sábado, 30 de maio de 2015

Uma lei pode determinar o que significa família?

NUNCAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA (mf)



GALILEU

A forma como as pessoas se relacionam virou tema de discussão no Congresso e pode até ser decidida por lei, se o chamado Estatuto da Família for aprovado. Grupos evangélicos e movimentos LGBT estão em um embate ideológico — já que os casais homossexuais seriam especificamente atingidos

 POR GABRIELA LOUREIRO

A GRANDE FAMÍLIA: Laura Castro e Marta Nóbrega, atrizes e produtoras culturais, com os filhos Clarissa (cinco anos), Rosa (quatro) e José (três) em sua casa no Rio de Janeiro. | Sempre quisemos ter filhos. No começo do namoro eu brincava que teríamos três, porque nós duas tínhamos vontade de engravidar e também queríamos adotar. Acabou virando algo sério. Ao colocá-los na escola, tivemos medo de como seria a reação, mas encontramos um lugar fantástico. Os pais dos amiguinhos da escola hoje são nossos amigos, e mais uma vez fomos surpreendidas positivamente com a falta de preconceito. Na rua, às vezes nos perguntam quem é a mãe, e, quando respondemos “as duas”, as pessoas dizem “ah que legal, você tem duas mães”. As pessoas às vezes demoram um pouco para entender, mas estamos sempre dispostas a explicar. (Foto: Stefano Martini/ Editora Globo)
Em 2014, quando começou a frequentar uma escola particular em Maricá (Rio de Janeiro), Anthony, de três anos, percebeu que sua família era um pouco diferente das de seus colegas. As gêmeas têm pai e mãe, o amigo Pedro também, mas ele tem dois pais. Mesmo assim, não entendia muito bem qual era a diferença. Um dia, em casa, ouviu pela primeira vez a música “Para mamãe”, da Galinha Pintadinha, e ficou cheio de pontos de interrogação na cabeça. “Mamãe?”, questionou em voz alta mais de uma vez. Marcos, seu pai, explicou que existem diferentes composições de família, “com um pai e uma mãe, dois papais, duas mamães, só uma mãe, só um pai, ou com uma vovó”. Anthony entendeu, e hoje aponta sua família com orgulho na escolinha: “Papai Robson e papai Marcos”.
O que ele ainda não aprendeu é que existem muitas pessoas que não consideram válida uma família como a sua. Entrou em discussão na Câmara dos Deputados um projeto de lei de 2013 chamado Estatuto da Família, que determina que as uniões familiares brasileiras devem ser compostas exclusivamente por um homem e uma mulher por meio de casamento ou união estável, o que pode prejudicar a adoção de crianças por casais homossexuais.
De autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), o PL 6583/2013, que havia sido arquivado,foi desenterrado em 2014 pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que desde então vem tentando acelerar o processo de aprovação do estatuto. Procurada por GALILEU, a assessoria de imprensa de Cunha informou que o deputado não está disponível para falar sobre esse assunto.
De fato, o projeto é polêmico. Movimentos LGBT e defensores de direitos humanos têm feito campanhas contra a aprovação do estatuto com as hashtags #emdefesadetodasasfamílias e #nossafamíliaexiste, mas, em uma enquete no site da Câmara, 53% dos participantes votaram a favor do projeto. O resultado da consulta pública e a multiplicação das propostas conservadoras representam o avanço da chamada bancada evangélica no Congresso. Hoje, há 78 parlamentares da ala evangélica, oito a mais do que em 2010. Sem contar a presidência da Câmara, assumida por Eduardo Cunha.
Apesar de o Estado brasileiro ser laico – imparcial em assuntos religiosos e sem a interferência da religião em assuntos sociopolíticos –, os membros da bancada evangélica são conhecidos por interpretar a Constituição com um viés influenciado por suas crenças.
