GALILEU
A forma como as pessoas se relacionam virou tema de discussão no Congresso e pode até ser decidida por lei, se o chamado Estatuto da Família for aprovado. Grupos evangélicos e movimentos LGBT estão em um embate ideológico — já que os casais homossexuais seriam especificamente atingidos
POR GABRIELA LOUREIRO
Em 2014, quando começou a frequentar uma escola particular em Maricá (Rio de Janeiro), Anthony, de três anos, percebeu que sua família era um pouco diferente das de seus colegas. As gêmeas têm pai e mãe, o amigo Pedro também, mas ele tem dois pais. Mesmo assim, não entendia muito bem qual era a diferença. Um dia, em casa, ouviu pela primeira vez a música “Para mamãe”, da Galinha Pintadinha, e ficou cheio de pontos de interrogação na cabeça. “Mamãe?”, questionou em voz alta mais de uma vez. Marcos, seu pai, explicou que existem diferentes composições de família, “com um pai e uma mãe, dois papais, duas mamães, só uma mãe, só um pai, ou com uma vovó”. Anthony entendeu, e hoje aponta sua família com orgulho na escolinha: “Papai Robson e papai Marcos”.
O que ele ainda não aprendeu é que existem muitas pessoas que não consideram válida uma família como a sua. Entrou em discussão na Câmara dos Deputados um projeto de lei de 2013 chamado Estatuto da Família, que determina que as uniões familiares brasileiras devem ser compostas exclusivamente por um homem e uma mulher por meio de casamento ou união estável, o que pode prejudicar a adoção de crianças por casais homossexuais.
De autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), o PL 6583/2013, que havia sido arquivado,foi desenterrado em 2014 pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que desde então vem tentando acelerar o processo de aprovação do estatuto. Procurada por GALILEU, a assessoria de imprensa de Cunha informou que o deputado não está disponível para falar sobre esse assunto.
De fato, o projeto é polêmico. Movimentos LGBT e defensores de direitos humanos têm feito campanhas contra a aprovação do estatuto com as hashtags #emdefesadetodasasfamílias e #nossafamíliaexiste, mas, em uma enquete no site da Câmara, 53% dos participantes votaram a favor do projeto. O resultado da consulta pública e a multiplicação das propostas conservadoras representam o avanço da chamada bancada evangélica no Congresso. Hoje, há 78 parlamentares da ala evangélica, oito a mais do que em 2010. Sem contar a presidência da Câmara, assumida por Eduardo Cunha.
Apesar de o Estado brasileiro ser laico – imparcial em assuntos religiosos e sem a interferência da religião em assuntos sociopolíticos –, os membros da bancada evangélica são conhecidos por interpretar a Constituição com um viés influenciado por suas crenças.
DIFERENTES ARRANJOS
Nos últimos anos, os direitos LGBT também têm ganhado força no Brasil, com autorizações de adoção e união estável, além da popularização na mídia, com episódios como o do beijo gay na novela Babilônia (veja a linha do tempo abaixo). É também um reflexo do aumento das relações abertamente homoafetivas. Segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2010, há ao menos 60 mil casais homossexuais brasileiros. Para cada mil casamentos heterossexuais, há três uniões civis entre pessoas do mesmo sexo – para adotar, o casal precisa de algum tipo de contrato de união. “Acho que o estatuto é uma reação aos nossos direitos conquistados, ao fato de a nossa família não só existir como estar no papel, com filhos registrados, isso assusta grupos conservadores”, afirma Laura Castro, 33 anos, atriz e produtora cultural casada com Marta Nóbrega, com quem tem três filhos.
Nos últimos anos, os direitos LGBT também têm ganhado força no Brasil, com autorizações de adoção e união estável, além da popularização na mídia, com episódios como o do beijo gay na novela Babilônia (veja a linha do tempo abaixo). É também um reflexo do aumento das relações abertamente homoafetivas. Segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2010, há ao menos 60 mil casais homossexuais brasileiros. Para cada mil casamentos heterossexuais, há três uniões civis entre pessoas do mesmo sexo – para adotar, o casal precisa de algum tipo de contrato de união. “Acho que o estatuto é uma reação aos nossos direitos conquistados, ao fato de a nossa família não só existir como estar no papel, com filhos registrados, isso assusta grupos conservadores”, afirma Laura Castro, 33 anos, atriz e produtora cultural casada com Marta Nóbrega, com quem tem três filhos.
