sábado, 27 de dezembro de 2014

A PARANOIA DO BOLIVARIANISMO

Chávez
Em comum entre Chávez e Bolívar, apenas o sonho de unir a América Latina
Karl Marx pode ter sido injusto ao atribuir suas vitórias a mercenários ingleses e retratá-lo como covarde, brutal e, “como a maioria de seus compatriotas, avesso a qualquer esforço prolongado” em artigo de 1857. Preconceitos à parte, Bolívar esteve à frente da maioria dos caudilhos latino-americanos quanto à coerência e abrangência de seu projeto nacional. Daí a fazê-lo um precursor da esquerda do século XXI vai, porém, uma enorme distância.
Na época de Marx, Bolívar era pouco considerado por muitos dos próprios compatriotas. O culto à sua memória começou com o caudilho venezuelano Antonio Guzmán Blanco, que direta ou indiretamente governou a Venezuela de 1870 a 1888, celebrou o centenário do Libertador em 1883 e se apropriou de seu nome como precursor de seu projeto de modernização conservadora, personalista e providencialista. Dois outros ditadores venezuelanos, o general Eleazar López Contreras (1935-1941) e o coronel Marcos Pérez Jiménez (1952-1958), fizeram de Simón Bolívar, ao menos nas escolas e no meio militar, um pai da pátria acima de crítica ou relativização histórica em um grau superior a Tiradentes ou ao Duque de Caxias no Brasil.
Para um militar formado nesse clima, como Hugo Chávez, reinterpretar Bolívar era uma solução mais viável do que renegá-lo, tanto quanto foi menos penoso aos teólogos da libertação fazer uma releitura revolucionária dos Evangelhos do que abandonar a tradição cristã. Mas a admiração pelos aspectos mais progressistas do pensamento do Libertador pode ter contribuído para levar o chavismo a superar alguns dos limites do populismo latino-americano tradicional, como a perspectiva estritamente nacional, substituída por uma dedicação sincera à unidade latino-americana.
“Populismo” é outro termo esvaziado pelo abuso, mas, quando usado com seriedade, refere-se a discursos e práticas que pretendem representar a “vontade do povo” como os da verdadeira nação em contraposição a interesses estrangeiros. Geralmente se exprime por uma liderança carismática que se põe acima das classes e tenta conciliá-las com uma modernização capitalista combinada com políticas sociais. Na história da América Latina, a vocação centrista do populismo foi sempre tensionada pelo poder do imperialismo até a ruptura do equilíbrio: ou recorreu à mobilização popular contra as forças conservadoras e desliza à esquerda (caso de João Goulart) ou se concilia com elas até se descaracterizar, como se deu com Carlos Menem e com o PRI mexicano.
Quem pedir à mídia conservadora uma explicação sobre o bolivarianismo, verá ser incluído nesse rótulo qualquer política fora do consenso neoliberal do fim do século XX. Até partidos europeus como o Syriza grego, a Frente de Esquerda francesa e o Podemos espanhol têm sido arbitrariamente tachados como tais. Em versões de tons clinicamente paranoides, mas acolhidas por publicações brasileiras de grande tiragem, é uma conspiração articulada pelo Foro de São Paulo, “denunciado” como uma maçonaria secreta e misteriosa que obedece a um comando central e oculta a própria existência, embora suas reuniões sejam públicas desde a fundação, em 1990, e incluam partidos ferozmente hostis entre si como, por exemplo, os brasileiros PT, PPS, PSB, PPL, PCB, PDT e PCdoB.
Consultar a Wikipédia em português não é esclarecedor. “Aqueles que se fazem chamar bolivarianos dizem seguir a ideologia expressa por Simón Bolívar. Entre suas ideias estão a promoção da educação pública gratuita e obrigatória e o repúdio à intromissão estrangeira”. Por esse critério, poderiam ser chamados de “bolivarianos” o rei prussiano Frederico Guilherme, a rainha austríaca Maria Teresa, o Japão da Restauração Meiji ou qualquer projeto sério de construção nacional dos séculos XVIII e XIX.
