TRIVELA
Por: Leandro Stein
Não é difícil encontrar quem aponte o dinheiro como um grande mal do ‘futebol moderno’. Não existe mais amor à camisa? As seleções ficaram em segundo plano? As relações dentro de campo se transformaram em um balcão comercial? Tudo culpa da grana. As acusações são até naturais, diante da dimensão econômica que o esporte ganhou. E perdurarão, já que nada indica que a situação mudará em breve, enquanto os milhões jorrarem. Nem parece que foi justamente o dinheiro o fator para quebrar importantes barreiras nos primórdios do futebol.
A partir do momento em que se instituiu, o profissionalismo foi fundamental para romper o preconceito de classes na Inglaterra. Foi o instrumento que permitiu de vez a entrada das classes mais pobres nos clubes, em 1885. Os proletários, que conciliavam o trabalho nas fábricas com os jogos em uma prática maquiada, puderam se assumir como jogadores de futebol. Já no Brasil, a introdução do profissionalismo provocou um reflexo ainda mais profundo na sociedade. Mais do que a aproximação de classes, foi o responsável por integrar em definitivo aqueles que eram excluídos pela cor de sua pele.
Se em 2013 o futebol brasileiro celebrou os 80 anos do profissionalismo, a data também poderia ser lembrada como a da abertura das portas aos negros no esporte nacional. E, se ainda há bastante a evoluir em relação às relações profissionais, muitas vezes de fachada e não durando mais do que quatro meses, o mesmo pode se dizer em relação ao preconceito de cor. O racismo continua proporcionando episódios repugnantes dentro de campo. No entanto, é impossível não se reconhecer o protagonismo do negro nessas oito décadas de caminhada. E que ajudou a mudar a cabeça da sociedade brasileira.
Não foi o pioneirismo, mas a massificação
O Vasco, campeão carioca em 1923
É verdade que em 1933 os negros já se faziam presentes na elite do futebol brasileiro. Porém, em uma posição inferiorizada, com poucos exemplos de glorificação. Raros, mas crescentes a partir da década de 1920. Bangu e Ponte disputam entre si o título de “primeiro clube no país a aceitar negros”. Já o maior expoente dessa integração foi o Vasco. O título do Campeonato Carioca de 1923 é representativo por ter sido conquistado por um time de negros, operários e suburbanos. Um exemplo dentro de uma sociedade racista, que ajudou a transformar o contexto do futebol nos anos seguintes.
Os “Camisas Negras” são um divisor de águas pela maneira como expuseram a questão dentro do futebol. Em um ano, os cruzmaltinos foram do triunfo na segunda divisão à maior glória do Rio de Janeiro. E de maneira irrepreensível, com 12 vitórias em 14 jogos. Um sucesso dentro de campo que se refletia inevitavelmente nas arquibancadas, com milhares de torcedores atraídos aos jogos.
O elitismo arraigado, contudo, permitiu à aristocracia que controlava o futebol brecar o processo iniciado pelos vascaínos – uma medida preconceituosa nada velada. O triunfo dos Camisas Negras provocou uma cisão no Campeonato Carioca. Além do torneio organizado pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres, o grupo de clubes aristocráticos fundou a Associação Metropolitana de Esportes Athléticos, com seu próprio campeonato. A acusação da AMEA era a de que o Vasco incentivava o profissionalismo ao integrar jogadores de classes inferiores e pagar prêmios pelos resultados positivos. A entidade queria que o clube demitisse 12 atletas pobres, a maioria negros, o que foi recusado pelo presidente José Augusto Prestes.
A divisão se manteve por apenas uma temporada. Em 1925, o Vasco se juntou à AMEA e disputou o Carioca ao lado de Flamengo, Fluminense, Botafogo e América, principais representantes da elite. A adesão foi costurada usando como justificativa a representatividade dos cruzmaltinos para o futebol carioca. A entidade fez vistas grossas às reticências contra as possíveis bonificações. Dava a sua permissão, assim, à participação aberta de jogadores de classes mais pobres – e, consequentemente, de negros – em sua competição, ainda que ela se limitasse a equipes que dificilmente disputavam a taça.
A presença de negros e mulatos era marcante em clubes como Vasco, Bangu, Bonsucesso, São Cristovão – campeão em 1926. Ainda assim, alguns resistiam a essa integração. E as conquistas de Flamengo, América e Bangu na virada entre os anos 1920 e 1930 davam justificativas a quem defendia essa posição. Entretanto, a tensão crescia com a difusão das gratificações do ‘profissionalismo marrom’. Um processo crescente que provocou a revolução em 1933.
Leônidas, Domingos, Fausto e Jaguaré: além das fronteiras
A adoção no profissionalismo no Brasil foi motivada por uma série de processos internos, mas só ganhou força pela influência crescente do futebol estrangeiro. A Itália passou a importar jogadores sul-americanos com origens italianas, os oriundi. Já a Espanha sequer pedia uma relação familiar. Foi assim que o Vasco perdeu Jaguaré e Fausto, ambos negros, para o Barcelona após conquistar o Carioca de 1929. A dupla só poderia atuar pelo Campeonato Espanhol caso se naturalizasse. Ainda assim, a condição em que estavam era suficiente para disputar a Copa da Catalunha. Mais do que isso, para embolsar um bom dinheiro.
A oferta financeira da Europa foi mais sentida na Argentina e no Uruguai, onde muitos possuíam sobrenomes italianos. A perda massiva de jogadores provocou a adoção do profissionalismo entre os clubes argentinos em 1931. Algo que abalou ainda mais os uruguaios, que passaram a permitir a remuneração no ano seguinte. E, sem regras que delimitassem a participação de estrangeiros em seus torneios, os países vizinhos passaram a atrair os jogadores brasileiros, em especial os negros, os mais talentosos.
A integração racial demorou a acontecer na seleção brasileira, com episódios até o fim da década de 1920 em que jogadores negros foram deixados de lado “projetar uma imagem composta pelo melhor da sociedade brasileira no exterior” – como declarou o presidente Epitácio Pessoa, na ocasião do Campeonato Sul-Americano de 1921. No início dos anos 1930, a segregação era menor. E por isso que Domingos da Guia e Leônidas da Silva conseguiram o reconhecimento internacional.
Domingos da Guia acabara de se transferir do Bangu para o Vasco, mas uma regra da época, instituída para brecar o profissionalismo marrom, o obrigava a militar pelo segundo time no primeiro ano. Já Leônidas chamava a atenção de muitos, embora seguisse no Bonsucesso. Ambos foram os protagonistas na excelente sequência da Seleção em dezembro de 1932, batendo Uruguai, Nacional e Peñarol. Na chegada ao Brasil, foram festejados por milhares no porto do Rio de Janeiro, recebidos inclusive por Getúlio Vargas. Semanas depois, acertaram suas transferências: o Diamante Negro foi levado pelo Peñarol; o Divino Mestre, pelo Nacional.
Era uma razão a mais para pressionar os clubes em prol da mudança. Aqueles eram só os primeiros craques a perceberem seu potencial financeiro. Se nada fosse feito, outros seguiriam seus passos. Logo nos primeiros meses de 1933, o profissionalismo eclodiu no Rio de Janeiro, com a criação da Liga Carioca de Football por América, Bangu, Fluminense e Vasco. Logicamente, houve quem resistisse. O Botafogo, então campeão carioca, temia perder competitividade e liderou a defesa do amadorismo.
No entanto, o movimento ganhava mais adesões do que opositores, em pouco tempo gerando reflexos em São Paulo. Temendo a perda de jogadores, sete clubes paulistas lideraram a mudança nos estatutos da Associação Paulista de Esportes Atléticos. Em 12 de março, São Paulo e Santos inauguraram a nova era. A mudança ganhou apoio da Fifa, ainda que a CBD tenha negado o profissionalismo até 1937.
A integração promovida pelo profissionalismo
O Bangu, campeão carioca em 1933
Ganhar dinheiro através do futebol era uma grande oportunidade. Alguns negros já ocupavam posições de destaque na sociedade: médicos, advogados, engenheiros. Entretanto, era um processo lento, menos de 50 anos depois da abolição da escravatura. A diferença social, muito mais marcante naquela época, era notada pela quantidade de negros nas camadas mais pobres. Ser profissional, jogador de futebol, não era nenhuma vergonha.
