A síntese perfeita...
Prefácio PEREIRA, Amauri Mendes. Para além do racismo e do antirracismo: A construção de uma cultura de consciência negra. Itajaí:Editora Casa Aberta, s/d.
Por Paulino de Jesus Francisco Cardoso[1]
Nas páginas que se seguem leitor, você irá deparar-se com diferentes histórias. De um lado o escrutínio de um século de reflexão acadêmica sobre as populações de origem africana: de Nina Rodrigues a Jacques D’Adesky. De outro, uma avaliação de quarenta anos de luta antirracista em nosso país, tendo o Movimento Negro Brasileiro como protagonista. Tudo isto inspirado nas perspectivas pós-coloniais de Homi Bhabha, Paul Gilroy, Edward Said e Kwame Appiah.
Trata-se de um estudo de fôlego em que cada capítulo poderia ser uma tese. Neste sentido, é delicioso perceber como o autor exibe um grande conhecimento bibliográfico. Amauri discorre sobre distintos pesquisadores e pesquisadoras, vivos e mortos, de diferentes áreas das ciências humanas, como se estivesse tomando um suco de caju em um cantinho qualquer da bela São Sebastião do Rio de Janeiro.
O tom gostoso, pessoal, quase familiar, quase memorialista, nos introduz/seduz pelos caminhos da pesquisa e faz percorrer cada aspecto de seu objeto de forma exaustiva e compreensiva. Ora demonstrando os avanços de um pesquisador para o conhecimento, ora apresentando os limites e incongruência dos seus feitos.
Eu, historiador, apegado a narrativas, deixaria tudo para trás e começaria pelo capítulo cinco, explorando sinais que evidenciam uma prática cultural posicionada para além do racismo ou antirracismo, na configuração de um campo discursivo que materializa uma cultura negra, fruto da ação do próprio Movimento Negro Brasileiro.
Entretanto, Amauri Mendes Pereira tem muito a dizer. De fato, na construção do seu “objeto” e, igualmente nestas quatro décadas de militância antirracista, o autor compreendeu que grande parte das auguras vívidas pelos afrodescendentes nascem, ou tem uma grande contribuição, da academia brasileira. A mesma academia que reluta em encarar as desigualdades raciais, que tornou a raça um conceito estruturante da sociedade brasileira. A cada dia me convenço que as resistências internas à democratização do ensino superior estão vinculadas a uma consciência difusa de ser a universidade o bastião da supremacia branca em nosso país. Adoraria estar errado.
Aprendemos com Amauri Pereira, que mesmo acadêmicos antirracistas, engajados na luta por promoção de igualdade, com as exceções de praxe, parecem não ver nos descendentes de africanos autores/atores capazes de refletir sobre suas próprias experiências.
O não explicitar do lugar de onde falam, no desconforto de uma branquitude atuante e envergonhada, coloca em questão o problema absolutamente Moderno da autoridade da enunciação. Tornados objetos de ciência por ação dos Estudos das Relações Raciais e dos Estudos Afro-Brasileiros, as antigas “amebas” pulam da lâmina do pesquisador, abandonam o microscópio e resolvem apontar os equívocos dessa forma de conhecimento. Trata-se do retorno da legitimidade da experiência como forma de produção de verdade.
No discurso de parte dos intelectuais brancos, a prática dos movimentos sociais, nem sempre serena, tranquila, distante, parece um contraponto ao racionalismo científico dos seus textos. No estilo Amauri, Academia não rima com “pé na porta”. Ou como diria um provérbio africano “enquanto os leões não começarem a escrever sua própria história, a história continuará a ser a história dos caçadores”.
Mas o acadêmico Amauri Pereira, em sua tese, não deixa de mirar os dilemas das experiências antirracistas. Embora capoeirista de boa cepa, militante de vida inteira, quantas vezes não teve de provar sua negritude, diante a presença, para muitos, da pouca melanina em sua pele. Décadas de antirracismo também o alertaram para os perigos do racialismo/racismo presente no pan-africanismo essencialista que reduz as experiências das populações de origem africana a memória do Movimento Negro.
Pergunto-me, por outro lado, agora como historiador ranzinza, se uma certa apologia do herói, aquele que por atos, gestos e palavras, alcançou a imortalidade das estrelas e outros seres que viviam para sempre, combina com existências cuja dignidade política emerge das lutas cotidianas, como diria Maria Odila Leite da Silva Dias, para arrancar das garras da fortuna migalhas da sobrevivência? Pode seu pai, sua mãe e seu avô, serem alçados a condição de heróis da vida de todo dia, suas memórias não tem direito a história? Impertinências de uma coerência cartesiana que retorna pelas portas dos fundos...
Amauri, irmão e companheiro, desde os tempos do I Encontro de Negros do Sul e Sudeste, das leituras do Jornal Maioria Falante, dos Cadernos de Terceiro Mundo, dos textos em espanhol do Colégio do México, ou em português de Portugal, neste trabalho nos brinda com uma reflexão acadêmica gerada a partir do exame de nossas vidas, convida-nos a realizar um balanço de nossas práticas, repensar as bases epistemológicas de nosso discurso e ampliar os horizontes de expectativas. É um texto feito de sentimentos, vivências e reflexões, uma celebração da vida e da esperança...
Ilha de Santa Catarina, verão de 2013.
[1] Possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atualmente é consultor - Casa das Áfricas, membro da Comissão Técnica Nacional para Educação dos Afro-Brasileiros do Ministério da Educação, membro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR/SEPPIR) e professor associado da Universidade do Estado de Santa Catarina. Coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UDESC. É presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).Tem experiência na área de História, com ênfase em História e Populações de Origem Africana no Brasil , atuando principalmente nos seguintes temas: negros, educação, história, populações de origem africana e multiculturalismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário