terça-feira, 2 de junho de 2015

Isabel da Nóbrega, a musa que Saramago apagou da (sua) história

O OBSERVADOR
Joana Emídio Marques

Não era apenas uma das mais belas mulheres da Lisboa dos anos 50 e 60, era também uma promessa literária. Fomos à procura da história de Isabel da Nóbrega para lá dos homens que a contaram.






A história da literatura e da poesia está cheia de mulheres belas e inteligentes que inspiraram ou enlouqueceram os homens que as amaram. O lugar de musa tem tanto de lisonjeiro como de perverso. Lembramo-nos de Lou Andreas-Salomé, amada por Rilke e por Nietzsche. De Alma Mahler, que despertou a paixão dos mais proeminentes espíritos do seu tempo: Gustav Mahler, Klimt ou Oskar Kokoschka. Lembramo-nos de Charlotte Buff, que terá sido a musa de Goethe. Ou da louca e esfuziante Zelda Fitzgerald, que colocou a vida de Scott num virote. Lembramo-nos, é claro, da musa das musas: Beatriz, por quem Dante aceitou todos os sacrifícios.
Todas elas tiveram vidas que se estenderam muito para lá desses romances, como é o caso dos ensaios pioneiros da psicanálise de Lou Andreas-Salomé. Mas essas vidas ficaram indelevelmente apagadas pela fama dos homens a quem elas se ligaram.
Na literatura portuguesa não há muitas musas, se exceptuarmos Camões, que terá tido dúzias delas. Também não encontramos por cá a figura da allumeuse, a mulher bela, fogosa mas inacessível. Talvez por sermos um país pouco dado a efusivas demonstrações de afecto, raramente os escritores e poetas trouxeram para a praça pública os seus encontros e desencontros amorosos. Talvez por sermos um país onde a cultura conta muito pouco, os leitores preferem seguir os amores dos jogadores de futebol e das modelos, dos actores de telenovela, e das apresentadoras de televisão. Nenhuma revista cor-de-rosa se lembraria de mandar um paparazzo seguir Nuno Júdice, Manuel de Freitas ou Lídia Jorge…
Os incriveis olhos de Isabel da Nóbrega nos seus anos de juventude
Os incríveis olhos de Isabel da Nóbrega nos seus anos de juventude
Por tudo isso e muito mais, Isabel da Nóbrega, prestes a completar 90 anos, foi uma excepção nesta paisagem literária desapaixonada. Musa de dois dos grandes intelectuais portugueses do século XX — o escritor José Saramago e o crítico e ensaísta João Gaspar Simões –, arrancou-lhes atitudes radicais, mas é ela própria dona de uma obra literária singular no panorama português, que precisa urgentemente de ser redescoberta.
Isabel da Nóbrega não quis falar com o Observador, mas o Observador foi falar com pessoas que a conheceram, na Lisboa dos anos 50, onde juntamente com Sophia de Mello Breyner, Menez ou Armanda Pires Falcão (Vera Lagoa), despertava o fascínio dos rapazes, futuros poetas, que as iam espreitar ao longe, sentadas de perna cruzada nas esplanadas.
“Sim, essa arma, digo bem, que ela sabia constituir, no arsenal das suas seduções, a mais mortífera das suas armas: os olhos, precisamente.”
João Gaspar Simões
“Não era só por terem umas pernas bonitas”, lembra Helder Macedo, era também porque “eram mulheres bonitas que liam livros e faziam coisas ousadas, o que despertava o nosso fascínio”. Além de que, “para nós, miúdos, elas pareciam criaturas totalmente inatingíveis”, conta o poeta e escritor.
Mas se Helder Macedo lembra figuras longilíneas e quase indistintas das raparigas da alta burguesia de Lisboa, João Gaspar Simões recorda aquilo que distinguia Isabel da Nóbrega das outras mulheres: “sim, essa arma, digo bem, que ela sabia constituir, no arsenal das suas seduções, a mais mortífera das suas armas: os olhos, precisamente”. Esta “recordação” de Gaspar Simões aparece no romance As Mãos e as Luvas, que o crítico publicou em 1975, algum tempo depois da escritora o ter abandonado e ido viver com José Saramago, à data um desconhecido jornalista e tradutor. Este livro conta, alegadamente, as peripécias de amor do próprio Simões e de Isabel da Nóbrega, apresentada aqui como uma espécie de Madame Bovary.
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“As Mãos e as Luvas”, romance de 1975 de João Gaspar Simões, alegadamente sobre Isabel da Nóbrega
Este livro, hoje quase impossível de encontrar, conta a história de Albertina (com tonalidades proustianas e flaubertianas), ou Tininha, uma mulher que coleccionava amantes e vivia num mundo fantasiado. É um péssimo romance, datado e cheio de um moralismo que hoje nos faz rir, cheio de palavras maldosas contra Isabel e Saramago, mas é um belo exemplo das coisas infames que se podem fazer quando se sofre por amor. Isabel da Nóbrega nunca falou em público sobre este livro infame, tal como nunca falou sobre a retirada das dedicatórias por parte do Nobel.
João Gaspar Simões com quem Isabel da Nóbrega viveu
João Gaspar Simões, com quem Isabel da Nóbrega viveu entre 1954 e 1968

Os Olhos de Blimunda

“À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova”, escreveu José Saramago na primeira edição do romance Memorial do Convento, publicado em 1982. Percebe-se pela densidade que não seriam apenas palavras de circunstância, e isso torna ainda mais angustiante o acto posterior do seu apagamento e substituição por uma dedicatória a outra mulher.
Neste acto, que muitos classificam como “estalinista”, devido ao facto de durante o regime comunista soviético ser habitual eliminar das fotografias pessoas que se passaram para a oposição ou foram assassinadas, há qualquer coisa de mais inquietante: o inevitável fim do amor. E se Gaspar Simões, ainda que de forma perversa, imortalizou Isabel na figura de Albertina (Tininha) em As Mãos e as Luvas, Saramago tentou obliterá-la para todo o sempre, o que terá sido mais terrível.
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Primeira edição de “Memorial do Convento”, de José Saramago
Contudo, nas edições mais antigas dos livros do Nobel, podemos encontrar vestígios dessa ligação que, para muitos, terá sido fulcral para o posterior desenvolvimento da obra literária de Saramago. E não é apenas nas dedicatórias que encontramos traços do seu encontro fundamental com Isabel da Nóbrega, mas na própria construção das personagens. É que se Gaspar Simões compara os olhos de Isabel aos de uma Medusa (a górgona mitológica que petrificava quem a olhasse), Saramago acaba por dar à sua mais importante personagem, Blimunda, uns olhos igualmente mágicos, capazes de perscrutar as almas por dentro dos corpos.
O próprio nome “Blimunda” foi Isabel quem o escolheu de uma lista que Saramago tinha feito e da qual tinha escolhido Mariana Amália.
O próprio nome “Blimunda” foi Isabel quem o escolheu de uma lista que Saramago tinha feito, e da qual tinha escolhido Mariana Amália. Como ela conta, numa entrevista dada à revistaTabu do jornal Sol em 2009, ficou chocada com o nome escolhido para a personagem feminina do Memorial do Convento:
“Mariana Amália? Mas ele endoideceu. Não há direito de pôr Mariana Amália na figura desta mulher. Chamei-o. ‘Está lindo, está tudo certo, menos uma coisa que tens de emendar – Mariana Amália. Tem paciência, quando foste à biblioteca e recolheste nomes da época hás-de ter encontrado um que se possa ver’. Ele voltou à secretária e daí a um bocado apareceu e começou a dizer nomes. Ouvi ‘Blimunda’, pedi-lhe que voltasse atrás e, quando repetiu o nome: ‘Ó Zé, parece impossível! Como é que tinhas este nome na tua lista e não viste que esta mulher é exactamente Blimunda?’. Pegou no manuscrito, que era enorme, e foi emendar tudo, tirar Mariana Amália e pôr Blimunda. É engraçado porque ele chamava-me sempre bruxinha (…) como ele achava que eu via muito bem as pessoas por dentro, lá está, esse jogo…”
A escritora nos anos 60, quando publica o romance "Viver com os Outros"
A escritora nos anos 60, quando publica o romance “Viver com os Outros”
Recuemos ao ano de 1964, quando Isabel da Nóbrega publicaViver Com os Outros. Um romance que escrevera em 1960, aos 35 anos, e com o qual ganhara, em 1965, o prémio literário Camilo Castelo Branco. De uma espantosa maturidade na escrita e nas reflexões sobre as relações humanas, retoma a técnica do romance de “fluxo de consciência” usado, por exemplo, em Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, ou em Ulisses, de James Joyce.
