Em 2014 completaremos 50 anos do terrível golpe contra a democracia em nosso país. Paralelo ao golpe no Brasil, outros países da América Latina conviveram com situação semelhante. Enquanto os governos traíam seu povo e rendiam-se aos planos de expansão norte-americanos, colaborando e estreitando relações com o império capitalista, estimam-se que tenham ocorrido em torno de 100 mil assassinatos e possivelmente 400 mil casos de tortura relatados em toda a região da América Latina.
Durante este período que vai entre o início dos anos 60 a meados dos anos 80, os cidadãos brasileiros começam a sofrer a cassação dos direitos políticos; crescente desarticulação de movimentos sociais; perseguições políticas; prisões arbitrárias; exílios e até mesmo desaparecimento de pessoas.
Não para por aí! A situação se recrudesce e começam os assassinatos; o cerceamento da imprensa; a ocultação de documentos oficiais e uma campanha nacionalista e mentirosa visando ocultar os acontecimentos ocorridos nos porões da ditadura, restringindo e silenciando a qualquer custo toda forma de oposição a barbárie.
Os abusos eram cometidos em nome de uma pretensa manutenção da ordem; uma guerra declarada a toda e qualquer tendência política que buscasse alternativas ao já viciado sistema político que mantinha o Brasil em uma situação patética; de joelhos, servil, apoiada por instituições conservadoras, tradicionalistas e incompatíveis com a imagem tão propalada pelos governos militares.
Neste contexto, as resistências atreladas às suas narrativas, sempre presentes em nossa história desde o Brasil colônia, ressurgiram para fazer frente aos tiranos e como resposta ao abismo que estávamos sendo conduzidos. Em todas as áreas da cultura tivemos expoentes desta resistência de grande valor. A Bossa Nova e os Concretistas, anos antes, serviram de lastro para o surgimento da Tropicália; o Cinema novo aparece de forma arrebatadora e sofre com a censura que logo se estabelece.
Artistas impossibilitados de trabalhar em sua áreas e com o que de melhor faziam, entenderam o problema e migraram dos seus territorios comuns, buscando de forma nem sempre consciente, mas com o devido senso e intuição muito acurada, a experimentação, a fusão das linguagens, o hibridismo, que não só confundia o inimigo, como também, de certa forma, buscava encontrar novos caminhos. Não se tratava apenas de produzir algo esteticamente novo, mas, abalar as formas de abordagem e estruturas do pensamento pequeno-burguês, estabelecidas desde a sociedade colonial e que ainda insistiam em permanecer.
O tecnicismo apregoado pelos governos autoritários começava a fazer água e seu projeto de dominação provava do próprio veneno. Em uma espécide de procedimento Oswaldiano revisitado, os artistas começaram a utilizar as armas do sistema. Tudo era matéria. As linguagens se transformaram e se hibridizaram. Surgiu a video-art; a body-art; o minimalismo; as performances e happenings; o Fluxus; as intervenções nos espaços, seja através da Land-Art ou da arte urbana; e a não menos importante: arte postal.
De caráter extremamente simples, porém, de extremo poder para a difusão de idéias, a arte postal driblava os censores, atravessava as fronteiras e ampliava os ecos de dor dos porões da ditadura. Antecipava o advento da internet, redes de criação e o uso das novas mídias no que hoje denominamos “rede sociais” . Neste sentido, vimos nascer na América Latina como um todo, inclusive no Brasil, trabalhos de valiosa grandeza, que nada tem de panfletários, mas, que carregavam em sua gênese, a marca da combatividade e da resistência poética, sem que para isto fosse necessário um só ato de violência.
O alcance da rede não tinha como ser assimilado pelos verdugos da ditadura. A construção de significados simbólicos,que se deu a partir disto, quando estudado hoje, é inimaginável para os padrões da época. Alcançaram todo o mundo ocidental e parte do Oriente em trabalhos colaborativos e de work in progress.
Artistas abriram mão de seu lugar comum e ofereceram-se ao sacrifício, ao risco, até mesmo de vida, abdicando das rançosas idéias a que a sociedade estava habituada; colocando seu trabalho contra a idéia do estado, quando este age de maneira criminosa.