A família brasileira passou por mudanças profundas nas últimas décadas, e o núcleo formado por um casal e filhos já não é mais a regra. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, esse tipo de arranjo corresponde hoje a cerca de 50% das famílias brasileiras, uma taxa bem inferior à dos anos 1980, quando correspondia a 66%. Vários fatores estão envolvidos nessa redução, como a diminuição do percentual de casais com filhos (de 57,6% para 49,8% entre 1995 e 2005, segundo o IBGE) e o aumento do número de divórcios e separações e dos chamados arranjos monoparentais, ou seja, lares formados apenas por mães ou pais e seus filhos.
“Hoje vemos novos arranjos, gays e lésbicas que adotam ou pessoas solteiras que adotam ou criam uma criança da família, porque a família vai mudando. Tem gente que morou um tempo com os pais, um tempo com a avó, tiveram agregados morando junto, um tio, um parente, tudo isso foi alterando os arranjos familiares”, diz Heloísa Buarque de Almeida, antropóloga da Universidade de São Paulo (USP) especializada em gênero e família. Segundo Heloísa, todos que ajudam na criação das crianças podem ser considerados parte do grupo. “Nas classes populares as crianças circulam; na classe média você tem a empregada doméstica, a avó que busca e leva, uma rede de parentes que não moram junto, mas fazem parte do apoio.”
Para a antropóloga, a ideia de que família deve ser formada por um pai, uma mãe e filhos é um ideal de sociedades urbanas do século 20 que se tornou senso comum, mas não necessariamente representa a realidade, e sim um modo de consumo. “É um ideal de mercado, quando os arquitetos desenham modelos de casas para as pessoas morarem, é o que eles imaginam. E está em uma estrutura social múltipla: na religião, no atendimento médico (no hospital sempre perguntam quem é o pai e quem é a mãe), na mídia, na novela, na propaganda, inclusive no poder, é o ideal de um juiz por exemplo”, diz Heloísa.
Jéssica Pellegrini, estudante de 23 anos, foi criada pela avó e pela madrinha, apesar de conviver também com a mãe e o irmão, que moram perto. Ela tem um arranjo não tradicional de família e não sofre preconceito por isso, mas é completamente contra o PL 6583/2013. “A sociedade impõe muitos padrões desnecessários; o amor não é um homem e uma mulher, é um sentimento. Independentemente de ter filhos ou não, as pessoas merecem respeito.”
Laura Castro tem total apoio dos parentes quanto a seu arranjo familiar, mas teme pelo significado do projeto de lei. “O estatuto não ameaça só as famílias homoafetivas, é tão restrito que eu conto nos dedos quem se encaixa nessa definição. Fazem isso como se fosse possível legislar sobre famílias.”
MAIS AMOR, POR FAVOR
Assim como Laura, muitos casais gays sentem-se atacados pelo projeto. “O estatuto é um absurdo pela falta de amor, porque é não conseguir ver o outro. Que mal fazemos a alguém? Nenhum. Se essas mesmas pessoas que vivem de nos maldizer visitassem um abrigo e apadrinhassem uma criança, elas não sofreriam tanto”, diz Marcos Paulo Felício da Silva, supervisor fiscal e pai de Anthony com o marido Robson.
Assim como Laura, muitos casais gays sentem-se atacados pelo projeto. “O estatuto é um absurdo pela falta de amor, porque é não conseguir ver o outro. Que mal fazemos a alguém? Nenhum. Se essas mesmas pessoas que vivem de nos maldizer visitassem um abrigo e apadrinhassem uma criança, elas não sofreriam tanto”, diz Marcos Paulo Felício da Silva, supervisor fiscal e pai de Anthony com o marido Robson.
Lucimar Quadros, bancário de 49 anos, concorda que o estatuto prejudica apenas as crianças, que precisam de ajuda. Com seu companheiro, Rafael Gerhadt, ele adotou João, um bebê rejeitado por dois casais heterossexuais, e se tornou o primeiro homem homossexual a conquistar o direito à licença-maternidade no Brasil. “Embasamos nosso pedido em cima da Constituição Federal. Se todos nós somos iguais perante a lei, e a mulher tem direito de cuidar do filho, o homem também tem”, afirma Lucimar. “João nos abraça com força, aperta as duas cabeças e diz com orgulho: ‘Eu tenho dois papais’. Damos uma boa educação, conceito de respeito e humanidade e muito amor para o João. Ele é uma criança tão bacana. Essas pessoas que estão querendo inventar estatuto nem sabem como a gente vive”, diz.
