sábado, 20 de dezembro de 2014

ASSIM CAIU O MURO DO CARIBE

Um assessor de Obama e um diplomata hispânic
o dos EUA forjaram a aproximação com Cuba em nove reuniões com negociadores da ilha

Os cubanos planejam como tirar proveito da mudança




Barack Obama conversa por telefone com Raúl Castro no Salão Oval, na presença do Ben Rhodes e Ricardo Zúñiga, entre outros. / CASA BRANCA

Barack Obama se aproximou de Raúl Castro. Saudaram-se. Castro sorriu. O encontro ocorreu em dezembro de 2013, no funeral de Nelson Mandela em Johanesburgo (África do Sul). Foi breve: seis segundos.

A cordialidade entre os presidentes dos Estados Unidos e de Cuba surpreendeu o mundo. Cerca de seis meses antes, eles haviam embarcado em um projeto secreto: o degelo nas relações entre dois países confrontados durante mais de meio século.


A queda do último muro da Guerra Fria na América é o resultado de um esforço que começou em 2009

Nesta semana, um ano depois da saudação no estádio, Obama e Castro anunciaram a normalização das relações. Washington e Havana trocarão embaixadores. Os EUA irão retirar Cuba da lista de Estados que patrocinam o terrorismo, e facilitarão o comércio e as viagens.

A queda do último muro da Guerra Fria na América é o resultado de um esforço que começou em 2009. Naquele ano Obama, um senador novato, chegou à Casa Branca com uma retórica inebriante, que prometia conversar com os inimigos de seu país e arrumar o mundo. Mas só no primeiro semestre de 2013 o presidente de EUA, a essa altura já em seu segundo e último mandato, autorizou o início de negociações que, além de emissários dos Governos norte-americano e cubano, incluíam o Vaticano na qualidade de mediador e o Canadá, com a própria Santa Sé, no papel de anfitrião da maioria das discussões. “Hoje a América decide se libertar das correntes do passado para alcançar um futuro melhor”, disse Obama na quarta-feira na Casa Branca.



Obama e Castro no funeral de Nelson Mandela. / REUTERS

As negociações começaram em junho de 2013 no Canadá

Esta é uma primeira aproximação sobre a negociação cubano-americana, elaborada a partir de entrevistas e declarações de participantes e observadores. Seus protagonistas são jovens assessores da Casa Branca – personagens que se parecem mais com coadjuvantes da série The West Wing do que com negociadores da Guerra Fria –, veteranos emissários do mais antigo aparato diplomático do mundo, o do Vaticano, e representantes de um dos últimos regimes comunistas do planeta. O processo envolvia vários espiões da velha-guarda e um cooperante, o norte-americano Alan Gross, detido em Havana em dezembro de 2009 e libertado em quarta-feira passada como parte da troca de prisioneiros resultante do degelo entre EUA e Cuba.

As negociações tiveram início em junho de 2013, no Canadá, mas a pré-história desse processo data de quase um ano e meio antes. O senador democrata Patrick Leahy, que acompanhou Gross no voo que o devolveu aos EUA, e seu assessor Tim Rieser conheciam bem os irmãos Fidel e Raúl Castro desde os anos noventa. E os dois estavam preocupados com a detenção de Gross.

No começo de 2012, Leahy e Rieser levaram o caso às autoridades cubanas, inclusive ao presidente Raúl Castro, e observaram “como isso podia conduzir a algo maior”, recorda Rieser. Comunicaram a manobra à Casa Branca.

“Leahy sentiu que esse era o momento, com Obama na Casa Branca, de tentar mover nossa relação com Cuba para outro lugar, e sabíamos que isso exigiria trazer Gross de volta”, explica o assessor do Senado, com experiência em outros casos envolvendo norte-americanos presos no exterior.


Mas eles advertiram ao Governo que apenas pedir a libertação do Gross seria “uma estratégia sem possibilidade de sucesso”. Segundo Rieser, “qualquer um que conheça alguma coisa dos Castro sabe que eles não reagem bem a ultimatos. Os cubanos deixaram claro que estavam ansiosos em falar com os EUA, mas que não estavam preparados para concessões unilaterais”.

Obama adotou, depois de chegar à Casa Branca, algumas medidas para flexibilizar o envio de remessas e as viagens de cubano-americanos à ilha. Mas, para se decidir a pisar no acelerador, ele antes precisou sofrer uma pequena humilhação na Cúpula da Américas de abril de 2012, na Colômbia, e ver como Cuba iniciava uma tímida liberalização.

