casa. Lembro-me também do “tio” Gustavo, Luis Ghilardini, assassinado sob tortura no Rio de Janeiro. Não conheci o André Grabois, o pai do Joca (João Carlos Schmidt de Almeida Grabois) e meu tio. Ela contava muitas histórias sobre o André, sobre quando fingiu que lutou com um jacaré ou quando uma onça quase o atacou (ele estava sem óculos e era bastante míope), suas piadas, peripécias, desenhos e do futebol que ele gostava de jogar.
Por meio da memória dela, fomos nos familiarizando com essa história difícil e essa nossa família distante. A Crimeia também começou a nos ensinar a escrever, porque era difícil, não dava mais para ir à escola naquele período, uma vez que já havia passado meio ano.
Ela também nos levou para visitar meus pais no presídio Carandiru. Era a primeira vez que eu ia vê-los depois de seis meses. Era inverno, fazia muito frio, e não tínhamos casacos suficientes. Chegamos lá, meu pai estava no lado masculino e minha mãe no feminino. Os policiais não deixaram nos encontrarmos todos juntos… Foi angustiante e tivemos de esperar muito tempo para conseguirmos nos encontrar todos juntos! Desse dia, lembro-me de que minha mãe estava muito bonita de cabelos compridos.
Há muitas histórias até cinematográficas, realmente. Uma delas diz respeito à Crimeia e o modo como ela nos encontrou, secretamente, no jardim da casa, fazendo “psiu” do outro lado da rua! A gente a encontrou várias vezes até que ela nos levou… ela nos ajudou a fugir de lá! Um dia, chegou e combinou que viria nos buscar no dia seguinte, ao final da tarde. Ela falou: “Hoje nós vamos embora, peguem as suas coisas que nós vamos fugir daqui”. E a gente fugiu com a Crimeia da casa do delegado e fomos morar na casa da prima dela.
“Os policiais não deixaram nos encontrarmos todos juntos. Foi angustiante e tivemos de esperar muito tempo para conseguirmos nos encontrar todos juntos”
[Neste momento, a tia de Janaína, Crimeia, a interrompe e complementa:]
Esse delegado foi meu vizinho e eu perguntei a ele: “Você sabe onde estão as crianças?” Ele respondeu: “Não”. E como eu não confiava na polícia, resolvi ir até a casa dele, a qual sabia onde era. Fiquei vigiando e um dia achei as crianças. Aí bati na porta dele e falei, “Meus sobrinhos estão aqui, sou tia e quero vê-los”.
E aí começamos a negociar que eu veria as crianças nos finais de semana. Até que eu falei: “Olha, na verdade sou mais tia deles do que você, eu vou ficar com as crianças”. Ele respondeu: “Vai ter de entrar na Justiça e eles não vão te dar a custódia deles, porque você é terrorista, você é mãe solteira. Eu vou ficar com as crianças!”.
Nesse meio tempo, consegui entrar em contato com a Rosa Cardoso, que era advogada dos pais deles, e pedi para que ela providenciasse a custódia das crianças. No dia em que ela me entregou os papéis, eu os levei sim, porque não ia pedir permissão ao delegado e dizer-lhe que estava com a custódia deles, isso não! Mas, legalmente, eu não os sequestrei.
Não me lembrava desses detalhes todos, mas lembro bem o dia em que a Crimeia falou: “Pega as suas coisas e vamos embora!”. Saí correndo para pegar minhas coisas, ela ficou nos esperando perto do portão. Atrasei-me um pouco e
fiquei com medo de que ela tivesse ido embora sem mim, mas ela estava lá me esperando e fui embora feliz da vida! O tratamento autoritário e insensível do delegado e de sua família deixaram marcas profundas em nós.
Muitos anos depois, soubemos que Edelton, era um delegado corrupto da delegacia de Lagoinha, em Belo Horizonte, de onde saíram vá rios torturadores para compor o temido DOI-CODI de Minas Gerais.
César e Amelinha fichados no DOPS
César e Amelinha fichados no DOPS
Meus pais foram soltos em outubro de 1973, se não me engano, e nos encontramos no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, onde morávamos com os meus avós maternos. Ficamos um tempo lá até meus pais conseguirem voltar para São Paulo, onde meu pai voltou a imprimir jornais clandestinos na gráfica que ele tinha, localizada no Bexiga, bairro central da cidade. Por causa dessas atividades, o processo dele foi reaberto. Nós fomos à audiência na segunda Auditoria Militar, que ficava na Avenida Brigadeiro Luis Antonio, para assistir ao julgamento final.
Esse foi um dos momentos mais tristes para mim porque não consegui entender o que estava acontecendo. Apenas vi os militares todos enfileirados, o juiz no alto, e meu pai com o rosto muito triste – nós ficamos muito tristes. Ele foi para a prisão porque teve de se apresentar à Auditoria para não nos colocar em risco, porque, do contrário, teríamos de viver na clandestinidade novamente. E não havia condições materiais suficientes para levar a família para o exílio ou permanecer na clandestinidade. Toda aquela história já havia sido muito traumática.
