domingo, 19 de abril de 2015

O SER MULHER ENTRE A SERPENTE E A ESTRELA

PENSADOR ANÔNIMO
Ao olhar para trás e observar qual a imagem criada da mulher por nossa história ocidental judaico-cristã, não há como não se deliciar com o magnífico resumo estampado no título da música de Zé Ramalho: “Entre a serpente e a estrela”. Pois, é justamente entre Eva e Maria que encontramos o vir a ser feminino.
Sim. Esta foi a imagem ambígua criada para a mulher e que ainda nos dias atuais fomenta os traços marcantes sobre as duas únicas supostas opções possíveis do vir a ser feminino, baseadas essencialmente no aspecto sexual da mulher. Demonstrando, portanto, um significado utilitarista, através do olhar e dos interesses do outro, o homem.
Representada ora por Eva – a pecadora, o demônio de saia, a tentação -, ora por Maria – a virgem santa, a imaculada, a mãe de Deus -, a mulher tem sido, ao longo dos tempos (através da ausência ou presença de um hímem), o reflexo cruel desta doença histórico-social denominada maniqueísmo. Restando a este ser humano apenas duas únicas opções de tornar-se alguém.
Em nossa amada língua portuguesa o que costuma distinguir uma mulher boa de uma má é a simples troca de uma letra por outra: a letra R pela letra T. Desta forma, resta à mulher a única, trágica e irreversível escolha entre ser ‘pura’ ou ‘puta’. E sob este absurdo duelo é que se tem erguido, até a presente data, a nossa sociedade tão desigual e preconceituosa.
Através da utilidade que a mulher teria dentro de uma sociedade machista e patriarcal, fez-se em carne e osso – feito um milagre de Hades, o deus das trevas -, o estereótipo feminino. E assim é que existiram mulheres e mulheres, boas e más, moças de família e mulheres da vida, puras e putas, esposas e prostitutas. Aquelas que serviriam à reprodução do filho do homem e aquelas que serviriam ao prazer sexual masculino.
O tornar-se mulher não passava de uma questão meramente biológica: a menstruação. O hímem tornara-se o selo divino e a mulher, este homem incompleto (como diria Aristóteles), um objeto de mercadoria, cuja moeda de troca, tornara-se o sexo, seja pela reprodução, seja pela busca do prazer.
Destinada unicamente ao campo do privado, a mulher não possuía uma história, não tinha acesso a vida pública e foi proibida, portanto, de tornar-se um ser social. E uma vez privada deste vir a ser, não cabia à mulher o direito à liberdade arendtiana que consiste no direito à ação individual pública – que pode ser contemplada e respeitada pelo todo -, mas, apenas ao religioso livre arbítrio do bem e do mal, manifestado pela vontade ou ainda necessidade individual de sobrevivência. E como poderá alguém tornar-se livre quando não consegue sequer desprender-se de suas próprias necessidades vitais?
É exatamente este o problema que ainda reside em nossa atual sociedade e que não permite a igualdade social entre homens e mulheres: a ausência do exercício prático da liberdade arendtiana. Embora tenham conquistado, ainda que através de duros golpes, o direito civil (e até mesmo militar) à vida pública, homens e mulheres ainda não exercitam, não vivenciam e não compreendem a liberdade conquistada. E como poderiam utilizar um instrumento desconhecido?
Homens e mulheres ainda não se desprenderam de suas necessidades vitais. Embora muitos não tenham condições reais de fazê-lo – pois é impossível exigir do faminto que se desprenda da fome sem que tenha condições de alimentar-se -, outros, sequer percebem o quanto são apegados em suas vontades privadas, em seus desejos fúteis e egoístas para que possam provar dessa liberdade pública de ética, ação e respeito.
E é por esta razão que a visão maniqueísta e sexual da mulher ainda se faz tão viva. Os deveres, os direitos e, portanto, as ações sociais conquistadas não têm força e significado algum se não forem praticadas através da ação pelo interesse público. De que adianta possuir o direito de ir e vir se este é utilizado unicamente em prol de uma vontade privada? Muitas vezes, guiados até pela influência cega às vontades de outrem?
O que tem de fato diferenciado estes tempos modernos dos tempos de outrora é que muitas mulheres – ao adquirir a liberdade pública de ação -, têm utilizado, em prol de suas vontades individuais privadas, os mesmos estereótipos que há tempos atrás as acorrentavam. Em outras palavras, o sexo ainda continua sendo uma moeda de troca, mas, o objeto, a mercadoria, deixou de ser unicamente um papel feminino, na medida em que a mulher também utiliza essa moeda em seu benefício, como um meio para atingir determinado interesse. Seja utilizando a máscara de uma mulher ‘pura’ ou a de uma ‘puta’, pois, em ambos os casos é utilizado o estereótipo maniqueísta-sexual, há tempos apregoado em nossa sociedade.
Os resultados destas ações não poderiam ser menos danosos do que aqueles que existiam antes da ascensão feminina. Ao utilizar a liberdade de ação a fim de realizar interesses exclusivamente particulares, ou seja, que não trazem quaisquer outros benefícios além da realização de um objetivo imediato e específico de uma vontade individual qualquer, o que é público, o social, o todo padece. Os preconceitos antigos não são extintos, mas, mutilados e remodelados. O caos, advindo das ações egoístas, prejudica a ética e o respeito necessários para que exista um espaço de liberdade mútua entre os indivíduos. E desta forma, a organização deste caos dependerá sempre de uma instituição totalitária que coordenará e disciplinará os corpos através de regras objetivas e duras penalidades que inibem os indivíduos à força, sem qualquer conscientização, sem liberdade.

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