Em uma palestra no TED, o premiado escritor americano Andrew Solomon falou sobre amor e aceitação, contando um pouco de sua história pessoal – ele vive com o marido e um filho biológico gerado em parceria com uma amiga lésbica. Solomon passou dez anos entrevistando pais que lidam com filhos excepcionais para escrever o livro Longe da árvore: pais, filhos e busca da identidade (Companhia das Letras), e concluiu que são as diferenças e a negociação das diferenças que unem as pessoas. “Há gente que pensa que a existência da minha família de alguma forma denigre, enfraquece ou prejudica suas famílias. E há gente que pensa que famílias como a minha não deveriam existir. Eu não aceito modelos subtrativos de amor, apenas modelos aditivos. Acredito que, assim como precisamos de diversidade de espécies para garantir que o planeta continue a existir, também precisamos dessa diversidade de afeto e de família para reforçar a ecosfera de bondade”, afirma.
GUERRA SANTA
A cada direito adquirido pela comunidade LGBT, uma nova proposta conservadora
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março/2006 Theodora é a primeira criança adotada por um casal homossexual no Brasil. Seus pais são Dorival Pereira de Carvalho Júnior e Vasco Pedro da Gama Filho, que vivem em Catanduva (SP). setembro/2006 É fundada a primeira igreja inclusiva, voltada predominantemente para o público gay, no Rio de Janeiro. agosto/2008 O governo permite a realização da cirurgia de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS). maio/2010 Servidores públicos federais transexuais podem usar o “nome social”, ou seja, como preferem ser chamados, em cadastros dos órgãos em que trabalham. julho/2010 Procuradoria Geral da Fazenda Nacional permite a homossexuais incluir o companheiro ou companheira como dependente na declaração do imposto de renda. dezembro/2010 Decreto garante o direito de homossexuais de receber pensão pela morte do cônjuge. maio/2011 Supremo Tribunal Federal reconhece o registro de uniões estáveis de casais homoafetivos com votação unânime. abril/2013 É apresentado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência o projeto de lei para criminalizar a homofobia. maio/2013 Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprova resolução que obriga os cartórios brasileiros a converter uniões estáveis homoafetivas em casamentos civis. | novembro/1986 Pela primeira vez, houve mobilização de igrejas evangélicas para eleger representantes no Congresso que votaria a nova Constituição, depois da ditadura militar. Foram eleitos 32 deputados. Anos 1990 Começa o crescimento intenso dos grupos evangélicos, com aquisição de mídias e projetos políticos. outubro/2003 Criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). outubro/2010 Ampliação da FPE de 50 para 73 cadeiras, de 17 igrejas diferentes. fevereiro/2013 O deputado Anderson Ferreira apresenta na Câmara o projeto de lei 6583/2013, o Estatuto da Família. junho/2014 Partido Social Cristão (PSC) oficializa o pastor Everaldo Pereira como candidato à presidência da República. novembro/2014 O relator do projeto de lei do Estatuto da Família, Ronaldo Fonseca (PROS-DF), mantém o texto original e insere uma modificação no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para exigir que os casais que queiram adotar sejam casados no civil ou mantenham união estável. fevereiro/2015 O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), cria uma comissão especial para acelerar a tramitação do Estatuto da Família. março/2015 Assembleia Legislativa rejeita criação da Frente pela Cidadania LGBT em Pernambuco. A deputada Júlia Marinho (PSC-PA), da bancada evangélica, apresenta um projeto de lei para alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente de modo que seja proibida a adoção por casais gays. |
DEBATE DE IDEAIS
A Câmara está dividida entre apoiadores e opositores do Estatuto da Família. Confira as posições de dois deputados federais sobre o projeto
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“Os ativistas LGBT se apegam apenas ao artigo 2, que diz que a família é formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Este texto nada mais é que o artigo 226 da Constituição. Ninguém diz que a Constituição é preconceituosa. Não adianta tentar me rotular como fundamentalista ou homofóbico. Faço a minha defesa dentro dos preceitos cristãos em que acredito, mas de acordo com o que diz a Constituição.”
Anderson Ferreira (PR-PE), autor do Estatuto da Família
Anderson Ferreira (PR-PE), autor do Estatuto da Família
“As famílias foram se transformando ao longo do tempo, por liberdade, vontade e até pela imposição da fatalidade, quando um ou mais dos seus membros morrem e aquela família se reorganiza com base naquilo que realmente fundamenta o grupo familiar – aquela palavra de quatro letras que desapareceu do vocabulário dos defensores do Estatuto da Família – o amor. O que digo aqui não é exagero. Quem abrir o Estatuto da Família, de autoria de um membro da bancada fundamentalista, e buscar a palavra ‘amor’, ou mesmo ‘cuidado’, não irá encontrar.”
Jean Wyllys (PSOL-RJ), único deputado abertamente gay
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