Após a nossa prisão e o reencontro da família, eu e meu irmão passamos a fazer terapia na PUC, com o pessoal do Sedes Sapientiae, graças à ajuda da Madre Cristina, figura incrível que ajudou muita gente.
A partir da segunda prisão de meu pai, em 1975, passamos a visitá-lo no presídio todos os sábados. E minha mãe, que é muito mineira, era a primeira a entrar e a última a sair.
O Edson nos contou sobre sua fantasia de ser um agente secreto, eu achava aquilo engraçadíssimo, pois amadureci demais para a minha idade. Desde a prisão, preocupava-me em proteger meu irmão, meu primo e em defender meus pais! Queria ser adulta para poder enfrentar os policiais e buscar meus pais na prisão! Depois, percebi que ter ficado meio adulta antes do tempo trouxe consequências muito difíceis e duradouras na minha vida, como distúrbios hormonais na infância que se prolongaram na vida adulta. Além de voltar a ter enurese noturna, passei a ter problemas com o sono (os quais de tempos em tempos voltam) e entrei em processo de puberdade precoce aos 7 anos de idade, o que levou a uma espécie de menopausa temporária, na vida adulta.
Acho que a principal característica dessa perda parcial da infância se apresenta por meio de um sentimento profundo de que ela se manifestará, sempre. A recorrência dessa sensação gera um sentimento de impotência enorme. A melancolia envolve a vida e, embora ela prossiga e tenha momentos felizes, a sensação de cansaço parece uma herança muito pesada para “carregar”. As demandas dessa infância perdida sempre retornam, cobrando seu espaço em momentos onde nem o corpo e nem a mente podem mais dispor do tempo de criança. Esse desencontro é bastante doloroso e se torna ainda mais intenso quando sinto as dificuldades inerentes ao ato de contar essa história.
Na escola, também não gostava de cantar o Hino Nacional. E não gostava de ter de mentir, eu sempre contava que meu pai era um comerciante que viajava muito, por isso nunca estava em casa. Os colegas, a professora e as mães dos amigos sempre perguntavam. Era difícil mentir e, às vezes, a gente era pego em contradição, pois o Edson contava outra versão…
Desse período, lembro-me muito das visitas que fazíamos a Dom Paulo Evaristo Arns na Cúria Metropolitana. Minha mãe sempre ia lá para falar com ele – sozinha ou em reuniões coletivas. As famílias de presos políticos faziam muitas reuniões com D. Paulo, naquela época. Geralmente, ele passava as mãos nos meus cabelos e com aquela voz tranquila perguntava como eu estava. Depois, oferecia balas e nos deixava brincar embaixo da mesa dele, enquanto conversava com minha mãe. Apenas lembro que saíamos de lá meio aliviados.
Eu também sempre ia às reuniões do jornal Brasil Mulher, porque muitas vezes minha mãe não tinha com quem nos deixar e acabávamos dormindo nos bancos ou sofás da sala. Depois, começaram as reuniões do jornal Movimento, onde minha mãe trabalhava, e do Comitê Brasileiro de Anistia, as quais eu frequentava
mais ou menos no mesmo padrão: brincava muito e depois dormia no sofá ou no colo de alguém. Mais tarde, comecei a ajudar a dobrar, colar selo no jornal e a entregá-lo de bicicleta no meu bairro. Acabamos conhecendo muita gente interessante e vários filhos de exilados; construímos algumas amizades duradouras e aprendemos muito!
Quando ocorreu a Chacina da Lapa, em dezembro de 1976, ficou um clima péssimo lá em casa, todo mundo acordou meio esquisito. Soube depois que minha mãe e minha tia passaram a noite queimando papéis e, sem querer, elas acabaram queimando quase toda a correspondência que trocamos nos anos de prisão. Uma pena, pois eu gostaria de ler as nossas cartas daquela época. Dias depois, minha mãe pediu para conversarmos e explicou que, talvez, o processo dela fosse reaberto e ela seria presa. Nós teríamos de ficar morando apenas com a Crimeia e o Joca. Nesse dia, chorei muito na frente de todo mundo, pois fiquei muito triste com a ideia de ficar sem pai e mãe também!
Felizmente, isso não aconteceu e pudemos esperar o dia em que meu pai foi solto. Ficamos quase o dia inteiro em frente ao antigo prédio do DEOPS/SP esperando por ele, quando, finalmente, ele saiu, ficamos muito alegres. Disso ainda me lembro.
Família reunida no presídio
Família reunida no presídio
Recordo-me da chegada do João Amazonas ao Brasil, em 1979. Fui escolhida para levar um buquê de rosas vermelhas para ele no aeroporto. Mas o que foi mais marcante na chegada do Amazonas é que nós fomos ameaçados pela Aliança Anticomunista Brasileira (AAA). Um dia, meus pais leram a carta de ameaça, que dizia que a gente poderia ser sequestrada ou sofrer um acidente no caminho para a escola. Eles disseram “Agora vocês vão ter de redobrar o cuidado para ir e voltar da escola”. Tínhamos de tomar todo o cuidado para voltar para casa porque eles não eram de brincadeiras, esse era o pessoal que explodia banca de jornal etc. Aí, eu fiquei realmente preocupada e com medo.
