domingo, 31 de maio de 2015

Julgaremos os torturadores?

"Brasil: nunca mais", de 1985: a primeira pesquisa de fundo sobre os arquivos da ditadura militar brasileira

HELIO GUROVITZ


A certa altura da reportagem monumental que fez sobre o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, entre a narrativa de uma atrocidade e outra, a filósofa Hannah Arendt assume um ar de tédio. Diante da sucessão de testemunhas de acusação, cujas histórias semelhantes contribuíam para construir o perfil diabólico do réu, responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas, ela escreveu: “A procissão começava, numa tentativa fútil de proceder de acordo com a ordem cronológica. (...) Todo mundo, todo mundo deveria ter seu dia no tribunal. Apenas para descobrir, nas intermináveis sessões que seguiam, como era difícil contar a história”. A mesma sensação poderá acometer o leitor de uma outra reportagem, também de importância histórica inegável, que acaba de ser lançada este ano: Brasil: nunca mais – Um relato para a história.

Trata-se da primeira pesquisa de fundo sobre os arquivos da ditadura militar brasileira. Cobre o período do regime de exceção, entre o golpe de 1964 e a anistia de 1979. É resultado de um projeto quase clandestino, promovido pela Igreja Católica e por grupos religiosos, para preservar os documentos da época, antes que pudessem ser destruídos. De 1979 até o começo deste ano, foram reunidas informações de 707 processos que transitaram pela Justiça Militar brasileira, num relatório de mais de 5 mil páginas. Pelo menos uma cópia em microfilmes de todos os processos foi levada para fora do país, de modo a preservar a fonte das informações. Apenas depois da campanha das Diretas do ano passado, da eleição de Tancredo Neves e da recuperação de um mínimo – ainda que insatisfatório – de liberdades democráticas no país, a Igreja se sentiu confortável para trazer o projeto a público.

A partir dos processos, os pesquisadores produziram um livreto-reportagem em que procuram relatar os horrores da perseguição às organizações clandestinas, a crueldade da tortura e a barbárie inaceitável do “desaparecimento” de presos políticos. Por que usar apenas documentos dos militares para narrar uma história que também está na memória das vítimas sobreviventes? Porque, ao proceder assim, as conclusões não poderiam ser contestadas pelos perpetradores, os autores da documentação. “O que se produzisse como constatação de irregularidades, de atos ilegais, de medidas injustas, de denúncias sobre torturas e mortes, teria a dimensão de prova indiscutível. Definitiva”, afirma a reportagem. No prefácio à obra, o cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, faz um apelo para que o Brasil, agora democrático, assine a Convenção Contra Tortura proposta pela ONU.

O apelo de Arns é justo e compreensível – mas inócuo. É evidente que o Brasil acabará por assiná-la, uma vez que já é signatário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que condena a tortura em termos enfáticos. Bem menos evidente é o que faremos com a incômoda realidade do passado. A Lei de Anistia fez prescrever os crimes da guerrilha e da repressão. Mas pode haver prescrição para crimes dessa natureza? Deveríamos levar os torturadores aos tribunais, como a Argentina? Que dizer daqueles que assaltaram, mataram, justiçaram e também torturaram em nome da resistência à ditadura? São questões cuja resposta caberá à próxima Assembleia Constituinte.

O projeto Brasil: nunca mais é apenas o início do que deveria ser uma investigação completa sobre a verdade na ditadura. É valiosíssimo como documento. Mas insuficiente e incompleto. É evidente a orientação religiosa e o viés político na forma como seleciona e analisa os fatos. Por mais repetitivas e monocórdias que sejam as histórias dos presos políticos, são elas que têm valor histórico e dão força ao relato. Mas ele se torna ingênuo ao analisar as raízes do regime militar de um ponto de vista ideológico. Não é disso que o país precisa. Precisamos que o Estado investigue os fatos e acerte suas contas com o passado. Não é necessário produzir julgamentos que se transformem em espetáculo, como o de Eichmann. Já seria um avanço se soubéssemos a identidade dos torturadores, conhecêssemos os responsáveis pela máquina da repressão, a história das organizações clandestinas e, acima de tudo, o destino dos desaparecidos. Se suas famílias pudessem dispor de um atestado de óbito que não fosse uma mentira. Se o Estado pudesse, por meio da simples busca da verdade, transmitir uma mensagem clara e inequívoca às gerações futuras: “Tortura, no Brasil, nunca mais!”.
Este conteúdo faz parte do especial retrô ÉPOCA 1985, em comemoração aos 17 anos de ÉPOCA. 
Helio Gurovitz - 1985 (Foto: Moysés Gurovitz)

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