Documentário recupera livro que conclui que personagens doentios dos filmes já prenunciavam os tempos sombrios subsequentes
O filme estreou ano passado no Festival de Veneza, e desde então vem percorrendo festivais ao redor do mundo, incluindo o Brasil
A tímida participação do cinema alemão na última edição do Festival de Cannes, que se encerrou na semana passada, em nada lembra o destaque que o país recebia em qualquer mostra de cinema do mundo um século atrás.
Naqueles tempos, diretores como Fritz Lang, Ernst Lubitsch, Friedrich Wilhelm Murnau e Billy Wilder estabeleciam os padrões de uma nova forma de arte que florescia. Muitos deles migraram para Hollywood nas décadas de 1920 e 30, cooptados pelos grandes estúdios ou por receio da ascensão de Hitler ao poder.
No entanto, as obras mais famosas destes cineastas – como Metrópolis, M., o Vampiro de Düsseldorf, Nosferatu e Ana Bolena – foram todas rodadas na Alemanha. Este período do cinema alemão obteve grande prestígio internacional e causa fascínio nos cinéfilos até hoje.
Siegfried Kracauer, o mais famoso crítico de cinema da época, acompanhou a trajetória da cinematografia alemã e fez análises contundentes sobre seus aspectos políticos e culturais. Ele migrou para os EUA em 1933, fugido do nazismo, e lá publicou uma obra decisiva sobre o expressionismo alemão: De Caligari a Hitler: Uma história psicológica do cinema alemão. O estudo parte do cinema para analisar o espírito de uma época e conclui que os personagens doentios dos filmes já prenunciavam os tempos sombrios subsequentes.
O cineasta Rüdiger Suchsland realizou um documentário perturbador sobre a teoria de Kracauer. O filme de mesmo nome, De Caligari a Hitler, estreou ano passado no Festival de Cinema de Veneza, e desde então vem percorrendo festivais ao redor do mundo.
DW: Suchsland, como foi seu encontro com a obra de Kracauer?
Rüdiger Suchsland: Siegried Kracauer foi o crítico de cinema mais importante da República de Weimar, o precursor da crítica cinematográfica na Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial. Foi nessa época que Kracauer escreveu para o Frankfurter Zeitung, o jornal diário de maior prestígio da época.
Kracauer era judeu, liberal e um pensador de esquerda, que deixou a Alemanha em março de 1933. Ele ficou exilado em Paris até o início da Guerra, depois se mudou para os Estados Unidos, onde escreveu seu livro.
DW: Trata-se basicamente das percepções do subconsciente dos diretores daquela época?
RS: Isso era exatamente o que ele queria fazer. Ele procurou mensagens psicológicas nos filmes alemães. Para isso, usou, inclusive, o método da psicanálise freudiana. Ele analisou o que estava oculto, não o que era evidente nesses filmes.
Por outro lado, ele examinou o cinema como um veículo de comunicação de massa, uma espécie de indicador, um sismógrafo da consciência coletiva – e do subconsciente coletivo. Essa era a base para a análise dos filmes: quais traços do fascismo podem ser visto nesses filmes? Quais indícios desse ímpeto de violência, guerra, genocídio e assassinato dos judeus já estavam presentes ali?
Quando começou a escrever o livro, em 1942, muitos o criticaram por sugerir uma teoria como esta, porque os fatos já haviam ocorrido, então era fácil falar em retrospecto. Mas sua tese não era tão trivial. Kracauer não fez apenas declarações polêmicas, ele analisou obra por obra.
Ele constatou que, nos filmes alemães, havia muito mais assassinos, tiranos, cientistas loucos, figuras paternas autoritárias do que nos filmes de outros países do mesmo período. Se você pegar Metrópolis ou O Gabinete do Dr.Caligari, você vê que essas figuras estão muito mais presentes no cinema alemão do que no cinema de qualquer outro país.
Isso levanta uma questão: o que levou a essa fascinação por violência, manipulação e hipnose? Independentemente do que você pensa sobre o cinema alemão da época, a existência dessas figuras precisa ser questionada.
DW: O livro de Kracauer obteve grande alcance? Ele é conhecido hoje na Alemanha e no exterior?
RS: Fiquei surpreso em saber que a obra é conhecida no mundo inteiro. O curioso é que, na Alemanha, ela é menos conhecida. Mas nos EUA, nos países hispânicos, e em outros lugares onde se falam as línguas românicas, o livro é muito conhecido. Ele é considerado literatura básica para o estudo do cinema dos anos 20 e do cinema alemão em geral. Filmes como Nosferatu ou Berlim: Sinfonia de uma grande cidade, O Anjo Azul, Metrópolis ou M, O Vampiro de Düsseldorf são muito famosos.
No exterior, onde a consciência histórica é maior, eles são ainda mais famosos. As pessoas sabem que o cinema alemão foi o mais importante do mundo nos anos 1920; em parte, mais importante do que Hollywood. A ascensão de Hollywood teve início com a chegada dos imigrantes europeus, com cineastas como Ernst Lubitsch ou Friedrich Wilhelm Murnau, que deixaram a Alemanha antes mesmo de 1933. E, claro, com Fritz Lang, que migrou para os EUA em 1933.
Após sua estreia no Festival de Cinema de Veneza do ano passado, De Caligari a Hitler, de Rüdiger Suchsland, já foi exibido em festivais na Coreia do Sul, Irã, Brasil, Argentina, Hong Kong, Países Baixos e Suécia. A turnê segue agora para Jerusalém, Xangai, Romênia e Portugal.
- Autoria Jochen Kürten (jvr)
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