Era uma infância que todos tentavam tornar mais ou menos normal, mas certamente era rodeada de muito medo e tensão.
Então fomos estudar no colégio Equipe, ainda em 1979, onde ganhamos bolsa de estudos. No primeiro dia, o diretor me perguntou, “O que você espera do colégio?” Eu respondi, “Poder falar tudo o que penso”. Ele ficou meio espantado. Depois, ajudei a organizar várias greves no colégio, seja para não aumentar a anuidade ou para evitar a demissão de alguém. Eles não gostaram muito disso. Até que suspenderam a minha bolsa, não sei se pela agitação política ou em decorrência da crise econômica aguda vivida pelo país naquele momento. A despeito desse fato, o ambiente lá era super legal, saudável e foi onde comecei a ter uma atuação militante, podendo dizer que eu e minha família tínhamos sido presos. O que nos deixava mais aliviados, reconfortados.
No Equipe havia um ambiente intrigante, que despertava nossa curiosidade, e também queríamos acelerar o processo que culminaria com o final da ditadura. Ainda havia muitas dúvidas sobre o sucesso da chamada “transição política”. Eu queria ser militante para ajudar a acabar com a ditadura e naquela escola havia militantes de quase todos os grupos políticos da época.
Em 1982, outro fato nos deixou apreensivos. Por ocasião dos dez anos do início da Guerrilha do Araguaia, as famílias de desaparecidos propuseram ao PCdoB a realização de uma revista onde fossem publicados documentos e fotos inéditos ou pouco conhecidos sobre a guerrilha. Meu pai, que trabalhava na editora, e minha tia, uma das poucas sobreviventes, empenharam-se muito para produzi-la e até eu ajudei. A revista2 foi apreendida e os militares iniciaram um inquérito na Justiça Militar. Naquele momento, consideramos que, talvez, a Crimeia pudesse ser presa novamente. Depois, o inquérito acabou sendo arquivado, mas ficamos preocupados. As famílias tiveram que fazer um empréstimo para editar a revista e acabamos sendo obrigados a vendê-la clandestinamente para repor o dinheiro. Vendiam-se exemplares da revista para pessoas como Teotônio Vilela, Chico Buarque e, por solidariedade, muita gente pagava mais do que ela valia. E, assim, foi possível quitar essas dívidas.
Tínhamos muito medo, mas tínhamos amigos. Houve muita solidariedade, o tipo de solidariedade silenciosa ou anônima.
Havia solidariedade de todos os tipos, tal como a do Padre Renzo Rossi, originário de Florença (Itália), que nos “adotou”, tornando-se uma figura meio paterna, meio de avô, e que ajudava muito. Meu pai é diabético, então precisávamos de ajuda, porque era muito difícil mantê-lo com a insulina e os remédios necessários. A Rosa Cardoso, a nossa advogada, ajudava; a Teresa, a professora que me alfabetizou, ajudava; a Ana e o Alemão; a Érica ajudava…Muitos foram solidários conosco.
Fiquei muito contente quando descobri, muitos anos depois, como a minha prisão, de meu irmão e da minha tia grávida de 7 meses foi denunciada desde o primeiro momento. Em 1994, soube pelo próprio D. Cândido Padin, bispo de Bauru, que ele fora o intermediário, junto à Anistia Internacional, das denúncias sobre a nossa prisão. À época, expressei em público minha gratidão, pois até então, não sabia quem havia sido o portador dessa ajuda tão valiosa.
Em 2007, descobri uma pasta de documentos sigilosos nos arquivos da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, onde havia um documento datado de 9 de fevereiro de 1973 relatando uma denúncia sobre a prisão de minha família à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Esta denúncia saiu do DOI-CODI através de Rioco Kayano, que havia sido transferida para o DEOPS e, por isso pôde encontrar-se com seu irmão. Ele relatou as torturas e ameaças de morte sofridas por meus pais a um advogado que escreveu a referida carta. Presumo que essa carta deve ter sido a fonte da denúncia de D. Cândido Padin.
Aos 8 anos, fiz um poema para dar de presente de aniversário para o meu pai. Esse poema chama-se “Dói gostar dos outros”. É um poema triste, tem erros de português porque eu ainda estava aprendendo a escrever. E o Renzo gostou dele, conheceu a história da nossa família através de uma carta, na qual meu pai incluiu esse poema. Ele veio da Bahia para o Rio de Janeiro só para nos conhecer. Depois ajudou a publicar um livro3 na Itália, organizado pelo famoso jornalista e deputado da esquerda independente do PCI e, depois do PDS, Ettore Masina, no qual havia poemas relacionados com a ditadura brasileira, entre os quais o meu. Na introdução, Masina contou a história da minha família. Esse poema foi publicado – e a nossa história contada – em vários jornais de esquerda, de exilados, de grupos de defesa dos direitos humanos etc.
