Revista Via Simples
Estamos imersos na realidade virtual. É preciso ensinar as crianças a sentir a brisa, subir em árvore e nadar na praia.
Padma Samten
O Henrique e a Talitha acordam cedo. Ainda antes de irem para a escola, correm para o computador e logo estão no jogo Minecraft, construindo mundos, paisagens, seres distintos. Na minha mente surge a sensação de amplitude da praia do Cassino para onde, desde a minha infância, tenho retornado constantemente. Céu, água e uma faixa de areia infinita, que vai até o Uruguai. Vejo também a lagoa do Bacopari, tépida, com as águas doces e areia macia, onde as tartarugas boiam sonolentas e despreocupadas. Ao redor, extensas dunas de areia branca. Acima, o céu azul. Hum... lugar perfeito para as crianças nadarem e brincarem tranquilas. Precisamos de uma aldeia ali. Uma horta cheia de folhas bem verdes, raízes tenras e tomates vermelhos. Muitas árvores frutíferas. Grandes mangueiras, salseiros frondosos com sua sombra refrescante, bananeiras, goiabeiras, mamoeiros. Nossas casas em círculos, formando mandalas, cada uma tendo no centro um pátio onde a vizinhança converse olhando para a molecada. Água pura de poço profundo.
Efluentes tratados biologicamente. Cozinha comunitária. Hum... E internet também? É... acho que sim... Podemos fazer excursões exploratórias nas regiões selvagens circundantes e caminhar até o mar. Há amigos nas fazendas ao redor com seus cavalos ao mesmo tempo mansos e assustadores para os pequenos, há as vacas leiteiras com seus úberes generosos, as ovelhas. Há as lebres surpreendentes que pulam e correm alucinadas com suas orelhas longas e seus saltos desconcertantes que as salvam dos cachorros. Bem, teremos também a cancha de futebol, de vôlei, as cordas para arvorismo e a sala de meditação. A lagoa é um lugar perfeito para um pequeno veleiro. As crianças vão amar navegar pela lagoa! Assim, aprendem a olhar para o Sol, para o vento, para a água. Ah, e elas vão adorar construir jangadas rústicas. Temos ainda a Laguna dos Patos, um mar interno. Com certeza nossos amigos vão convidar a garotada para conhecer seus veleiros com cabines mágicas e chegar a praias desertas, antigo refúgio de piratas verdadeiros e seus tesouros.
Busco Henrique e Talitha com o olhar. Eles seguem a sonhar mundos em Minecraft, inexistentes, artificiais, feitos apenas de blocos mortos e digitais. Os sonhos da praia do Cassino ou de Bacopari, da Laguna dos Patos seriam mais reais? O tempo se esgotou. É hora do lanche da manhã, de escovar os dentes, passar o fio dental, fazer xixi, pentear o cabelo, pegar as mochilas e caminhar em direção à escola. Por vezes, penso que livrar as crianças da dependência aos jogos, computador ou celular é tão impossível como foi libertar as gerações anteriores da TV, do videogame, dos refrigerantes, do açúcar, dos alimentos processados. Em um sentido mais amplo, é tão impossível quanto foi a tentativa de conter a barbárie que, em poucas décadas, feriu o equilíbrio da biosfera e roubou a água e a garoa da cidade de São Paulo. Olho novamente para aquelas crianças. Não vou desistir.
PADMA SAMTEN é lama budista. Fundou e dirige o Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em Viamão, RS.
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