Toda a acção de Viver com os Outros se passa numa noite de Junho, num jantar em casa de um casal da alta-burguesia lisboeta. Tal como Woolf, Nóbrega capta os pensamentos das várias personagens e entretece-os com fragmentos dos diálogos que estas vão mantendo entre si, alternando livremente a narrativa entre descrição omnisciente, monólogo interior e o solilóquio.
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O romance “Viver Com os Outros”, aqui numa edição do Círculo de Leitores
A trama é complexa, mas o resultado notável, e o romance permanece de uma acutilante actualidade na sociedade portuguesa do século XXI, porque é sobretudo um livro acerca da fragilidade das ligações que nos unem uns aos outros, as ambiguidades dos nossos desejos e a hipocrisia de um grupo social que vivia sofregamente das aparências. Com coragem, aborda a questão do comunismo, do aborto, do divórcio, e evoca a poesia Mário Cesariny, na altura uma pessoa tida como pouco recomendável (recorde-se que Cesariny era obrigado a apresentar-se periodicamente à polícia devido à sua conhecida homossexualidade, numa devassa total da sua vida privada).
Isabel da Nóbrega nunca falou em público sobre o livro infame de João Gaspar Simões, tal como nunca falou sobre a retirada das dedicatórias por parte do Nobel.
Ana, a protagonista de Viver com os Outros, é já aquela cujo olhar atravessa os outros e lhes tenta desvendar a alma. O olhos de Ana remetem inevitavelmente para os olhos de Isabel da Nóbrega, verdes, grandes, intensos (olhos “de insecto otóptero”, escreveu Gaspar Simões). Numa das passagens do romance, Nóbrega explicita como o seu programa de escrita lhe passa inevitavelmente pelos olhos:
“– Sim. São as pessoas que me interessam. Num romance quereria pegar numa meia dúzia de pessoas e pô-las ante os olhos do leitor carregadas da sua verdade. Por exemplo, em vocês. Mas a minha pretensão seria, para melhor vos expor, iluminar-vos nesta aparente imobilidade. (…)
— Assustas-me, Aninhas! Ao observares assim as pessoas, com esse teu olhar grave e e redondo, de mocho, pobre humanidade que somos nós, deixas-nos esmagados, não? Cilindrados, como diria o teu amigo Ruben A.”
Primeiro romance de Isabel da Nóbrega,1952. Reeditado em 2009
Primeiro romance de Isabel da Nóbrega, de 1952. Foi reeditado em 2009
A escritora já tinha outras duas obras publicadas, Os Anjos e os Homens, de 1952 (reeditado em 2009), e as peças de teatro O Filho Pródigo e O Amor Difícil, de 1954, tendo esta última sido levada à cena no palco do Teatro Nacional D.Maria II. Nesta década, quando Nóbrega já exibe uma enorme maturidade literária, José Saramago trabalha na editora Estúdios Cor (ali ao lado da redacção do jornal A Capital, da qual Nóbrega foi uma das fundadoras) e tinha uma travessia incipiente pelo romance e pela poesia. É ela quem, em 1968, lhe oferece trabalho n’A Capital para redigir um suplemento de Verão. Mais tarde, convence o director a aceitá-lo como cronista.