Em diversas oportunidades minha família protagonizou denúncias dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura. Através de uma série de iniciativas, inclusive por meio desse poema, minha família insistiu em contar a nossa história. Quando meus pais foram processados na Justiça Militar, em 1973, eles ainda estavam presos e sob ameaça de voltar às torturas, mas não deixaram de denunciar que
os filhos e a tia grávida haviam sido presos, e que o Danielli fora assassinado sob tortura. Por isso, no livro Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985, consta a nossa história3 (Note-se que 25% das pessoas processadas na Justiça Militar daquele período tiveram a coragem de denunciar torturas em juízo). A família sempre denunciou também o sequestro, as torturas e a prisão (de quase um ano) sofridos pelo meu avô materno, ainda em 1964 (ele e meus pais foram condenados em um Inquérito Policial Militar (IPM), em Minas Gerais, no ano de 1966, e passaram a viver na clandestinidade desde então).
Nesse sentido, meus pais escreveram um depoimento em 28 de outubro de 1979, registrado em cartório naquele mesmo ano, onde na última página diziam: “(…) As crianças de nosso país precisam também de uma anistia ampla, geral e irrestrita. Precisam que se lhes devolvam o direito de serem crianças no tempo certo.” Nesse depoimento, eles contam que durante as torturas, sofreram ameaças de que seus filhos seriam assassinados caso não contassem o que sabiam.
Apesar de ser uma experiência muito dolorosa, minha família se esforçou para denunciar o coronel Ustra como torturador – em 2008 ele foi condenado em uma ação civil movida por nós contra ele –, assim como os demais crimes de que foi testemunha. Fazemos questão de denunciar que Ustra e o comandante do II Exército, Humberto de Souza Mello, torturaram pessoalmente minha tia Crimeia, então grávida de 7 meses.
Não é coincidência que uma história com essa gravidade não conste no meu habeas data (solicitado em 1993). Não há nenhum registro sobre o sequestro de que fomos vítimas entre 1972 e 1973. Não obstante, há menção a diversas atividades políticas das quais participei. As forças de segurança mantiveram minha vida sob vigilância. Nele, encontram-se informações incorretas ou inventadas, mas nada sobre o sequestro.
Edson e Janaína Teles
Edson e Janaína Teles
O medo esteve sempre presente e foi retomado em diversas ocasiões da minha vida. Fiz psicoterapia várias vezes para tentar reelaborar essas experiências traumáticas. E as ameaças permaneceram no período democrático. Em 1996, auxiliei as buscas e escavações realizadas no sudeste do Pará, para tentar encontrar os restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia, e lá nós fomos ameaçados. Também fomos ameaçados em 2001, com homem armado, no vilarejo de Santa Izabel, próxima a Xambioá (TO). Ou seja, as ameaças de morte, de sequestro ou de sumiço sempre estiveram presentes, inclusive no período democrático, não apenas durante a ditadura.
Aos poucos, resolvi que exerceria a profissão de historiadora. Sabia que teria de enfrentar críticas severas de historiadores que acreditam ser impossível manter certa distância do tema estudado, quando se está diretamente envolvido na história sobre a qual estudamos. Persiste ainda a ideia que menospreza a experiência vivida e que a separa da teoria, um procedimento bastante similar ao exercido em laboratórios de química. Eventualmente, persiste na universidade uma espécie de positivismo anacrônico.
A despeito dessas vicissitudes, quando divulgaram a existência da Vala de Perus, em 1990, acompanhei o esforço dessas mulheres e deste homem, Ivan Seixas, fantásticos, que pesquisavam, todos os dias, nos arquivos do IML. Aos poucos, fui compreendendo que tinha de ajudá-los como militante e como historiadora e acabei participando, em 1992, da comissão que investigava os casos de mortes e desaparecimentos políticos de São Paulo, criada pela então prefeita Luiza Erundina. E, a partir daí, comecei a pesquisar nos arquivos do DEOPS/SP e a participar da organização do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos publicado em 1995 e em 1996, e da edição de 2009.
Para a versão de 1995, ficamos cerca de quatro anos pesquisando nos arquivos do DEOPS. Naquela época, a universidade não se interessava muito por essa pesquisa. Depois, começaram a surgir projetos acadêmicos e passei a participar dessas pesquisas, mas continuei a reconstruir as histórias de morte e de vida desses militantes e a buscar informações e provas que pudessem despertar o interesse da sociedade para essa temática.
Entre 1992 e 1994, além de participar das pesquisas nos arquivos do DEOPS/SP – autorizada apenas aos familiares de mortos e desapareci- dos políticos – colaborei ativamente na campanha para que esses documentos fossem franqueados ao acesso público. Fui a única mulher a participar do debate organizado pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, que definiu os padrões de acesso a esses arquivos, o qual passou a ser irrestrito a partir do final de 1994.