Na cúpula, Obama escutou o clamor dos demais países do continente – inclusive aliados como a Colômbia e México – contra o embargo dos EUA a Cuba e em favor de convidar a ilha para a edição seguinte do encontro. Depois de ser reeleito em 2012, sem alarde Obama instalou Cuba entre as prioridades da sua política externa. Depois do fiasco da cúpula, o presidente substituiu o seu conselheiro para assuntos latino-americanos, Dan Restrepo, por Ricardo Zúñiga, com o objetivo de impulsionar o contato com Havana.

No primeiro semestre de 2013, o presidente autorizou “discussões exploratórias” com funcionários cubanos. As primeiras trocas de mensagens se deram por intermédio da Seção de Interesses dos EUA em Havana, que exerce as funções de embaixada desde o rompimento das relações diplomáticas, em 1961, e das delegações dos dois países na ONU, em Nova York.

Obama designou dois emissários atípicos: seu redator de discursos e assessor predileto para política externa e um diplomata nascido em Honduras, com experiência em assuntos cubanos.


Depois do fiasco da Cúpula das Américas de 2012, Obama trocou seu assessor para assuntos latino-americanos, a fim de impulsionar o contato com Havana

Ben Rhodes, nascido em 1977, e Zúñiga, nascido em 1970 e emigrado para os EUA quatro anos depois, formam uma dupla peculiar: pouco conhecidos fora dos círculos diplomáticos e políticos de Washington e sem o peso de outros negociadores do passado, como Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski.

Poucas pessoas gozam da confiança do presidente como Rhodes. O rebuscado nome do seu cargo – assessor presidencial e conselheiro-adjunto de Segurança Nacional para Comunicações Estratégicas e Redação de Discursos – não reflete sua influência real. Rhodes era um aspirante a romancista quando os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York, sua cidade, mudaram sua vida. Começou a escrever discursos para o congressista Lee Hamilton. Em 2008, entrou para a equipe de campanha do então senador Obama. Sua vitória o levou à Casa Branca, onde seus poderes não pararam de crescer. O acordo com Cuba não foi o primeiro que ele ajudou a negociar com um país rival. Em 2011, contribuiu para o processo de diálogo com o regime militar de Myanmar e a consequente abertura política nesse país do Sudeste Asiático.

A trajetória da Zúñiga, filho de um diplomata hondurenho e uma cidadã dos EUA, é diferente. Não provém da política, como Rhodes, e sim do serviço diplomático. É desde 2012 o diretor do Conselho de Segurança Nacional para o Hemisfério Ocidental, e antes havia sido conselheiro político na Embaixada dos EUA em Brasília, dirigiu o Escritório de Assuntos Cubanos no Departamento de Estado e passou pela Seção de Interesses dos EUA em Havana.

Fã da série de TV House of Cards, que retrata o mundo das intrigas políticas, e leitor de Mario Vargas Llosa, o diplomata foi conselheiro-adjunto para assuntos políticos da Embaixada em Madri entre 2004 e 2007, período em que se ocupou da cooperação antiterrorista entre EUA e Espanha.

No Vaticano, destaca-se o papel do sempre discreto Pietro Parolin, que foi núncio apostólico (embaixador da Santa Sé) em Caracas entre 2009 e 2013 e atualmente ocupa o cargo de secretário de Estado (primeiro-ministro) do Vaticano.

As tentativas de obter a identidade dos negociadores cubanos foram infrutíferas.


O Canadá atuou como anfitrião – mas não como mediador – em pelo menos sete das nove sessões. Seis reuniões ocorreram na capital, Ottawa, e uma em Toronto, a maior cidade canadense. Rhodes e Zúñiga usaram aviões comerciais para esses voos curtos, sem despertar suspeitas nem alterar suas agendas na Casa Branca. A distância de Havana é maior: cinco horas.

Não é por acaso que o Canadá foi o local escolhido. Trata-se de um aliado próximo dos EUA e membro da OTAN, mas há décadas é um dos países ocidentais mais próximos de Cuba. O Canadá era, assim, um campo neutro, comparável ao papel que Áustria ou Finlândia costumavam exercer na Guerra Fria. O Canadá jamais rompeu relações diplomáticas com Havana.

Nos primeiros meses deste ano, as negociações obtiveram um impulso decisivo. Primeiro, depois da reunião do papa Francisco com Obama, em 27 de março no Vaticano. Depois, quando os EUA recorreram a uma tática habitual na Guerra Fria, tirando da manga a cartada da troca de prisioneiros: um cubano que havia espionado para os EUA e estava detido em Cuba havia quase vinte anos.


A nova cartada permitia que os EUA apresentassem a negociação como uma troca de espiões, já que Gross era para Washington tão somente um agente de cooperação humanitária – tese mantida até o final.

Rieser, o assessor do senador Leahy, continuou participando do diálogo, em “contato estreito” com Zúñiga. Seu objetivo era apoiar e assessorar Obama e Zúñiga nas discussões.