Por outro lado, a elite branca tinha seus pudores. “O jogador branco, de boa família, não tinha medo só de se tornar profissional, tinha vergonha também. Se jogasse mal, ninguém abriria a boca. ‘Eu sou amador, não devo nada ao clube’. O clube é que lhe devia. Fosse um profissional perder um gol certo, cercar um frango, para ver uma coisa”, escreveu Mário Filho, no clássico O Negro no Futebol Brasileiro. “Viver do clube sendo, para os amadoristas, quase o mesmo que viver de mulher. Uma espécie de cafetinização”.
Enquanto existia esse afastamento entre as elites, a profissionalização era numerosa entre os negros. Afinal, era entre eles que estavam os melhores jogadores. Não era mais preciso empregar o time inteiro em uma fábrica, só para fingir que seus rendimentos vinham do trabalho braçal. Foi a deixa para que os primeiros grandes ídolos surgissem, as massas passassem a acompanhar ainda mais de perto os clubes. Leônidas da Silva, Domingos da Guia, Fausto, os grandes craques voltaram ao Brasil.
“Era a vez do preto, o agora sim. Ia-se a um treino de um Fluminense, de um Flamengo, de um América, de um Vasco, os pretos se amontoavam na pista. Não admira, portanto, que um time quase inteiramente de pretos fosse o campeão de 1933. Para se ter uma ideia, eram oito mulatos e pretos no time do Bangu”, complementa Mário Filho. “O fato de um jogador assinar um contrato, receber dinheiro do clube, não lhe diminuía a popularidade, não lhe tirava a consideração do torcedor, pelo contrário. Ele preferia o profissional, o que ganhava para jogar. Tanto preferia que não ia mais ver jogo de amador”.
O título do Bangu foi a prova cabal da integração que tomaria o futebol a partir do profissionalismo, tão importante quanto aquele conquistado pelo Vasco dez anos antes. Era o exemplo de sucesso que passaria a nortear a política de contratação de outros clubes que também queriam ser campeões. O Botafogo mudou de posição meses depois. O Flamengo montou um esquadrão com craques negros no final dos anos 1930, com Leônidas, Fausto, Waldemar de Brito, Domingos da Guia, e ganhou tanta popularidade justamente por isso.
Zizinho, Leônidas e Jair, símbolos do negro e do mestiço no futebol brasileiro
“Para além das paixões clubísticas, a democratização da prática do futebol, materializada na ascensão de jogadores negros e mestiços, permitiu que esse esporte viesse ocupar uma posição central na construção da identidade nacional”, analisa o cientista político Luis Fernandes, no prefácio da edição de 2003 de O Negro no Futebol Brasileiro. “Em oposição ao racismo aberto das velhas oligarquias, o novo discurso oficial passou a valorizar a mestiçagem, associando-a aos sucessos de uma ‘escola brasileira de futebol’ que expressaria nossa singular maneira de ser no mundo”.
O processo se encadeou. O sucesso daqueles primeiros negros do Vasco ajudou a impulsionar o profissionalismo. Que, por sua vez, abriu espaço em todos os clubes para negros, mulatos, pobres. A melhora na qualidade do jogo foi notável e ajudou a seduzir ainda mais o público. E o sucesso da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938, do time de Leônidas da Silva, foi a melhor exposição possível para aquele futebol negro, de ginga, de talento inegável. Graças a essa transformação, a mudança da mentalidade da sociedade em geral também pôde se renovar.
É verdade que, apesar da evolução, nem sempre o respeito imperou no futebol – como no resto do Brasil. O racismo ainda era fortíssimo na década de 1930, mesmo com o sucesso de tantos craques. Anos depois, com as derrotas nas Copas de 1950 e 1954 criaram um estigma que teve em Barbosa a sua maior vítima. As glórias muitas vezes foram sobrepostas por preconceitos. Ainda assim, 80 anos depois, dá para dizer que o futebol brasileiro deu a passos largos diante da questão. E se o Brasil tem tanto reconhecimento internacional, deve isso justamente à caminhada dos negros em sua luta pelo reconhecimento na sociedade brasileira. Algo que se agrega à celebração do Dia da Consciência Negra, neste 20 de novembro.
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