Os problemas decorrentes da falta de acesso aos arquivos da repressão do período ditatorial persistiram. Assim, em 2005, coordenei juntamente com historiadores, estudantes e professores, a campanha Desarquivando o Brasil, a qual tinha por objetivo revogar a lei que mantinha o “sigilo eterno” dos documentos considerados “imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado” (lei 11.111/05). Muitos protestaram contra a lei e organizaram campanhas similares e, inicialmente, conseguimos liberar documentos do extinto Serviço Nacional de Informações (1964-1990) – custodiados pelo Arquivo Nacional desde dezembro de 2005 em regime de acesso restrito. Apenas em 2011, porém, conquistamos a Lei de Acesso à Informação e essa nova realidade está auxiliando a Comissão da Verdade e a historiografia brasileira. Não obstante, muitos arquivos permanecem inacessíveis, notadamente, os de órgãos militares de informação e repressão, tais como o Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e Centro de Informações da Aeronática (CISA).
“O medo esteve sempre presente e foi retomado em diversas ocasiões da minha vida. Fiz psicoterapia várias vezes para tentar reelaborar essas experiências traumáticas. E as ameaças permaneceram no período democrático”
As pesquisas nos arquivos do DEOPS tiveram uma importância adicional para mim, que foi pessoal. Durante muitos anos, não consegui “materializar” a presença do tio André na minha vida. Em 1992, porém, no dia da transferência dos arquivos do DEOPS/SP para o Arquivo do Estado, encontramos uma foto do André adulto (era a foto de seu passaporte) e, para mim, aquilo foi emocionante, pois pela primeira vez consegui perceber como o Joca era parecido com o pai!!! E senti algo como uma convicção, que antes era apenas racional, de que o André era mesmo parte da nossa família!!!!
Na minha pesquisa de mestrado, para entender o silêncio que predominava sobre os crimes da ditadura considerei necessário recuperar as histórias das famílias dos mortos e desaparecidos políticos no Brasil. E nesse período comecei adotar nas minhas análises uma perspectiva comparada, notadamente, com relação à história da ditadura argentina. Durante a pesquisa de doutorado, pesquisei as histórias e as memórias dos presos políticos brasileiros. Paralelamente, realizei um projeto de História Oral em vídeo na Universidade de São Paulo, em colaboração com a Universidade de Campinas, no qual gravamos oitenta entrevistas com presos políticos de vários estados, cerca de 320 horas, com o apoio da Fundação Ford do Brasil.
Essas pesquisas foram muito importantes para que eu pudesse me aproximar da experiência política desse período, o que me possibilitou aprofundar a análise crítica e a investigação factual da nossa história recente. Assim, tentei enfrentar também as minhas próprias experiências traumáticas, tanto no aspecto psicológico quanto no teórico e acadêmico.
Adotados pela Revolução Cubana – Virgílio Gomes da Silva Filho
Virgílio Gomes da Silva Filho
Virgílio Gomes da Silva Filho
Eu sou Virgílio Gomes da Silva Filho, filho de Virgílio Gomes da Silva. Há minutos atrás um companheiro me perguntava se notamos que tínhamos ficado com alguma sequela por conta do que aconteceu conosco. Eu falo que não. Porém, sempre que tocamos nesse tema eu não consigo falar. Mas vou falar. O que sempre me vem à memória é a nossa relação familiar. Assim como a vida de qualquer família da classe operária naquela época, nós tínhamos poucas coisas, mas éramos felizes. O convívio era bom e alegre. Foi assim até que comecei a perceber que o meu pai não estava tão presente. Muitas vezes ele tinha que se ausentar e hoje sabemos o porquê. A luta dele exigia isso para a segurança da família.
Na época, eu tinha 6 anos de idade já completados. Estávamos em São Sebastião num dia chuvoso, ansiosos para ir à praia, mas a chuva não nos deixava. Na esperança de que o sol aparecesse, eu e meu irmão [Vlademir] estávamos sentados na varanda da casa quando vimos se aproximar uma comitiva de três ou quatro carros pretos. Eles desciam na frente de uma casa, todos entravam e saíam, entravam no carro de novo, voltavam, andavam mais, desciam em outra casa e assim iam fazendo batidas em cada casa. Isso até chegar na frente da nossa, onde entraram. Alguns pela janela, outro pelos fundos, outro pela frente. Foram empurrando tudo. Estavam todos armados com metralhadoras, revólveres. O que eu mais lembro na época, o que mais me marcou foi o jeito que eles entraram e pegaram o Manoel Cyrillo. Jogara-no no chão, começaram a dar chutes nele. Eram cinco ou seis em cima do Cyrillo e o resto tudo bagunçando a casa. Aquilo era um caos na minha cabeça. Não sabia o que estava acontecendo. Estávamos minha mãe, o Vlademir, a Isabel e eu. Não sei o quanto de tempo isso durou.