Fanatismos à parte, é preciso convir em que as ideias do Libertador têm pouco a ver com a corrente política que reivindica seu nome. O Bolívar histórico de fato esteve mais próximo dos déspotas esclarecidos do século XVIII do que de Hugo Chávez.  Era um homem de seu tempo e como um líder da América Latina aspirava a criar uma grande nação hispano-americana em moldes autoritários e conservadores, com a oligarquia, os militares e o clero como colunas de sustentação e um presidente vitalício no pináculo.
Já no caso de Chávez (desde 1999) e dos movimentos sul-americanos nele inspirados que chegaram ao poder em 2006 ou 2007 e hoje integram a Aliança Bolivariana das Américas (Alba), a Bolívia de Evo Morales e o Equador de Rafael Correa, a opção pela esquerda e a prioridade à mobilização das classes oprimidas estiveram presentes desde o início, assim como a hostilidade da maior parte da classe média e do empresariado. Devem isso, em boa parte, à oportunidade criada por crises econômicas e políticas graves o suficiente para esvaziar os partidos tradicionais e torná-los os únicos capazes de unir o país.
Esse movimento teve desde o início um caráter mais progressista, latino-americano e anti-imperialista do que nacionalista. Nos três casos, conservadores tentaram golpes de força – Venezuela
em 2002, Bolívia em 2008 e Equador em 2010. Derrotados pela mobilização popular, solidariedade de vizinhos sul-americanos e fidelidade ou neutralidade das Forças Armadas, os golpes fracassados tornaram-se uma oportunidade para aprofundar reformas, isolar a oposição radical e, nos casos de Venezuela e Equador, processar jornais golpistas, quebrar monopólios midiáticos e cassar concessões de tevê com respaldo popular.
Esses regimes são populistas? Há traços similares, tais como a dependência de lideranças carismáticas, Executivo forte, o desenvolvimentismo e a tentativa de cooptar ao menos parte do empresariado, a chamada “boliburguesia” na Venezuela, mesmo quando também se fala em “socialismo do século XXI”. Assim como o peronismo e o getulismo, lidam com grupos mais à esquerda que os tacham de traidores e farsantes. Mas, semântica à parte, o bolivarianismo estica o modelo populista ao limite. Surgiu em contraponto menos aos equivalentes locais do coronelismo do que ao neoliberalismo pretensamente moderno dos anos 1990, tem uma abrangência maior, não se restringe às classes médias e operárias urbanas e busca de fato incorporar camponeses, indígenas, negros e excluídos. E o que mais os distingue dos precursores é a disposição de “refundar o Estado” e criar sistemas políticos com intensa participação popular por meio de plebiscitos e associações de bairros e comunidades com poderes para organizar localmente as obras públicas.
Na maior parte da América Latina, esse é um passo revolucionário. Pela primeira vez, a “nação” deixa de ser uma abstração a serviço de políticos, intelectuais e militares para se propor a mobilizar e integrar de fato a grande maioria. Esse é o ponto mais incômodo e inaceitável às classes médias brancas tradicionais e o motor do ódio expresso em termos classistas ou abertamente racistas: a ansiedade e a insegurança por perder privilégios antes tão “naturais” que nem precisavam ser justificados ou defendidos de forma explícita. Têm agora de compartilhar espaços e serviços antes “exclusivos” e concorrer por cargos públicos, bons empregos e oportunidades de negócios com as massas em ascensão.
Mas os chamados “bolivarianos” não são os únicos a enfrentar essa torrente de despeito e amargura. Em países igualmente flagelados pela desigualdade e pelo neoliberalismo, mas com instituições menos caóticas e partidos conservadores menos esfacelados ou desmoralizados, elegeram-se agremiações de centro-esquerda com projetos na mesma direção, mas dispostas a governar dentro do quadro institucional herdado e aceitar compromissos com oligopólios econômicos e midiáticos tradicionais e alguns partidos conservadores, caso de Brasil, Uruguai e Chile. São partidos habituados à cautela, surgidos de processos de transição mais ou menos delicados, a partir de ditaduras brutais que algumas de suas lideranças enfrentaram de armas nas mãos ou em salas de tortura.
