Eliane Brum, revista Época
O mundo de grandes solidões e pequenas delicadezas de uma casa de velhos.
Rosa Bela Ohanian, de 89 anos Viúva, sem filhos, até oito meses atrás ela morava sozinha num casarão em Copacabana. Foi colocada na instituição pelos sobrinhos. Nasceu em Nova York, morou na Dinamarca, foi funcionária diplomática em Washington. Canta e toca piano. Sente falta de novidades e conversas. Emerge apenas de tempos em tempos do quarto e da melancolia. Então canta.
De repente, eles chegaram lá, ao portão de ferro da Casa São Luiz para a Velhice. A vida inteira espremida numa mala de mão. Deixaram para trás a longa teia de delicadezas, as décadas todas de embate entre anseio e possibilidade. A família, os móveis, a vizinhança, as ranhuras das paredes, um copo na pia, o desenho do corpo no colchão. Reduzidos a um único tempo verbal, o pretérito, com suspeito presente e um futuro que ninguém quer.
Eles também pensaram que a velhice era destino de terceiros. Jamais suspeitaram que estariam nessa situação. Lançados numa casa que não é a sua, entre móveis estranhos, faces que não reconhecem, lembranças que não se encaixam. Não foi assim com seus pais e avós. Atropelados pelo bonde da modernidade em que a juventude é um valor em si, foram deixados na porta porque outros decidiram que o tempo deles acabou.
“Nem quis me despedir de minha casa”, conta Sandra Carvalho. “Só pedi a meu filho que me trouxesse a estante com os bibelôs, um sofá, a cadeira de braço, uma mesa e meus retratos. E, desde então, vivo com o que sobrou.” Sandra veio com o marido doente. Ele morreu há oito meses. Sandra ficou. Os netos cresceram nos retratos, os olhos dos filhos conquistaram novas nuances, a casa foi alugada para outro. Até a cidade ganhou e perdeu. Sandra não viu.
Há algo de trágico no portão de ferro da Casa São Luiz. Melhor que a maioria, a instituição é limpa, decente e cheia de mimos. Igual a todas, é a última estação do trem, abrigo inventado para esconder os que não têm outro lugar, sobrevivem na brecha criada pelo avanço da medicina e pelas aflições da vida moderna. Também a casa uma anciã, completou 111 anos de existência desenrolados no bairro carioca do Caju, o mesmo do cemitério, destino final de todos que estão ali.
Sandra Carvalho, de 80 anos
Ela descobriu-se só, entre as sobras do lar que perdeu, a saudade do marido que partiu oito meses atrás e as fotografias da família. Foi colocada na casa pelo filho com melhor situação econômica. Queria viver com ele nos Estados Unidos. Não dá. Sandra diz que se apagou.
O Visconde Ferreira D’Almeida, fundador de fé fervorosa, segue cada passo no caminho de árvores rumo ao coração do lugar. Seu olhar de bronze é onipresente na vigília dos 257 velhos que compartilham uma cidadela dividida em seis torres batizadas com nomes de santos ou de famílias quatrocentonas do Rio de Janeiro que no passado fizeram polpudas doações para garantir uma vaga no céu.
Apesar da solidez da estátua do fundador, a instituição mudou com o tempo. Nasceu antes da invenção da aposentadoria, para abrigar os operários das fábricas de tecido do aristocrata quando já não tivessem forças para mover as máquinas. Um século depois, é habitada por doutores e comerciantes, empresários e intelectuais. Gente de classe média e também de sobrenome ilustre, capaz de pagar uma suíte particular. Restaram 54 paridos pelo berço original de desvalidos. Operários, empregados do comércio, costureiras, lavadeiras, domésticas que descansam o corpo em camas gratuitas de dormitórios arejados, mas coletivos. Como lá fora, entre os pobres e os ricos há uma longa escadaria, o poder inversamente proporcional ao número de camas que abrigam sono e sobressaltos.
Sandra Carvalho, mãe de três filhos, avó de seis netos e bisavó de dois bisnetos, tem a sorte de um quarto só seu. Do contrário, teria apenas um armário para guardar 80 anos de vida. Chegou ao portão pelas mãos do filho do meio. Queria morar com ele nos Estados Unidos. Não dá. “Seria muito complicado”, convence-se. “Queria ser cantora, fui costureira. Minha vida foi sempre tão cheia de controvérsias…” Acaricia o sorriso dos retratos do álbum de casamento, murmura: “Eu me apaguei aqui. É, me apaguei”.
Sandra, com o todos, é vítima da brutalidade de um tempo em mutação. Os passos lentos demais para a velocidade de um mundo que não perdoa quedas. Os velhos perderam afeto, amizade e calor, ganharam tempo. Vivem mais e melhor que seus pais e avós. Vivem mais sós. A morte social chega antes da derradeira batida do coração. Tornaram-se provas inoportunas de que a sociedade que os deixou no portão pisa em terreno pantanoso. Decidem na soleira que querem viver. E o fazem da forma possível, até porque têm idade suficiente para compreender que o possível não é pouco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário