Saudado pela Igreja como o fim da ameaça comunista, golpe que deu origem à ditadura matou três padres e um frei antes de perder apoio católico. Evangélico membro da Comissão Nacional da Verdade relembra que foi sequestrado após pastor denunciá-lo à repressão
NONATO VIEGASRio - A manhã de 28 de fevereiro de 1970 transcorria calma, quando Anivaldo Padilha, líder da Juventude Metodista, foi sequestrado dentro de sua igreja por homens da Operação Bandeirantes (Oban). Fervoroso em busca de um Brasil melhor, Padilha, pai do ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, foi denunciado pelo bispo e pelo pastor que comungavam no mesmo púlpito que ele. A acusação: comunista. Sua história ilustra não só a divisão dentro das denominações evangélicas, mas o alcance das redes de informações montadas pelo regime que, a princípio, foi visto com simpatia pela Igreja Católica.
“Os informantes percorriam as igrejas e sabiam tudo sobre as pregações”, conta Padilha, membro da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que admite dificuldade em identificar se os colaboradores eram agentes da ditadura ou ‘ infiltrados’ (alcaguetes).
Missa na Candelária para Edson LuísFoto: Reprodução
Embora seja comum afirmar que a Igreja Católica tenha apoiado o golpe, a CNBB levou dois meses para se manifestar, tamanho o conflito interno. “Só em 2 de junho sai um comunicado. A primeira metade saudava o fim do risco comunista e a segunda, denunciava abusos”, lembra o professor e padre Oscar Beozzo, coordenador do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Ceseep).
Frei Clodovis Boff, um dos teóricos da Teologia da Libertação e atualmente professor da PUC-PR, relembra o clima pesado nas missas. “Era sufocante para os pregadores. Havia gente que vinha apenas para ver o que falávamos.”
Não há registros de que padres e bispos católicos tenham entregue seus pares à repressão, como aconteceu com a Igreja Metodista de Padilha. Entretanto, há situações em que houve omissão, diz Jorge Abilio Lulianello, consultor da CNV. Ele conta que Marcos Arruda, militante da Juventude Universitária Católica (JUC), preso e torturado em 1970, pedira a um capelão que avisasse a seus pais que estava em poder de militares. Imaginava que, assim, garantiria sua vida. Ledo engano. “O religioso deu a extrema-unção, mas não transmitiu o recado”, diz Jorge.
Frei Betto, preso em 1969 com outros dominicanos, não poupa Dom Eugenio Sales, nomeado arcebispo do Rio de Janeiro em 1972 e já falecido. “Não conheço uma só pessoa perseguida que tenha sido ajudada por ele”, diz Frei Betto.
Dom Orani Tempesta, cardeal e arcebispo do Rio de Janeiro, prefere olhar para a frente. Ciente da cizânia, prega a unidade com Cristo. “O importante, neste momento de recordação, é olhar para o conjunto da Igreja”, defende. “Quando somamos as atitudes de nossos bispos, vemos o quanto se fez, cada um a seu modo, dentro de suas possibilidades. Deus tem seus caminhos.”
"Os informantes percorriam as igrejas e sabiam tudo sobre as pregações"Anivaldo Padilha
Na Comissão Nacional da Verdade, o silêncio hierárquico da cúpula católica é um empecilho. Ao contrário das igrejas protestantes, que “falam mais abertamente”, a Igreja Católica se cala, segundo Padilha. “Ela prefere o silêncio”, acusa.
O racha entre progressistas e conservadores é anterior a 1964. O professor e padre Oscar Beozzo afirma que desde a morte de Getúlio Vargas, em 1954, houve um acirramento entre as posições.
“É a partir da década de 1950 que a Igreja Católica adere às causas sociais”, ensina. “Ela apoia a reforma agrária; se empenha para criar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais; dialoga com o movimento estudantil; tem um membro da JUC, Aldo Arantes, eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE); e espalha o Movimento de Educação de Base (MEB) pelo país”, lista Beozzo.
Uma encíclica do Papa João XXIII, em 1963, pregando “diálogo com os movimentos históricos”, alarma os conservadores e anima os progressistas católicos. “A divisão era a mesma vista na sociedade brasileira na época”, resume Beozzo. Mas a partir do AI-5, em 1968, diz Frei Betto, é “que a Igreja passou a sofrer mais perseguição, a ponto de se tornar a principal voz em defesa dos Direitos Humanos”. Em 1969, é assassinado o primeiro dos três padres, e um frei, vítimas da ditadura.
Outro caso marcante se dá em 1968, nas missas para o estudante Edson Luís, morto pela PM na invasão ao restaurante Calabouço, no Aterro do Flamengo. Realizadas na Igreja da Candelária, as cerimônias confrontaram estudantes, padres e freiras com a PM, Fuzileiros Navais e agentes do DOPS, que reprimiram violentamente os presentes, deixando centenas de feridos. Dali para a frente, a relação entre militares e Igreja Católica nunca mais seria a mesma. “Deste período ficam o aprofundamento da Teologia da Libertação, o crescimento das Comunidades de Base e das pastorais sociais”, conta Boff.
O embate que rachou a Igreja
por Fernando Molica
Após pregar e abençoar o golpe de 1964, a Igreja dividiu-se em relação aos militares. O namoro com a esquerda começou antes da deposição do presidente João Goulart: leigos da JUC (Juventude Universitária Católica) fundaram a AP (Ação Popular), que reuniria nomes como o de José Serra, futuro governador de São Paulo, e Plínio de Arruda Sampaio (Psol). Dentro da hierarquia da Igreja, um dos pioneiros na resistência foi o então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, ex-militante do Integralismo, movimento da direita alinhado ao fascismo. Fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), era um entusiasta das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), de católicos que questionavam o sistema. Dom Hélder passou a ser chamado de ‘arcebispo vermelho’.
A atuação da Igreja contra a ditadura ficaria marcada a partir dos anos 1970, com a Teologia da Libertação, que unia cristianismo e esquerda. A eleição, em 1971, de Dom Aloísio Lorscheider para a presidência da CNBB reforçou o bloco dos que se opunham aos militares — no ano anterior, ele ficou preso por quatro horas. O episódio favoreceu a criação da Comissão Bipartite, que promoveria 24 reuniões entre militares e bispos de diferentes tendências. Cardeais e bispos se destacariam na luta contra a ditadura, denunciando torturas de presos e insistindo na redemocratização do país. A sigla CNBB passou a ser publicada com frequência nas páginas de política dos jornais. O teatrólogo e jornalista Nelson Rodrigues chegou a cunhar a expressão ‘padres de passeata’ para criticar esses adversários.
Frades dominicanos de São Paulo passaram a apoiar a principal organização armada de esquerda do país, a ALN (Ação Libertadora Nacional) de Carlos Marighella. Muitos foram presos e torturados - um deles, Frei Tito de Alencar Lima, se suicidaria na França em 1974 por não conseguir se livrar do terror causado por seu algoz, o delegado Sérgio Paranhos Fleury.
A cúpula da Igreja passou a ser dividida. De um lado bispos progressistas como Dom Aloísio, seu primo Dom Ivo Lorscheiter e o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Do outro, os conservadores Dom Eugênio e Avelar Brandão Vilela. No fim da década de 1970, o hoje cardeal Dom Claudio Hummes abriu igrejas de Santo André, no ABC paulista, para assembleias de operários grevistas — e padres e instituições católicas acabariam tendo papel fundamental na criação do PT de Lula.
No Rio, bispos de Volta Redonda, Nova Iguaçu e Caxias, admiradores da Teologia da Libertação, faziam um ‘cinturão vermelho’ em torno de Dom Eugenio. A atividade dos bispos gerava reações violentas de grupos radicais de direita: em 1976, Dom Adriano Hipólito, de Nova Iguaçu, seria sequestrado, agredido e libertado nu, com o corpo pintado. A eleição do Papa João Paulo II em 1978 representaria um duro golpe na esquerda católica. Solidário ao seu povo (Polônia), então submetido à União Soviética, o Papa não queria saber de carinhos com o comunismo. No Rio, Dom Eugênio abriria processo contra o livro ‘Igreja, carisma e poder’, de Leonardo Boff que, condenado a cumprir um ano de silêncio obsequioso e com o livro proibido, deixaria o sacerdócio.
A mudança de rumos continuou após o fim da ditadura, em 1985, e os nomes mais ligados à esquerda católica desapareceriam das listas de nomeações de cardeais.
Resistência e mortes no Sul Fluminense
por Francisco Edson Alves
“Unhas perfuradas, ossos dos pulsos expostos, dedos queimados, pele caindo, hematomas nos rins e laterais do crânio afundadas.” A descrição de como o Exército entregou o corpo do soldado de Geomar Ribeiro da Silva, do então 1º Batalhão de Infantaria Blindado (BIB) de Barra Mansa, no Sul Fluminense, à família, no início da década de 1970, traduz a maneira cruel com que a corporação torturava e matava seus próprios integrantes dentro do quartel.
Naquela época, entre 31 de dezembro de 1971 e 12 de janeiro de 1972, outros três soldados — Juarez Monção Virote, Wanderley de Oliveira e Roberto Vicente da Silva —, suspeitos de ser usuários de maconha, todos com 19 anos, tiveram o mesmo destino de Geomar: a morte violenta.
Os quatro recrutas tiveram seus trágicos destinos traçados com a decretação de prisão “por serem ligados ao vício e tráfico de tóxicos.” Nunca, porém, se comprovou nada. Roberto não resistiu às sessões de espancamentos e morreu com profundas marcas, como as de Geomar, no Hospital Central do Exército, no Rio. Juarez e Wanderley tiveram seus corpos mutilados e incendiados. Seus esqueletos foram encontrados nos vizinhos municípios de Bananal (SP) e Rio Claro.
Os detalhes das condições como o cadáver de Geomar, completamente desfigurado, foi enterrado, fazem parte de um relatório original, entregue ao DIA, há alguns anos, pelo bispo emérito de Volta Redonda, Dom Waldyr Calheiros (morto em 2013, aos 90 anos). Dom Waldyr Calheiros foi um dos poucos membros da Igreja Católica que não se omitiu e denunciou as atrocidades cometidas pelo regime.
Datilografadas em quatro frágeis páginas de papel manteiga, cópias dos relatos assinados por Dom Waldyr, de como o Exército impunha a dor física, psicológica e morte aos seus próprios soldados, foram entregues em 1972 ao então comandante do 1º BIB, coronel Armênio Pereira, ao ministro do Exército e à cúpula da CNBB.
Graças ao documento, a ditadura levou um de seus maiores baques. De forma inédita, o Exército admitiu culpa nas mortes e, em nota oficial em 7 de fevereiro de 1972, pelo Centro de Relações Públicas do Ministério do Exército, lia-se: “Os elementos daquela organização militar (1º BIB) agiram de maneira condenável e deformada, provocando a morte de soldados.”
As quatro folhas amareladas fizeram ainda com que oito militares fossem a julgamento e punidos pelas quatro mortes, somando 407 anos de prisão. Entre os condenados, o temido capitão Dálgio Niebus, o ‘Matador’. Segundo os próprios militares investigados, Niebus agiu com frieza contra Juarez e Wanderley, que tiveram dedos, cabeças e órgãos sexuais arrancados por ele, antes de serem incendiados com gasolina. Na década passada, as famílias das vítimas foram, finalmente, indenizadas pelo governo federal. “Mexer com bispo dá azar”, costumava dizer, ironicamente, Dom Waldyr.
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