AVÓ É MÃE DUAS VEZES: Jessica Pellegrini, 23 anos, estudante de marketing, e a avó Maria das Graças de Souza, 88 anos, em São Paulo. | Moro com minha avó e minha madrinha desde que saí do hospital, e, embora tenha tido um convívio normal com minha mãe, nunca quis morar com ela. Tenho um irmão que mora com a minha mãe, eu e ela somos muito próximas, mas tem aquela questão de que a avó dá mais liberdade e faz o bolo mais gostoso, como dizem. Então, quando cresci, optei por continuar com minha avó. Hoje tenho 23 anos, minha madrinha já faleceu, e eu continuo morando com minha avó. Existe sim diferença entre ser criada por uma avó ou pelos pais, porque embora minha avó tenha feito muito mais do que minha mãe faria, eu sinto que falta algo. Mas não me arrependo, hoje faria a mesma escolha. Para mim, família mesmo é a minha avó. (Foto: Camila Fontana/Editora Globo)
DIFERENTES ARRANJOS
Nos últimos anos, os direitos LGBT também têm ganhado força no Brasil, com autorizações de adoção e união estável, além da popularização na mídia, com episódios como o do beijo gay na novela Babilônia (veja a linha do tempo abaixo). É também um reflexo do aumento das relações abertamente homoafetivas. Segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2010, há ao menos 60 mil casais homossexuais brasileiros. Para cada mil casamentos heterosse­xuais, há três uniões civis entre pessoas do mesmo sexo – para adotar, o casal precisa de algum tipo de contrato de união. “Acho que o estatuto é uma reação aos nossos direitos conquistados, ao fato de a nossa família não só existir como estar no papel, com filhos registrados, isso assusta grupos conservadores”, afirma Laura Castro, 33 anos, atriz e produtora cultural casada com Marta Nóbrega, com quem tem três filhos.
A família brasileira passou por mudanças profundas nas últimas décadas, e o núcleo formado por um casal e filhos já não é mais a regra. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, esse tipo de arranjo corresponde hoje a cerca de 50% das famílias brasileiras, uma taxa bem inferior à dos anos 1980, quando correspondia a 66%. Vários fatores estão envolvidos nessa redução, como a diminuição do percentual de casais com filhos (de 57,6% para 49,8% entre 1995 e 2005, segundo o IBGE) e o aumento do número de divórcios e separações e dos chamados arranjos monoparentais, ou seja, lares formados apenas por mães ou pais e seus filhos.
“Hoje vemos novos arranjos, gays e lésbicas que adotam ou pessoas solteiras que adotam ou criam uma criança da família, porque a família vai mudando. Tem gente que morou um tempo com os pais, um tempo com a avó, tiveram agregados morando junto, um tio, um parente, tudo isso foi alterando os arranjos familiares”, diz Heloísa Buarque de Almeida, antropóloga da Universidade de São Paulo (USP) especializada em gênero e família. Segundo Heloísa, todos que ajudam na criação das crianças podem ser considerados parte do grupo. “Nas classes populares as crianças circulam; na classe média você tem a empregada doméstica, a avó que busca e leva, uma rede de pa­rentes que não moram junto, mas fazem parte do apoio.”
Para a antropóloga, a ideia de que família deve ser formada por um pai, uma mãe e filhos é um ideal de sociedades urbanas do século 20 que se tornou senso comum, mas não necessariamente representa a realidade, e sim um modo de consumo. “É um ideal de mercado, quando os arquitetos desenham modelos de casas para as pessoas morarem, é o que eles imaginam. E está em uma estrutura social múltipla: na religião, no atendimento médico (no hospital sempre perguntam quem é o pai e quem é a mãe), na mídia, na novela, na propaganda, inclusive no poder, é o ideal de um juiz por exemplo”, diz Heloísa.
Jéssica Pellegrini, estudante de 23 anos, foi criada pela avó e pela madrinha, apesar de conviver também com a mãe e o irmão, que moram perto. Ela tem um arranjo não tradicional de família e não sofre preconceito por isso, mas é completamente contra o PL 6583/2013. “A sociedade impõe muitos padrões desnecessários; o amor não é um homem e uma mulher, é um sentimento. Independentemente de ter filhos ou não, as pessoas merecem respeito.”
Laura Castro tem total apoio dos parentes quanto a seu arranjo familiar, mas teme pelo significado do projeto de lei. “O estatuto não ameaça só as famílias homoafetivas, é tão restrito que eu conto nos dedos quem se encaixa nessa definição. Fazem isso como se fosse possível legislar sobre famílias.”