A burguesa e o charme discreto do proletariado

Tendo em conta a realidade da sociedade portuguesa nos anos 60, o encontro entre Isabel da Nóbrega e José Saramago era altamente improvável. Ela, filha de um reputado médico, educada no protestantismo, membro da alta-burguesia intelectual, há anos a viver com o mais feroz dos críticos literários, João Gaspar Simões, a quem se devem os primeiros estudos e divulgação da obra de Fernando Pessoa e heterónimos. Ele, um neto de porqueiros do Ribatejo, ex-torneiro-mecânico com aspirações a escritor, que trabalhava como tradutor e fazia os textos para as badanas dos livros da Estúdios Cor. Isto posto assim poderia ser um plot para um romance neo-realista ou para um filme surrealista. Mas a realidade é sempre mais interessante que a ficção e mais surreal do que o surrealismo.
Portrait of José Saramago, writer.  (Photo by Francis Tsang/Cover/Getty Images)
José Saramago (foto: Francis Tsang/Cover/Getty Images)
“Naquela altura em que estávamos n’A Capital, ele tinha sempre um olhar de quem estava a sofrer. Era um olhar que seduzia (os homens sabem muita coisa e as mulheres ficam fraquinhas diante daquele olhar triste)”, conta Isabel da Nóbrega ainda à revista Tabu.
“Isabel era uma mulher linda, com bom gosto”, recorda o olisipógrafo, ensaísta e ex-jornalista António Valdemar. “Tinha um estilo muito próprio de se vestir, muito sofisticada… já o Gaspar Simões era gordo… Mas com o Saramago foi diferente. Aquilo foi uma grande paixão. Ele ainda estava casado com a Ilda Reis e só devia ler romances neo-realistas. Estou convencido que foi a Isabel da Nóbrega que o tirou do esgoto neo-realista e o influenciou para descobrir outras literaturas, nomeadamente o Pessoa. Acredito nisto: sem a Isabel, Saramago nunca teria escrito O Ano da Morte de Ricardo Reis”, afirma Valdemar.
“À Isabel, outro livro, o mesmo sinal” — é com esta dedicatória que o Nobel inicia o seu romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984.
“Durante os anos que escreveu na revista Seara Nova, nunca Saramago falou de Fernando Pessoa. Não me parece que Pessoa lhe interessasse, como de resto não interessava aos neo-realistas. Já Isabel, tinha vivido com Gaspar Simões, um dos primeiros estudiosos da obra do poeta, em especial da obra heterónima. Ora, Isabel era uma apaixonada pela poesia de Fernando Pessoa, ela sabia tudo sobre os heterónimos. Não estou a dizer que ela escreveu o livro, mas acho que ele só foi capaz de o escrever devido ao encontro com Isabel”, diz ainda António Valdemar.
"Estou convencido que foi a Isabel da Nóbrega que o tirou do esgoto neo-realista e o influenciou para descobrir outras literaturas, nomeadamente o Pessoa. Acredito nisto: sem a Isabel, Saramago nunca teria escrito 'O Ano da Morte de Ricardo Reis'.”
António Valdemar
“Não viram vocês como o mundo tremeu com as palavras do Pessoa?”, escreve da Nóbrega em Viver com os Outros, 20 anos antes de José Saramago colocar o heterónimo de Pessoa a deambular por uma Lisboa plúmbea.
Viver com os Outros foi reeditado em 2005 mas está, também ele, totalmente esgotado, e seria um grande contributo para a literatura portuguesa que fosse reeditado, até porque contam-se pelos dedos das mãos os romances de autores portugueses publicados nos últimos anos que tenham a força, o carisma e o talento que Nóbrega põe nesta obra.
Porém, depois deste auspicioso começo, a escritora não voltou aos romances de fôlego. Dedicou-se à literatura infantil, escreveu ainda uma novela e um conto. António Valdemar afirma que o seu maior talento era como cronista: “Aquelas crónicas chamadas Quadratim são uma coisa superior.” Estas crónicas estão coligidas num volume editado em 1976 e que também só já se encontra com sorte em alfarrabistas.
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Compilação de crónicas de Isabel da Nóbrega, editada em 1976