A arte de resistência neste momento histórico, alcançou uma força poética poderosa, saindo dos esperados padrões burgueses e do simples arremedo farsesco que alguns outros dispuseram-se, naquele momento,a produzir apenas para a indústria do entretenimento.
Existir e opinar já era o suficiente para ser tratado como um criminoso.
É neste ponto que surge entre nós a inevitável idéia sobre o artista contra o estado autoritário. Depois dos anos de chumbo, com as eleições diretas e a gradativa consolidação da democracia, nos espanta que observemos ainda, a violência e o constrangimento com que o estado e as instituições, de forma pungente tratam as diferenças de opinião.
Podemos perceber a tentativa do controle através de outras formas mais sutis, mais adocicadas, disfarçadas de entretenimento e diluídos na idéia do artista bem sucedido, respeitado, que faz sua arte para a massa, de maneira a atingir a maioria sem grandes esforços, ainda que para isto, abra mão de sua poética e da construção de significados que isto possa representar. A esterilização das poéticas através de projetos duvidosos e de chapa branca, apoiados por tendência da moda ou por instituições benevolentes que utilizam de seus trabalhos para ampliar a sua marca. Feito isto e esvaziado o trabalho, caem no ostracismo.
O ano de 2013 foi emblemático, neste sentido, por demonstrar claramente como o Estado é ainda truculento, despreparado e ineficiente quando se dá frente com as questões básicas e necessárias da população.
A tolerância com os protestos por parte do estado brasileiro ficou demonstrada: é zero. O caso mais emblemático é o desaparecimento e assassinato do pedreiro Amarildo, que ironicamente, não participara da manifestação. A manifestação serviu de pano de fundo, para policiais corruptos fazerem o que já queriam ter feito antes. Sumiu após ser chamado à uma Unidade de Polícia Pacificadora em seu bairro, Rocinha – Rio de Janeiro. Seu caso, assim como o de muitos outros, é ampliado e nos propõe desafios, exatamente por estarmos vivendo em uma democracia consolidada. Será verdade ou caminhamos ainda em terreno frágil?
A pergunta que nos toca, entre tantas, é: onde estão os artistas? Abriram mão de seu direito (e dever) de posicionarem-se e de ocupar o espaço ? Estariam embriagados pelo “sucesso” fácil das redes; de sua egolatria e dos quinze minutos de fama que Warhol profetizava?
A tecnologia, esta poderosa arma de construção de novas realidades e narrativas, está aí, a nosso dispor! Traz consigo, as ambivalências, subjetividades e toda a complexidade ideológica do meio para qual foi criada. E este, mais uma vez, é o desafio a que os artistas, ativistas e pessoas que se apropriam dos meios de produção de forma legítima, verdadeira, deverão entre tantos outros cenários possíveis, enfrentar: desorganizar as configurações de dominação pré-existentes já formatadas pelas nova tecnologias e descobrir outras possibilidades de construção das realidades.
A tecnologia, em absoluto, não é o inimigo! Não fosse a rede você não estaria lendo isto agora. Provavelmente nem nos conheceríamos.
Diante deste panorama apresentado, convidamos os artistas e não artistas de todo o mundo para enviar trabalhos postais em qualquer técnica, material ou suporte, com dimensões 10x15cm e que tenham como tema principal a idéia de arte como resistência, contra a repressão e a ditadura; (r)existência poética a toda forma de morte imposta pelo poder institucional; arte que se levanta em favor da vida e da livre expressão; todos os subtemas que possam abrir reflexões sobre os 50 anos passados do golpe que marcou nosso país e nossas novas gerações. Para que não nos esqueçamos e mais ainda, para que possamos construir novas utopias possíveis.
Esperamos seu trabalho! Abraços fortes, arte e vida sempre!
por Alexandre Gomes Vilas Boas, Dudu Gomes, Lara Leal e Sérgio Augusto
Coletivo 308 e Ecatú Ateliê
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