Fomos retirados às pressas da casa e levados para o carro da polícia. Quando passei por um dos carros, vi uma outra imagem muito forte que ficou gravada na minha memória. Foi de uma pessoa que eu não reconheci, que estava sentada no banco de trás do carro, todo amordaçado, ensanguentado. Estava sem camisa, com uma faixa no peito, olho todo roxo. Depois eu vim saber que esse era o meu tio Francisco Gomes da Silva, o Chiquinho, irmão do meu pai. Isso me marcou muito. Acho que me marcou tanto porque eu percebi que a brutalidade que eles cometeram entrando em casa iria resultar no que eu estava vendo dentro do carro. O que fizeram lá dentro com o Manoel Cyrillo ia se tornar aquilo que eu estava vendo dentro do carro.
Estava chovendo na estrada e a forma imprudente como dirigiam ocasionou um acidente. O carro rodopiou e capotou. Minha mãe estava com a Isabel nos braços e a preocupação com ela era tão grande que minha mãe se esqueceu de se proteger. Ao final, ela acabou desmaiando. Isso nos apavorou ainda mais, ver a minha mãe desacordada com a Isa nos braços e nós não sabíamos o que fazer.
Vírgilio Gomes da Silva é considerado o primeiro desaparecido da ditadura militar brasileira
Vírgilio Gomes da Silva é considerado o primeiro desaparecido da ditadura militar brasileira
Aí me lembro de nós já na Operação Bandeirante. Estávamos sentados numa sala pequena, eu e o meu irmão Vlademir. Nesse momento, a Isabel já não estava mais conosco. E uma mulher insistia muito em perguntar onde estava
meu pai. Eles não se dirigiam tanto a mim, mas ao meu irmão, perguntando onde estavam as armas, onde estava o meu pai, quem eram os companheiros do meu pai, quem visitava a minha casa. E obviamente não tínhamos respostas para essas perguntas. É totalmente absurdo pessoas que se diziam profissionais da lei interrogar crianças sobre uma coisa para as quais elas sabiam que não tínhamos resposta. Não sei qual era o objetivo deles fazendo tais perguntas em tom de interrogatório, de intimidação.
Eu tinha 6 anos, o Vlademir 7 e pouco, o Gregório tinha 2 e a Isabel quatro meses. O curioso é que nessa data em que fomos sequestrados pela polícia, o meu pai já tinha sido preso e provavelmente já estava até sendo morto. Mas eles continuavam perguntando pelo Virgílio. Não dá para entender. Acho que era um negócio mórbido, doentio. Eu imagino que quando prenderam o Virgílio automaticamente todo mundo ficou sabendo do troféu que eles tinham conseguido, mas ainda assim continu- aram torturando as pessoas, perguntando por alguém que já tinham matado. Então, da Ope- ração Bandeirante fomos levados ao Juizado de Menores, uma casa com muitas crianças.
[Neste instante, Ilda Martins da Silva, mãe de Virgílio, interrompe e diz:] “Acho que antes vocês estiveram no DOPS por dois dias. O Vlademir diz isso”.
Na minha memória de 6 anos, tem coisas que eu me perco. Lembro que a gente ficou num lugar que dava para ver o Minhocão, mas não sei se foi antes ou depois. Mas sempre acompanhado por aquela mulher e outro cara. Mas, a partir daí, o que mais me marcou foi o Juizado de Menores, que era um lugar onde tinha muitas crianças. Dormíamos todos numa sala onde havia camas separadas. E em outro quarto minha irmã ficava num berçário, onde tinha outras crianças de berço também. Era numa casa, que não sei onde, não sei o endereço.
Também nunca procurei saber onde foi isso, mas era uma casa grande como se fosse uma casa normal, com quintal nos fundos, onde as crianças brincavam. Todos as crianças que chegavam lá tinham a cabeça raspada, aquela coisa para não proliferar piolho. Mas eu me revoltei e não deixei cortarem meu cabelo. Fui o único que ficou com o cabelo comprido ali. Lá, de dia, as atividades das crianças eram normais. O ruim mesmo era de noite. Eu não queria que a noite chegasse, porque tínhamos que ser separados e tínhamos medo de não nos vermos mais. Além disso, era de noite que batia a saudade da nossa mãe e da casa, sempre que escutávamos choros e soluços de outras crianças.
Gregório, Isabel e Virgílio na casa da Iara Xavier, no aniversário do seu filho Arnaldo, em Cuba, em 1976. Ao fundo foto de Carlos Marighella coberta por bexigas verde e amarela
Gregório, Isabel e Virgílio na casa da Iara Xavier, no aniversário do seu filho Arnaldo, em Cuba, em 1976. Ao fundo foto de Carlos Marighella coberta por bexigas verde e amarela
O pessoal que cuidava das crianças nos levava para passear durante o dia, mostrando casas e perguntando se queríamos morar numa casa daquelas grandes, bonitas, com famílias que podiam dar melhores condições para nós, onde havia brinquedos mais bonitos. E nós, na nossa relação, eu e o meu irmão Vlademir, tínhamos um código natural onde eu sempre deixava a resposta para ele. Eu sempre optei pelo silêncio. E o meu irmão sempre foi muito maduro para a idade. Ele conseguia lidar com essa situação melhor do que eu.