AMOR DE PRIMEIRA: Marcos Paulo Felício da Silva, supervisor fiscal de 39 anos, com Robson Neves Rodrigues, funcionário público de 59 anos, e o filho Anthony, de três anos, em sua casa em Maricá | O processo de adoção levou dois anos. Mas foi amor à primeira vista. Chegamos lá, batemos o olho e sentimos: “Esse é o nosso filho”. Foi a coisa mais linda que me aconteceu na vida, não tem explicação. Não tem essa coisa de “você adotou”, ele é nosso filho, e ponto. Todos nos aceitam. As avós são apaixonadas por ele, as tias, todos. A gente vive em uma sociedade com muito preconceito, mas as pessoas com quem tenho contato sabem que tenho um filho e um esposo que estão no meu plano de saúde, então não tenho complicações. O estatuto é um absurdo, pela falta de amor. Só queria que as pessoas nos enxergassem com um olhar um pouco mais humano. (Foto: Stefano Martini/ Editora Globo)
MAIS AMOR, POR FAVOR
Assim como Laura, muitos casais gays sentem-se atacados pelo projeto. “O estatuto é um absurdo pela falta de amor, porque é não conseguir ver o outro. Que mal fazemos a alguém? Nenhum. Se essas mesmas pessoas que vivem de nos maldizer visitassem um abrigo e apadrinhassem uma criança, elas não sofreriam tanto”, diz Marcos Paulo Felício da Silva, supervisor fiscal e pai de Anthony com o marido Robson.
Lucimar Quadros, bancário de 49 anos, concorda que o estatuto prejudica apenas as crianças, que precisam de ajuda. Com seu companheiro, Rafael Gerhadt, ele adotou João, um bebê rejeitado por dois casais heterossexuais, e se tornou o primeiro homem homossexual a conquistar o direito à licença-maternidade no Brasil. “Embasamos nosso pedido em cima da Constituição Federal. Se todos nós somos iguais perante a lei, e a mulher tem direito de cuidar do filho, o homem também tem”, afirma Lucimar. “João nos abraça com força, aperta as duas cabeças e diz com orgulho: ‘Eu tenho dois papais’. Damos uma boa educação, conceito de respeito e humanidade e muito amor para o João. Ele é uma criança tão bacana. Essas pessoas que estão querendo inventar estatuto nem sabem como a gente vive”, diz.
Em uma palestra no TED, o premiado escritor americano Andrew Solomon falou sobre amor e aceitação, contando um pouco de sua história pessoal – ele vive com o marido e um filho biológico gerado em parceria com uma amiga lésbica. Solomon passou dez anos entrevistando pais que lidam com filhos excepcionais para escrever o livro Longe da árvore: pais, filhos e busca da identidade (Companhia das Letras), e concluiu que são as diferenças e a negociação das diferenças que unem as pessoas. “Há gente que pensa que a existência da minha família de alguma forma denigre, enfraquece ou prejudica suas famílias. E há gente que pensa que famílias como a minha não deveriam existir. Eu não aceito modelos subtrativos de amor, apenas modelos aditivos. Acredito que, assim como precisamos de diversidade de espécies para garantir que o planeta continue a existir, também precisamos dessa diversidade de afeto e de família para reforçar a ecosfera de bondade”, afirma.
ZERO CERTIDÃO: Thabata Maguetta Machado Bueno, 27 anos, assistente de redação, e Jeferson Diazzi, 25 anos, com o filho Luca, de um ano e nove meses, em sua casa em Guarulhos | Nós namorávamos há três anos quando engravidei por acidente do Luca. Morávamos em cidades diferentes e pensávamos em casar e ter filhos, mas era só um sonho, nada concreto. Quando o Luca tinha um mês, passamos a morar juntos. Não temos a menor necessidade de casar oficialmente, não temos nem união estável e não precisa, porque nos sentimos uma família mesmo sem papel, e todo mundo nos considera assim. Se o Estatuto da Família for aprovado, vou me sentir lesada, porque família não é questão de papel, é muito maior que um contrato. Acho uma perda de tempo discutir isso no Congresso. Família não pode ser colocada por lei, família é amor. (Foto: Camila Fontana/Editora Globo)
GUERRA SANTA
A cada direito adquirido pela comunidade LGBT, uma nova proposta conservadora

