terça-feira, 26 de maio de 2015

A peste do ódio se alastra no Brasil e a dignidade humana fica na berlinda

JUSTIFICANDO
ROBERTO TARDELLI

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Por Roberto Tardelli


Eles venceram a primeira parada. Comemoraram e devem ter ido, bêbados e febris, para casa, já muito tarde da noite. Deram uma lição sobre como fazer o que sequer os militares conseguiram, o que sequer os generais e seus comandados, que rasgaram e despedaçaram a Constituição ousaram fazer. E o fizeram em data emblemática, em que comemoram, ruidosamente uns, silenciosamente, muitos, o aniversário do Golpe de 1964. Nem os sinistros Atos Institucionais, que juristas de plantão chamavam de poder constituinte originário, conseguiram ter a cara de pau que tiveram, nesta semana, os congressistas do pior Congresso que já elegemos. O regime militar não chegou a tanto: exilou, baniu, prendeu, matou, colocou-se acima do Bem e do Mal; houve o jurisconsulto respeitável que aconselhou bem e os fez inscrever na Constituição, aquela uma que para nada servia, que os atos praticados pelos militares não eram suscetíveis de apreciação pelo Poder Judiciário; mas não ele chegou a tanto.
Às favas com os escrúpulos, bradou-se no dia em que o mais terrível dos atos institucionais, o de nº 5, foi outorgado. Depois daquele dia, o Brasil praticamente foi colocado em um estado de sítio permanente e todas as liberdades e direitos individuais foram tornados apenas teóricos, tigres de papel. O Estado Policial se reforçou e os poderes eram praticamente ilimitados, infinitos. As pessoas eram intimadas a depor e muitas não voltaram ou voltaram aterrorizadas porque desciam ao inferno da tortura, que prosseguiu depois de terminado o regime. Mas, nem naquele período, o mais sombrio de nossa história recente, tão sombrio que sobre ele pouco falamos às novas gerações, houve algo tão monstruoso como na terça, no Congresso Nacional democrático brasileiro.
O regime militar entrará para nossa História como um momento em que nosso país mostrou sua face mais cruel, mas os escrevinhadores do futuro hão de lhe fazer justiça e hão de afirmar, nem eles foram capazes disso. Por alguma razão absolutamente enlouquecida, em um regime marcado pelo arbítrio, não se ousou a tanto. A eles, que mandaram às favas os escrúpulos, havia um escrúpulo, uma vergonha remanescente que os impediu de lançarem-se ao gesto a que se lançaram os preclaros deputados federais brasileiros.
Eles venceram e o sinal está fechado prá nós, que somos jovens, dizia um antigo rock ou balada ou blues dos anos 70, imortalizado na voz de Elis Regina. Eles venceram. Mistificadores, fanáticos, odientos, demagogos, picaretas, tolos, bobos alegres, inocentes úteis, calhordas militantes, havia de tudo um pouco naquela triste maioria vencedora. Venceram triunfalistas e se sentem unidos para vencer e vencer de qualquer forma, surdos a quaisquer ponderações, querem o que sequer o regime militar quis. Se os escrúpulos foram às favas no golpe militar, nesta semana foram aos ratos, aos esgotos morais.
Nem mesmo a vergonha histórica que os cobrirá, nem mesmo o asco que causarão aos que vierem nas vagas de um outro tempo, como disse Brecht, nem mesmo a repulsa mundial, nada os deteve, porque os propulsores do ódio funcionaram com perfeição. São homens e mulheres feitos de ódio, plasmados em ódio, cultores do ódio, propagadores do ódio. Foram milhares e milhões de argumentos que, em vão, tentaram trazer alguma luz naquelas trevas de ignorância e estupidez.
Esse edifício de ódio, cuja pedra fundamental foi lançada tão festivamente pela grotesca maioria que a aplaudia, precisa ser posto abaixo. Esse edifício de ódio será um marco aberto no Brasil, que autorizará todas as formas de violência e de discriminação. Acossados por essa patrulha impiedosa estarão a homoafetividade e o sistema de cotas, por exemplo, os próximos que serão demonizados, culpados pela falência da família e do ensino.
