sábado, 13 de junho de 2015

Taiguara: Hippie, comuna e sexy, morto pela censura

Por  | Alex Antunes 


No início de 1976 chegou às lojas o disco mais ambicioso de Taiguara, chamado Imyra Tayra Ipy. Chegou e desapareceu, em 72 horas, apreendido pela censura da ditadura militar, no mais épico embate registrado entre a criatividade e a repressão política no Brasil, entre generosidade e opressão. E criando um vazio que só hoje, quase 40 anos depois, começa a ser preenchido. Voltemos um pouco.
Taiguara nasceu em Montevidéu em 1945, durante uma temporado do pai bandeonista no Uruguai. Cresceu no Brasil, trabalhou com Cesar Camargo Mariano, Jongo Trio, Luiz Chaves do Zimbo , esse pessoal do samba-jazz. Mas se consagrou mesmo no final da década de 60 pelas participações bombásticas em festivais e grandes sucessos nacionais (“Hoje”, “Universo No Teu Corpo”, “Viagem”, “Berço De Marcela”, “Teu Sonho Não Acabou”, “Que As Crianças Cantem Livres”).
A marca estética da música “de festival” dessa época, com uma certa grandiosidade orquestral e poética, nunca abandonou o cantor, que não tinha vergonha de soltar a voz em melodias extremamente emocionais . Mas Taiguara, além de um melodista e letrista apaixonado, era também um hippie e um comunista – mesmo que essas coisas não combinassem esteticamente tão bem entre si.
O lado hippie-experimental, digamos assim, vinha ganhando espaço em seus discos, depois dos dois primeiros LPs de sucesso, em 69 e 70. Guitarras e órgãos lisérgicos foram ganhando espaço nos álbuns Carne E Osso (71), Taiguara, Piano e Viola (72) e Fotografias (73) – sem contar a arte de capa muito louca de 71, onde se sente a influência de todo o clima de invenção libertária do período, com Walter Franco, Jards Macalé e o Araçá Azul de Caetano, por exemplo.
Mas apesar do sucesso, o lado politizado tinha seu custo: Taiguara vinha se transformado também em um dos compositores mais politicamente perseguidos no Brasil, com 68 músicas censuradas, ao final. O ápice desse processo é o disco Fotografias, cheio de melodias lancinantes, ora com passagens quase progressivas, ora com grooves consistentes, pianos elétricos com pedais de efeito duelando com flautas, e desabafos sobre suas viagens para o exterior, esboçando já a angústia do exílio (“No Avião”, “Cartinha Pro Leblon” – provavelmente a única música já gravada com regional, bandoneon e voz processada –, “Nova York”).
E, como sempre, as músicas com nomes de mulher no título. Luiza, Marisa, Romaina, Laetitia, Eronita, Marcela, Amanda, Eva eram as personagens femininas constantes de suas letras. Na verdade, era esse Taiguara sexy que mantinha os outros três, o comuna, o lírico e o experimental no lugar, dando um sentido total à experiência. “A Transa”, de 1969, já era quase nossa “Je T’Aime (Moi Non Plus)”, com arranjo orquestral e baixo elétrico marcado, vocal falado – só faltam os gemidos. Mas, fora um ou outro breve escorregão machista, que pode ser creditado à ingenuidade da época, esse Taiguara pegador também era extremamente feminino, e solidário com o tesão alheio.
E é assim que chegamos a Imyra, Tayra, Ipy. Voltando de Londres em 1975, onde estudou música e gravou um disco (que foi integralmente censurado, apesar de ter 90% das letras em inglês), Taiguara chegou ao que seria seu combate estético final. Em Imyra, Tayra, Ipy o aspecto orquestral volta com toda força – mas totalmente reciclado econtemporâneo, arranjado por Hermeto Paschoal e regido por Wagner Tiso.
Na verdade, ao lado de Respire Fundo (1978), de Walter Franco, esse álbum é o mais sensacionalwho’s who da música brasileira, juntando, além de Tiso e Hermeto (que também arrebenta na flauta solo), Nivaldo Ornellas, Jacques Morelenbaun, Toninho Horta, José Eduardo Nazário, Mauro Senise, Paulinho Braga e o pai de Taiguara, Ubirajara Silva, ao bandoneon. Nazário ainda menciona em entrevista a J.T. Meirelles e Márcio Montarroyos, e há uma orquestra e coro, totalizando mais de 70 músicos. Praticamente uma síntese da melhor musicalidade de Minas, São Paulo e Rio (Som Imaginário, Barca do Sol, a banda de Hermeto e o futuro Grupo 1) à época.