Em meados deste ano, o Papa enviou cartas a Obama e a Castro. Nesse momento, segundo Rieser, as possibilidades de um acordo entre Washington e Havana já eram “muito boas”. Mas também se sabia que tudo podia ir pelos ares a qualquer momento: se a saúde de Gross piorasse, o processo descarrilaria, e o degelo poderia ser adiado em anos ou décadas.


Na Cuba de hoje, a presença da Igreja Católica ainda é muito frágil em comparação ao papel que desempenhou na transição em países como Chile e Polônia

Cuba estava consciente disso. Em quatro telefonemas meses atrás, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, advertiu a seu homólogo cubano, Bruno Rodríguez – a quem conhecia desde a época em que foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado –, que se algo acontece com Gross “nunca haveria uma melhora na relação com os Estados Unidos”, conforme relato de um funcionário do Departamento de Estado que pediu anonimato.

O papel do Vaticano foi central. Durante os últimos meses, as reuniões internas no Vaticano foram numerosas. Como o Canadá, a Santa Sé nunca interrompeu as relações diplomáticas com Cuba. Mesmo assim, desde a época de João XXIII, nos anos sessenta, a direita mais radical punha em circulação o rumor de que Fidel Castro seria excomungado. “Não sei de onde saiu essa história”, diz hoje o secretário particular daquele pontífice, o cardeal Loris Capovilla, que acaba de completar 99 anos. “Mas é só uma lenda. Isso jamais passou pela cabeça do papa João nem dos seus sucessores.”


O milagre é que ninguém tenha ficado sabendo até esta quarta-feira

João XXIII se irritou muito quando soube que, logo após a revolução comandada por Fidel Castro, padres e freiras começaram a deixar Cuba às pressas. “Não podem fugir, a Igreja não foge nunca, é preciso que fiquem ali!” Aquele aborrecimento do papa Roncalli é recordado agora por Capovilla, já então seu secretário particular: “Nunca poderei esquecer a dor e a decepção do papa João pela fuga do clero local depois da chegada de Castro ao poder”.

Naquela tarde o Papa estava furioso e não parava de repetir: “As relações diplomáticas não se interrompem nunca!”. Aquele aborrecimento se traduziu durante as décadas seguintes em uma aproximação constante, silenciosa, muitas vezes difícil, mas tão firme que dois papas considerados muito conservadores, João Paulo II e Bento XVI, apoiaram as relações diplomáticas visitando a ilha.

Na Cuba de hoje, a presença da Igreja Católica ainda é muito tímida em comparação ao papel que desempenhou na transição em países como Chile e Polônia. “E, no entanto, a Igreja é hoje a única entidade que recebe apoio do exterior em Cuba e não é criticada por isso pelo regime castrista”, declara Eusebio Mujal-Leon, professor na Universidade Georgetown, uma instituição jesuíta de Washington, e autor de vários livros sobre Cuba e a América Latina.


Com essa negociação, encerra-se um capítulo na diplomacia e na presidência de Barack Obama

Não resta dúvida de que o Vaticano deseja penetrar na ilha. Se igrejas forem abertas e padres forem enviados, será o primeiro passo na direção, por exemplo, do ensino religioso nas escolas e do acesso à televisão, parte de uma possível estratégia de evangelização da Cuba pós-castrista.

Foi no Vaticano que, em outubro, selou-se o acordo sobre a troca de presos e os primeiros passos para a normalização. Em novembro, na última reunião, no Canadá, os negociadores acabaram de ajustar os detalhes técnicos.

O milagre é que ninguém tenha deixado vazar nenhuma informação até a manhã da quarta-feira, quando a Casa Branca sinalizou que o acordo seria anunciado.

“Era preciso manter em segredo desse jeito para que funcionasse”, diz Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação de Cuba e coautor do livro Back Channel to Cuba (“canal secreto com Cuba”), que narra os contatos sigilosos entre Washington e Havana a partir da revolução de 1959. “É possível que seja o último grande episódio de diplomacia por canais ocultos entre os Estados Unidos e Cuba”, acrescenta Kornbluh.

Com essa negociação, encerra-se um capítulo na diplomacia e na presidência de Barack Obama. Em julho de 2007, quando Obama disputava a indicação democrata à Casa Branca contra a experiente Hillary Clinton, um cidadão perguntou a ambos num debate se eles estavam dispostos a se reunir com o líder de Cuba sem condições prévias.

“Sim”, respondeu Obama.

Clinton respondeu que não.

Agora Obama, que se declarou aberto a viajar a Havana no futuro, pode cumprir aquele vaticínio.

Esta reportagem foi elaborada por Yolanda Monge, Joan Faus e Marc Bassetsem Washington e Pablo Ordaz em Roma.

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