Nesses casos, a redução ao “populismo” é um abuso. O respeito às instituições democráticas é até maior do que por parte da oposição de direita, o carisma pessoal não é decisivo (não mais do que em partidos liberais, pelo menos) e a organização partidária foi capaz de alternar lideranças sem traumas. Diferentemente do que se viu na Venezuela, onde Chávez lutou para se reeleger indefinidamente e negar sua mortalidade até o último momento, pouco depois de assumir o quarto mandato. Seu sucessor, Nicolás Maduro, ainda depende do carisma do falecido, a ponto de falar como se fosse seu médium e até puxar uma oração ao “Chávez nosso que estás no céu, na terra, no mar, em nós e nos delegados”.
Jorge Castañeda, o ideólogo mexicano da “terceira via” centrista à Tony Blair na América Latina, distinguiu os dois grupos como “esquerda carnívora” e “esquerda herbívora” e a oposição menos enlouquecida dos países da Alba aplaude esses últimos e os aponta como modelo, haja vista a alegação do venezuelano Henrique Capriles de ter Lula como modelo ao concorrer com Hugo Chávez e Maduro e os elogios ao líder brasileiro de Samuel Doria Medina, o mais bem-sucedido dos oposicionistas bolivianos na última eleição. Nem por isso esses governos escapam dos mesmos destemperos e de serem atacados como “bolivarianos” ou “comunistas” por suas respectivas oposições, que sobem de tom e se aproximam do golpismo quando suas expectativas são frustradas.
Uma terceira vertente, ou melhor, um caso sui generis é o da Argentina. Cristina Kirchner e seu falecido marido Néstor, assim como a maioria das lideranças do atual governo, não mostravam vocação bolivariana, ou mesmo autenticamente social-democrata, antes de 2002. Ao contrário. Apoiaram a maioria das políticas neoliberais do correligionário peronista Carlos Menem, inclusive a privatização da petroleira YPF. Seu Partido Justicialista não integra o Foro de São Paulo. Por estranho que pareça, filia-se internacionalmente à mesma Internacional Democrata de Centro à qual pertencem o brasileiro Democratas (DEM) e a CDU de Angela Merkel.
Os Kirchner são políticos à moda antiga, levados à esquerda por não ver outra forma de lidar institucionalmente com a revolta popular ante o colapso da conversibilidade e a moratória da dívida pública. Não mostram o mesmo empenho dos outros governos de esquerda pela integração latino-americana, não promovem uma redefinição da pirâmide social e não falam de socialismo, embora defendam direitos humanos e combatam oligopólios. Em sua ambivalência e nacionalismo à moda antiga, ainda representam a tradição do peronismo popular.
Importa pouco, no entanto, se o governo é carnívoro, herbívoro ou ambíguo quando as elites veem suas regalias serem erodidas, seu capital simbólico se desvalorizar e seus representantes políticos mostrarem poucas chances de virar o jogo em eleições democráticas. Daí a obsessão por assimilar todos os governos de centro-esquerda aos “bolivarianos” e representá-los como completos fracassos. A um olhar menos parcial é evidente que não é bem assim.
A Venezuela, sem dúvida, enfrenta dificuldades. Chávez e Maduro promoveram distribuição de renda, ampliação de serviços sociais e inclusão bem reais, mas falharam em transformar a fundo o setor produtivo. A dependência excessiva do petróleo continuou a inibir o desenvolvimento de outros setores e na medida em que este subsidia o consumo, os serviços públicos e as desapropriações, cada queda da cotação internacional põe em perigo as contas públicas e externas, acelera a inflação e aumenta o risco de desabastecimento, como se não bastassem a má vontade do empresariado oposicionista e a má gestão da burocracia.
Reduzir o subsídio aos combustíveis e reajustar a gasolina hoje ridiculamente barata (equivalente a 0,04 reais por litro) ajudaria a reduzir os desequilíbrios, mas é uma decisão difícil. Foi justamente uma alta dos preços dos combustíveis que desencadeou a revolta de 1989 conhecida como Caracazo e a brutal repressão pelo governo de Carlos Andrés Pérez que abriu caminho ao seu impeachment, à desmoralização dos antigos partidos e à ascensão de Chávez. Os governos anteriores ao chavismo lidaram com os mesmos problemas e uma inflação ainda maior, sem proporcionar os mesmos avanços sociais. Por isso, apesar de todos os erros e dificuldades – e apesar de The Economist ter previsto o fim do chavismo praticamente a cada ano –, a maioria continuou a respaldá-lo em todas as eleições e plebiscitos dos últimos 15 anos, com uma única e acatada exceção.