Taiguara, além do piano, toca o sintetizador e o mellotron com que se familiarizou em Londres. Inspirado pelo livro Quarup de Antonio Callado, concebe o Brasil como uma terra em que disputam forças ancestrais indígenas, e os ocupantes repressivos. Pensando bem, o tema permanece totalmente atual.
O centro do disco é a faixa “Sete Cenas de Imyra”, onde se descreve esse combate, físico e metafísico. Sem querer exagerar nas confissões pessoais, eu simplesmente não consigo ouvir essa música sem me arrepiar dos pés à cabeça, e quase cair no choro. Isso desde que comprei um exemplar do vinil na época, sem sequer saber da apreensão. Nazário comenta na mesma entrevista as implicações cabalísticas do número 7 para Taiguara (a música “Sete Cenas” tem o andamento 7/8), e certas escolhas vibracionais do compositor, cuja casa no Rio, onde os ensaios ocorriam, era toda pintada de lilás (veja no site do disco).
O resto do disco tem música sinfônica, uma espécie de releitura jobiniana de “Aquarela do Brasil” (“Aquarela De Um País Na Lua”), manipulação de teipes (o antigo lado A, de 7 faixas, é todo interligado), uma cumbia cantada em castelhano (“Como Em Guernica”), uma do Clube da Esquina (“Três Pontas”, de Milton Nascimento), um pouco de bossa, baião e marchinha. Mas tudo com uma visão tensa da música brasileira em que paira outra influência, a de Egberto Gismonti – por exemplo no belíssimo instrumental “A Volta Do Pássaro Ameríndio”, que se parece com alguma parceria perdida de Milton e Egberto.
O punhado de letras politizadas (mas não planfetárias, usando metáforas ao modo de Chico Buarque ou de Ivan Lins), essas Taiguara sabia que não passaria pela censura, por uma razão simples: NENHUMA música dele passava mais pela censura. O drible foi mandar as letras para apreciação com seu nome incompleto, Chalar da Silva, e o de sua mulher, Gheisa (o mesmo truque de Chico quando usou o nome de Julinho da Adelaide). Mas a insana perseguição do regime contra Taiguara não deu mole, e toda a tiragem do disco foi apreendida nas lojas, nas tais 72 horas. Um show-ritual de lançamento nas ruínas das Missões no Rio Grande do Sul, marcado para o dia 1º de Maio de 1976, foi proibido 24 horas antes. Taiguara foi castrado em pleno ato de exuberância cultural.
E o Brasil perdeu um de seus melhores álbuns dos anos 70. Como diz a letra de ”Sete Cenas”: “A quinta cena é sofrer/ Cunhã curvada a chorar/ Tayra tensa a temer (...)/ Hoje faminta sou ré/ Como um cachorro vadio/ Arrasto inchado meu pé/ Por chãos de fogo e de frio”. Game over. Taiguara, mesmo lançando mais dois discos, em 1984 e em 1994, depois de viver na África e na Europa, estava morto “para o mercado”, exceto na forma de flashbacks de sucesso no rádio. Taiguara morreu de câncer, em 1996. Mas seu assassinato cultural aconteceu 20 anos antes. Ou não.
Depois de um lançamento exclusivamente japonês em 2002, finalmente, no ano passado, Imyra, Tayra, Ipy foi relançado no Brasil. Justamente pela Kuarup/ Sony, coroando anos de briga da sua filha, justamente chamada Imyra, pelo resgate do disco. E os shows desse lançamento em São Paulo serão daqui a um mês, dias 30 e 31/05, no Sesc Belenzinho, com os mesmos Wagner Tiso, Toninho Horta, Jaques Morelenbaum, Nivaldo Ornellas, Novelli, Zé Eduardo Nazário e convidados. Cena seis: “Vislumbre claro, visão/ Valei-me meu pai, que luz!/ Como se um trecho de chão/ Se erguesse em asas azuis/ Dobrando a curva do céu/ Pra mergulhar sobre o mal/ E o justo império de Ipy/ Chegasse ao mundo afinal”.
Nós recém-inventados brasileiros te invocamos, Taiguara, para o último ato da cabala tropical: “A cena sete é um saci/ Pé dentro do ano 2000/ No centro, sol do Brasil (...)/ Quero esse palco, esse chão/ Brinca tupi-português/ Dentro do meu coração”. Já.

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