AVANÇOS DO MOVIMENTO LGBT X AVANÇOS DA BANCADA EVANGÉLICA
março/2006
Theodora é a primeira criança adotada por um casal homossexual no Brasil. Seus pais são Dorival Pereira de Carvalho Júnior e Vasco Pedro da Gama Filho, que vivem em Catanduva (SP).

setembro/2006
É fundada a primeira igreja inclusiva, voltada predominantemente para o público gay, no Rio de Janeiro.

agosto/2008
O governo permite a rea­lização da cirurgia de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

maio/2010
Servidores públicos federais transexuais podem usar o “nome social”, ou seja, como preferem ser chamados, em cadastros dos órgãos em que trabalham.

julho/2010
Procuradoria Geral da Fazenda Nacional permite a homosse­xuais incluir o companheiro ou companheira como dependente na declaração do imposto de renda.

dezembro/2010
Decreto garante o direito de homossexuais de receber pensão pela morte do cônjuge.

maio/2011
Supremo Tribunal Federal reconhece o registro de uniões estáveis de casais homoafetivos com votação unânime.

abril/2013
É apresentado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência o projeto de lei para criminalizar a homofobia.

maio/2013
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprova resolução que obriga os cartórios brasileiros a converter uniões estáveis homoafetivas em casamentos civis.
novembro/1986
Pela primeira vez, houve mobilização de igrejas evangélicas para eleger representantes no Congresso que votaria a nova Constituição, depois da ditadura militar. Foram eleitos 32 deputados.

Anos 1990
 Começa o crescimento intenso dos grupos evangélicos, com aquisição de mídias e projetos políticos.

outubro/2003
Criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE).

outubro/2010
Ampliação da FPE de 50 para 73 cadeiras, de 17 igrejas diferentes.

fevereiro/2013
O deputado Anderson Ferreira apresenta na Câmara o projeto de lei 6583/2013, o Estatuto da Família.

junho/2014
Partido Social Cristão (PSC) oficializa o pastor Everaldo Pereira como candidato à presidência da República.

novembro/2014
O relator do projeto de lei do Estatuto da Família, Ronaldo Fonseca (PROS-DF), mantém o texto original e insere uma modificação no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para exigir que os casais que queiram adotar sejam casados no civil ou mantenham união estável.

fevereiro/2015
O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), cria uma comissão especial para acelerar a tramitação do Estatuto da Família.

março/2015
Assembleia Legislativa rejeita criação da Frente pela Cidadania LGBT em Pernambuco. A deputada Júlia Marinho (PSC-PA), da bancada evangélica, apresenta um projeto de lei para alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente de modo que seja proibida a adoção por casais gays.

DEBATE DE IDEAIS
A Câmara está dividida entre apoiadores e opositores do Estatuto da Família. Confira as posições de dois deputados federais sobre o projeto
“Os ativistas LGBT se apegam apenas ao artigo 2, que diz que a família é formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Este texto nada mais é que o artigo 226 da Constituição. Ninguém diz que a Constituição é preconceituosa. Não adianta tentar me rotular como fundamentalista ou homofóbico. Faço a minha defesa dentro dos preceitos cristãos em que acredito, mas de acordo com o que diz a Constituição.”
Anderson Ferreira (PR-PE), autor do Estatuto da Família
“As famílias foram se transformando ao longo do tempo, por liberdade, vontade e até pela imposição da fatalidade, quando um ou mais dos seus membros morrem e aquela família se reorganiza com base naquilo que realmente fundamenta o grupo familiar – aquela palavra de quatro letras que desapareceu do vocabulário dos defensores do Estatuto da Família – o amor.  O que digo aqui não é exagero. Quem abrir o Estatuto da Família, de autoria de um membro da bancada fundamentalista, e buscar a palavra ‘amor’, ou mesmo ‘cuidado’, não irá encontrar.”
Jean Wyllys (PSOL-RJ), único deputado abertamente gay

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