Então, hoje, depois de muito tempo eu entendo por que de noite ele ia na minha cama, me levantava e me levava para o berço da Isa. E a gente dormia debaixo do berço dela. Também lembro que, várias vezes, como eu era mais ágil que o meu irmão, ele me levava na cozinha da casa e fazia pegar a lata de leite Ninho, preparava a mamadeira da Isabel e dava de noite para ela. Ele tinha essa lucidez.
Ficamos lá por uns três meses, até que os meus tios conseguiram nos resgatar. E como éramos quatro irmãos não dava para ficar todo mundo com um parente só. Fomos distribuídos, repartidos pelos meus tios. Eu fiquei com a minha tia Nair, irmã da minha mãe, o Vlademir ficou com meus tios Nora e Miguel, também irmão da minha mãe. O Gregório com a minha tia Iraci e a Isabel com a minha tia Geni. Comecei a estudar na escola Carlos Gomes, em São Miguel Paulista. E começamos a ver a crua realidade da sociedade capitalista. Eu vendia sorvete na rua, depois da escola. Mas às vezes comia mais do que vendia.
Quando saímos do Juizado de Menores eu já tinha completado 7 anos e o meu irmão 8.
Eu ainda não tinha noção da morte do meu pai. E minha mãe ficou mais nove meses presa. Até nossa saída do Juizado, não tínhamos visto a minha mãe, não sabíamos dela. Tenho meio que um bloqueio mental com relação a isso, não sei em que momento foi, se transcorreu muito tempo para começarmos a ter contato com a minha mãe. Nós éramos levados até uma esquina próxima do presídio Tiradentes, de onde minha mãe conseguia nos ver desde uma torre do presídio. Ela tirava a mão por uma frestinha, uma janelinha bem estreita e abanava um jornal. E minha avó ficava ali com a gente naquela esqui- na. E quando aparecia o jornal a minha avó falava: “Dá tchau que a sua mãe está vendo vocês agora”. A gente dava tchau para a minha mãe, mas nós não a víamos. Nessa época, minha mãe estava incomunicável.
O que me lembro de visitas ao presídio foi de um período mais à frente. Nós recebíamos presentes e lembranças dos presos políticos, artesanatos que eram fabricados por eles mesmos lá dentro. Teve até uma bicicleta que ganhamos, que foi presente dos companheiros do presídio. Aí sim me lembro que íamos visitar e fazer tipo um piquenique lá dentro, era como uma festa para mim lá.
Durante esse período de prisão da minha mãe nós permanecemos com meus tios. E quando ela saiu da prisão nós fomos morar em Poá, num terreno que um tio meu tinha cedido. Começamos a construir uma casa ali. Minha mãe não conseguia emprego em lugar nenhum e nós tínhamos que tentar sobreviver de algum jeito. Minha avó fazia paçoca, amendoim doce para vendermos. Em São Miguel Paulista, quando a minha mãe ainda estava presa, uma das minhas atribuições foi ser engraxate. A gente tinha uma caixinha de engraxate, que depois de vinte e tantos anos, quando voltei de Cuba o meu primo tinha ela guardada num canto da sala da casa, envernizada. Aquilo me emocionou muito.
Ilda, Isabel, Vlademir, Virgílio e Gregório na rua onde moravam durante o exílio no Chile, 1972
Ilda, Isabel, Vlademir, Virgílio e Gregório na rua onde moravam durante o exílio no Chile, 1972
Não tínhamos mais condições de morar no Brasil com essa forma de sobrevivência. Assim, companheiros orientaram e falaram para a minha mãe que nos ajudariam a sair do país. Isso foi em 1972. Saímos com destino ao Chile. Todo mundo com nome frio, documento falso. Moramos um ano no Chile no período do Salvador Allende.
Em março de 1973 fomos para Cuba. Lá foi onde conseguimos ter vida digna, infância feliz. Mesmo com a ausência do pai, nós tivemos todo apoio, todo suporte da Revolução Cubana, a solidariedade de todos os cubanos. Graças à Revolução Cubana hoje somos formados, profissionais. Sou engenheiro mecânico e engenheiro industrial. Tenho pógraduação em construção de maquinário. Meus irmãos também são formados. Vlademir é engenheiro geólogo, hoje concursado da Petrobrás; Isabel é engenheira geóloga também e Gregório engenheiro civil. Ou seja, o que todo pai faz pelo seu filho, o que é dever de um pai, dar assistência econômica e garantir a educação do filho para se tornar um homem de bem, um homem produtivo, a Revolução Cubana fez com a gen- te. Fomos literalmente adotados pela Revolução Cubana.