Na Bolívia, a economia cresce mais que em qualquer outro país latino-americano, começa a se diversificar e a receita da nacionalização do gás e do petróleo parece ter mais estimulado do que inibido o desenvolvimento de outros setores. A inquietação social não desapareceu de todo e greves são comuns, mas o empresariado parece conformado, se não satisfeito. O desafio recente mais sério veio de setores indigenistas e ecologistas, que se consideram atropelados pelo desenvolvimentismo, exploração de recursos naturais e construção de estrada em uma reserva indígena. No Equador, o crescimento econômico também é satisfatório, mas igualmente há reclamações de comunidades indígenas, por causa da extração de petróleo em suas reservas. Em ambos os casos, a capacidade dos respectivos movimentos de transcender suas lideranças está por ser testada. Evo Morales parece sincero ao afirmar que seu terceiro mandato, a terminar em 2020, será o último. Já Rafael Correa, cujo terceiro mandato acaba em 2017, promove uma mudança constitucional que permitiria a reeleição indefinida.
Na Argentina, como na Venezuela, a inflação está fora de controle, o crescimento econômico é irregular e as dificuldades financeiras foram agravadas pelo conflito com os fundos abutres pela dívida externa. O governo não tentou obter a possibilidade de um terceiro mandato para Cristina Kirchner, cuja popularidade está desgastada. Ainda assim, a eleição presidencial de outubro de 2015 continua uma completa incógnita. A exemplo do Brasil, o povo diz querer “mudança”, mas a oposição de direita não consegue capitalizar esse anseio. Seu principal representante, o empresário e prefeito de Buenos Aires Mauricio Macri, tem 32% das intenções de voto ante 28% do peronista Sergio Massa. Este, embora tenha rompido politicamente com Kirchner, de quem foi chefe de gabinete, e fundado seu próprio partido, representa essencialmente a mesma política. Analistas acreditam que o governo, quando definir seu candidato, mobilizará um terço dos votos. A ruptura da Argentina com o mercado financeiro internacional ainda é profunda demais para uma gestão neoliberal ortodoxa e, embora uma oscilação do pêndulo à direita possa ocorrer, dificilmente será drástica.
No Brasil e no Uruguai, o crescimento econômico tem flutuado entre satisfatório e medíocre, embora os progressos sociais sejam inegáveis. Para a maioria, a economia não vai mal, mas a relativa estagnação econômica e as dificuldades com segurança e precariedade de serviços sociais resultaram em uma vitória suada para Dilma Rousseff em 2014. No caso do Uruguai, os prognósticos de uma virada à direita mostraram-se totalmente falsas e Tabaré Vázquez pode enfrentar o segundo turno com tranquilidade.
No Chile, é cedo para avaliar Michelle Bachelet, que volta ao poder com o compromisso de efetuar reformas educativas e sociais sérias negligenciadas pelo centro-esquerda por décadas. Depois de ter se portado por 20 anos como uma tímida “terceira via” até ser abandonada pela maior parte da juventude, a esquerda chilena aproveita a segunda oportunidade criada pela insatisfação com o governo neoliberal de Sebastián Piñera para tentar uma gestão mais autenticamente social-democrata. Enfrenta uma previsível reação da classe média na forma de passeatas de pais de filhos em escolas particulares contra a retirada dos subsídios a essas instituições em favor das escolas públicas gratuitas, mas um recuo seria desastroso.
É um dilema que as esquerdas, bolivarianas ou não, precisam enfrentar. Nem sempre é possível contar com alto crescimento econômico para abafar os conflitos de classe e garantir que todos ganhem. Quando não há perspectivas de avanços sociais reais e a economia não vai tão bem, é fácil à oposição oferecer a manutenção do que existe com uma gestão mais “competente”.  Conservar o apoio popular implica progredir e desafiar as elites com os riscos derivados dessa opção, por mais que se respeitem os caminhos democráticos.
*Reportagem publicada originalmente na edição 826 de CartaCapital, com o título "Esse tal de bolivarianismo"

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