Esse edifício precisa ruir e estará nas mãos de uma elite pensante brasileira essa dura missão. O Supremo Tribunal Federal há de se manifestar se aquela votação, que em breve será negada pela própria maioria que a gerou, na mentirocracia brasileira vigente, toca ou não no que os juristas de chamar de cláusula pétrea, nada mais que um conjunto de temas que são sérios demais para serem tocados e mexidos, ou extirpados. Na sua sinfonia gloriosa, a Constituição anuncia na saída de seu texto, na identificação existencial que a fez nascer das cinzas do regime arbitrário, que a dignidade da pessoa humana se constitui em um de seus maiores fundamentos.
Nada pode ser concebido, tratado ou votado, seja pela maldita maioria que for, se não for para o engrandecimento da dignidade humana de quem houver se estabelecido ou estiver de passagem por esse Hospício Continental chamado Brasil. Não pode porque agride um dos fundamentos da república, da res publica que a todos pertence. Os deputados que compuseram a triste maioria deram as costas, com seus assessores apaniguados, com seus puxa-sacos compulsivos, para um ensinamento elementar da Constituição.
Naquela turba estúpida, alguém deve ter entoado a plenos pulmões ou à capela o hino nacional, como o fizemos na Copa sem futebol. Provectos conservadores se apresentaram ao povão, falando um juridiquês intraduzível, com argumentos surrados e vis, indisfarçadamente preconceituosos, porque todos falaram com olhos e a mente voltados para os morros e para as periferias.
O Supremo vai dizer se pode ser alterada a Constituição quando ela estabelece um limite de segurança e de intervenção estatal. Se disser que sim, estará aberta a porta para a criminalização da infância, porque os mesmos argumentos que exigem o rebaixamento da idade penal para dezesseis anos hão servir para reduzi-la ainda mais, para catorze ou doze ou dez. E há um dado perverso nesse argumento: o respeitável jurista ao afirmar que o adulto manipula o adolescente para que ele assuma a autoria do crime que não praticou, para garantir sua impunidade, acaba por punir a vítima pela manipulação que sofreu, acaba por punir o garoto pela esperteza acanalhada do adulto.
É falacioso o argumento de que aos dezesseis anos, o ser vivente em território nacional elege o presidente da república. Elege, se quiser, porque nessa faixa etária lhe é facultativo votar. Vota se quiser. É uma forma de trazer o adolescente para o mundo em que irá entrar em breve, o mundo adulto. Um acolhimento de responsabilidades, que não pode se converter em uma punição.
Ninguém se dá conta do óbvio.
A redução da idade da imputabilidade foi levantada na campanha eleitoral que não acabou. Quem a levantou, voltou à atividade como um vulcão e espalhou as lavas de seu ódio pelas vielas mais pobres do país. É insuportável a ideia de que a redução da idade de imputabilidade penal diminuirá nossos vergonhosos índices de violência. É uma ideia torta demais, primitiva demais, estúpida demais.
Nossas cadeias serão ainda mais degradantes, nossos presídios serão ainda mais infames. Mais pessoas (mães, avós, irmãs, namoradas, pais, avôs, irmãos, namorados) terão suas vaginas e ânus abertos, explorados, vasculhados, muito além do limite do suportável ao que chamamos vulgarmente de humano. A cadeia precoce se transformará em política pública e o que consumir de recursos do erário será na conta de uma juventude perdida, drogada e desrespeitosa.
Se a horrorosa maioria parlamentar de terça fez o que causava repulsa aos militares, se a horrorosa maioria parlamentar de terça colocou o Brasil na contramão do mundo, se a horrorosa maioria parlamentar de terça celebrou a vitória de goleada do ódio e se tudo isso for aceito pela população, não haverá dúvidas que estamos doentes.
Essa doença nos porá delirantes, necessitando mais e mais de castigos, punições cadeias, nos afundando em um poço sem fundo de ressentimentos. Caímos doentes, enquanto nação.
Vítimas da Peste do Ódio, que ontem a horrorosa maioria parlamentar começou a alastrar.
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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