Mesmo lá em Cuba, apesar da colônia de exilados brasileiros, existia a vontade de voltar, de continuar a luta. Começamos a militar na juventude do Partido Comunista cubano. Estudamos, nos prepararmos politicamente para poder continuar a obra daqueles que tinham caído. O nosso sonho era poder fazer isso, poder ver realizada aqui no Brasil o que estávamos vivendo em Cuba. Havia aulas de português, geografia, história. O Takao Amano, e vários outros eram nossos professores naquela época. Tínhamos a parte política e a parte educacional também, aprendíamos português, porque eu praticamente fui alfabetiza- do em espanhol. Havia grupos culturais, sendo que um dos mais entusiastas era o Pedro Prestes, filho de Luís Carlos Prestes. Também havia um grupo musical e assim éramos introduzidos à cultura brasileira. Era muito forte e isso alimentava todo dia a nossa vontade de voltar. E o retorno aconteceu em novembro de 1993, quando houve um choque cultural enorme. Ainda hoje eu não me acostumo.
Em Cuba, primeiro moramos num hotel durante três anos, sem pagar um centavo. Minha mãe tinha que brigar para trabalhar de voluntária no hotel para poder se sentir útil. Mas não queriam deixar ela fazer nada. Davam escola, habitação, e tudo no hotel era de graça. Nós apenas tínhamos que assinar o que consumí- amos. Depois de três anos, o governo cuba- no nos ofereceu um apartamento com quatro quartos, sala, cozinha, banheiro, totalmente mobiliado com tudo, sem pagar um centavo. Nesse apartamento, moramos durante dezoito anos. Quando falo em choque cultural é porque lá nunca passamos o trinco na porta, os vizinhos não precisavam bater na porta nem anunciar visita, entravam como se fossem da família e o mesmo ocorria na casa deles. Se fal- tava açúcar numa casa, na outra tinha. Se faltava café numa casa, na outra tinha. Todo mundo se pergunta como a Revolução consegue, como o povo cubano consegue sobreviver nesse blo- queio econômico tão feroz que tem sobre ele. E um país que não tem nada de recursos naturais. Eles conseguem sobreviver e estão felizes e é isso, a solidariedade alimenta. Nós fomos tes- temunhas disso daí e chegando aqui no Brasil foi um choque enorme, tão grande, que até hoje a gente não se acostuma. Em Cuba, tinha uma rua e uma escola com o nome dele. O mais im- pressionante era isso, o meu pai lá em Cuba era um herói.
Gregório, Isabel, Virgílio, Ilda e Vlademir no Brasil, em 2010
Gregório, Isabel, Virgílio, Ilda e Vlademir no Brasil, em 2010
Eu acho que o mais importante agora é dar continuidade nesse processo de resgate da verdade, memória, tomar o exemplo de países como Argentina, Chile e Uruguai que conseguiram colocar no banco dos acusados aqueles que são responsáveis por tantas mortes, tantas torturas. É algo que temos que exigir, é impossível aceitar pessoas que mataram ocupem cargos públicos, sejam exemplos de cidadania, para gerações e gerações. Isso é ultrajante, humilhante e inaceitável. E usando da mentira, da amnésia que a história brasileira tem a respeito desse período.
Outra coisa super importante é chegar ao encontro dos restos mortais dos desaparecidos. Essa luta tem de continuar, não importa quanto tenha de escavar, alguém tem que saber onde estão. Não falo só do meu pai, falo de outros vários que estão desaparecidos até hoje. E eu ficaria feliz se nos livros de história, amanhã, eu visse que estão ensinando para as novas gerações que no período de 1964 até 1979 se matou muito aqui no Brasil.
A partir da aparição do laudo de necrópsia do meu pai em 2004, onde dizia que ele tinha sido encaminhado do IML para o cemitério de Vila Formosa, ficou demonstrado que ele realmente tinha sido encaminhado para lá. No livro de entrada dos corpos na Vila Formosa dessa data há uma página arrancada. Então não se sabe em que quadra ele foi sepultado e isso propositalmente, claro. Um dos funcionários do cemitério Vila Formosa relatou que há uns tempos atrás havia sido feita uma remoção de ossos, quando jogaram ácido para corroer os ossos e impedir a identificação numa das quadras e que provavelmente poderia ter sido a quadra que tinham sido sepultados os “terroristas” da época. E que tinha sido feito um ossário debaixo. Mas lá há uma laje, uma escada e um monte de sacos cheios de ossos, sem identificação nenhuma. Ali é um descaso total, é a coisa mais vergonhosa que pode existir.
O pessoal acha que está lidando com sei lá o quê, com qualquer objeto, menos com restos mortais E o local é impressionante, porque lembra até aqueles ossários da Segunda Guerra Mundial, dos campos de concentração nazista de tão desorganizados que era aquele negócio, tão assombroso… Aquilo me chocou muito, como pode ser que ainda exista hoje em dia um negócio desses? Então, para mim foi complicado.

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