Déa Januzzi
Acordei de madrugada com vontade de escrever uma carta a mão, com papel de linho e caneta tinteiro. Caprichei na caligrafia, afinal, tenho letra bonita, redonda, igual à de uma professora primária. Será que hoje é ensino fundamental? Não sei mais, mas vou desenhar as letras, bordar palavra por palavra, porque perdi a medida do tempo, confundi noite e dia. O sol ainda está longe de surgir e eu me lembro que tenho de pintar os cabelos. Já estão bem brancos. Mas será que tenho mesmo de continuar pintando os cabelos?
Teve um tempo que eu escrevia crônicas em guardanapo, em pedaços de papel de pão ou qualquer papel que estivesse ao meu alcance. As frases saíam soltas, limpas, como se a poesia nascesse do papel. No dia seguinte, ia para a redação do jornal onde trabalhava e as mais jovens riam dos meus pedaços de papel rabiscados. Elas se divertiam com a cronista que escrevia a mão em pedaços de papel. E só depois transcrevia para o computador.
Hoje, quando acordo de madrugada e lembro que tenho de pintar os cabelos urgentemente e que algumas amigas da mesma idade já assumiram o branco total, me pergunto: porque eu, que sempre fui rebelde, ousada, libertária ainda não consigo? Pintar os cabelos para esconder a idade? Lembro-me de um amigo jornalista que um dia deixou escapar: “Eu estou ficando com os cabelos brancos e as minhas amigas cada vez mais ruivas e loiras”. Bem colocado, amigo, ser mulher tem dessas coisas. Será que pintar os cabelos apaga as marcas do tempo? Pelo menos nós mulheres achamos que sim, que é desleixo deixar os cabelos brancos em desalinho, principalmente eu que tenho os cabelos anelados, rebeldes.
Penso que tive a mesma inquietação quando começaram a me chamar de senhora numa dessas lojas de roupas. Olhei para um lado e para o outro para ver quem era a senhora ali e não é que não tinha mais ninguém na loja? A senhora era eu mesma. Confesso que até hoje o senhora me dá medo de reconhecer a própria idade.
É por isso que amanhã bem cedo vou correr para o salão. Vou pintar os cabelos e quem sabe as sobrancelhas, para ver se me sinto mais jovem, se param de me chamar de senhora. Nessa carta que escrevo à mão, com papel de linho e caneta tinteiro que já revela a minha idade, vou falar assim: “Nós mulheres precisamos fazer a rebelião dos cabelos brancos, um protesto contra as tintas, um manifesto contra a juventude eterna. Será que não podemos envelhecer?”
Pior que não. Ontem mesmo decidi ir a uma reunião de trabalho importante com os cabelos rebelados e sem o meu boné-esconderijo de fios brancos, um boné que me foi presenteado por uma das maiores chapeleiras da cidade, Lenice Bismarcker. Ela já partiu, mas o boné-esconderijo continua comigo. O preto do boné está ficando amarelado, mas ele é o meu guia, a minha identidade quando não posso colorir os cabelos. O boné é parte do meu corpo, como eram as lentes de contato há tempos. Perdi as lentes, coloquei óculos, mas o boné continua como uma espécie de bandeira, de transgressão. Sinal de outros tempos. Será que alguém se lembra do eterno boné de Che Guevara? O meu boné é isso: uma espécie de símbolo da guerrilha. Apesar de saber que, hoje, preciso fazer outra revolução – a dos velhos, se quiser ocupar um lugar em um mundo que envelhece, envelhece e envelhece.
Confesso que a experiência da importante reunião com os cabelos destampados e brancos me deixou insegura, principalmente porque o encontro era com um empresário jovem, com 30 e poucos anos. Mas a minha amiga foi ao encontro com os cabelos brancos. Ela decidiu não pintar mais. Então, tomei coragem, deixei o boné em casa, tentei ficar em paz comigo mesma, mas não é que atrapalhou? Tive vontade de enfiar a mão na bolsa à procura do boné-identidade, mas ele tinha ficado em casa. E agora o que eu faço? É relaxar, mas fiquei incomodada, tentando esconder os cabelos brancos, vocês imaginam?
Agora às cinco da manhã, quando escrevo com papel de linho e caneta tinteiro, tenho que confessar. O mundo ainda não está preparado para assumir os seus cabelos brancos, apesar da verdade demográfica do envelhecimento populacional. As mulheres não podem deixar os cabelos sem pintar, porque se tornam invisíveis mais do que já são depois dos 60 anos. Pego um táxi em silêncio mortal com a minha insegurança. Chego em casa, pago o taxista que me agradece: “Obrigada, senhora!”.
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