“Lembro-me da primeira vez que vi Saramago e Isabel juntos. Foi na praia de Sesimbra, eu estava em Portugal de férias, e vi aquele estranho par, ele muito alto e peludo e ela muito pequena e branca, a caminharem de mão dada em direcção à água”, recorda Helder Macedo. Perguntei quem era e alguém me disse: é o novo rapaz da Isabel. Eu conhecia Saramago da luta política, tinha até uma certa reverência para com ele, que era bastante mais velho, e nunca gostei da forma como ele era tratado por aquele meio da alta-burguesia. Acho que para manter aquela relação ele teve que sofrer muitas humilhações. Que raio, chamavam-lhe ‘o sarabago’”, conta, indignado, o escritor, poeta e grande admirador de Saramago.
"Acho que para manter aquela relação, Saramago teve que sofrer muitas humilhações. Que raio, chamavam-lhe 'o sarabago'!”
Helder Macedo
A forma como Saramago era olhado por um certo meio burguês está bastante explícita no retrato que Gaspar Simões faz do “amante de Tininha” em As Mãos e as Luvas:
“Esse indivíduo com uns desbotados slips de banho, bem à vista a sua plástica assaz debilitada, ela, Tininha, muito serigaita,com um riso que queria ser desdenhoso mas não o era, apenas era o que convinha que fosse, observava, percorrendo com os olhos a deplorável carcaça física daquela espécie de D. Quixote.”
Pela forma ligeira com que Simões apresenta o editor que alegadamente representa Saramago, dir-se-ia que ele não acreditava no futuro daquele relacionamento, que na vida real acabou por durar quase duas décadas. Se há quem ache que Saramago foi o vilão da história, também há quem ache que foi a vítima. Ele próprio justificou a retirada das dedicatórias com a mudança que os livros vão tendo nas suas várias edições, uma mudança que se vai adequando às circunstâncias da vida de um autor.
Se há quem ache que Saramago foi o vilão da história, também há quem ache que foi a vítima.
A verdade é que, durante os anos 70 e 80 (correspondentes ao período que durou a sua relação com José Saramago), Isabel quase não escreveu ficção. Mas continuou a escrever em jornais, teve programas seus na televisão e na rádio e, em 2011, foi-lhe atribuída a Grande Cruz da Ordem da Liberdade, que recebeu das mãos de Cavaco Silva (o mesmo que era primeiro-ministro quando, em 1992, o romance de Saramago O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi vetado para concorrer a um prémio literário europeu). Só em 2010 voltou a publicar ficção: o contoAs Magas.
A escritora Isabel da Nobrega, em 2011, com a Primeira -dama Maria Cavaco Silva
A escritora Isabel da Nóbrega, em 2011, com a primeira-dama Maria Cavaco Silva
Umas das obsessões de Gaspar Simões, expressas através da personagem de Tininha, era a mania que ela tinha de andar sempre de saltos altos, mesmo a caminhar na difícil calçada Lisboeta. Só no fim do livro, já depois de conhecer o tal “editor subnutrido” e adoptar “certos ideários” é que ela deixa de usar saltos altos.
Não sabemos se na vida real Isabel da Nóbrega abandonou os saltos altos, e se o fez por amor ou por moda. A verdade é que a vida dela se prolonga muito para trás e muito para a frente de Saramago e Gaspar Simões. No livro O Filho do Desconhecido, o escritor britânico Alan Hollinghurst, coloca a personagem principal, uma mulher que teve um casamento fugaz com Cecil Valence, um célebre poeta precocemente morto, a dizer: “Tenho 80 anos, tive casamentos, filhos, amores, a minha relação com Cecil representou três minutos da minha vida, porque é que só querem que eu fale disso?” O mesmo poderia dizer Isabel da Nóbrega.

No próximo dia 26 de Junho, Isabel fará 90 anos. A julgar pelas suas últimas aparições em público, continua elegante, bonita e usa batom vermelho — e a história da sua vida, e sobretudo a sua obra, não merecem continuar a viver à sombra das decisões de José Saramago.
Ler os livros de Isabel da Nóbrega é a única forma de lhe fazer justiça. É vê-la como ela se contou, e não como outros, por amor, por desejo de renascimento, por mágoa ou por leviandade a contaram. Esses outros sobre os quais ela escreveu: “Oh, esta alegria de não estarmos sós.”




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