quarta-feira, 19 de março de 2014

VERSÃO OFICIAL DO ESTADO DITATORIAL PARA A MORTE DE CARLOS MARIGHELLA





A versão oficial do Estado ditatorial para a morte de Carlos Marighella afirma a existência de tiroteio entra agentes policiais do DOPS, de S. Paulo, de um lado, e Carlos Marighella e membros outros da ALN de outro no que ter-se-ia constituído em confronto aberto, justificando-se, assim, a conduta dos agentes públicos como motivada por legítima defesa.

Da publicação “Direito à Memória e à Verdade”, produzida pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, extrai-se que:

“Morreu em via pública de São Paulo, durante emboscada de proporções cinematográficas, na qual teriam participado cerca de 150 agentes policiais equipados com armamento pesado, sob o comando de Sergio Paranhos Fleury, delegado do DOPS que respondeu a inúmeros processos por liderar um grupo de extermínio de marginais, auto-intitulado Esquadrão da Morte. A gigantesca operação foi montada a partir da prisão de religiosos dominicanos que atuavam como apoio a Marighella. Na versão oficial um deles foi levado pelos policiais à livraria Duas Cidades onde recebeu ligação telefônica com mensagem cifrada estabelecendo horário e local de encontro na alameda Casa Branca.

As versões de sua morte guardam contradições e alimentam agudas polêmicas. Em algumas delas chegam a ser mencionados dois tiroteios simultâneos, em esquinas diferentes. Na versão de um relatório policial, Marighella foi precedido por um batedor e apareceu disfarçado, usando peruca. Alguns documentos mencionam que ele chegou de carro, outros dizem que chegou andando. Para uns, puxou uma arma da cintura; segundo outros trazia dois revólveres em uma pasta, junto com granadas. Seus protetores teriam fugido pulando um muro ou utilizando um furgão. Existe até mesmo um relato que ele teria provocado sua própria execução, gritando “Abaixo a ditadura! Viva a democracia!”
( pg. 108/109 ).

Analisemos o caso.

No livro “Diário de Fernando: nos cárceres da ditadura militar brasileira”, escrito por frei Betto, mas tendo presente as anotações escritas de frei Fernando de Brito, registradas ponto a ponto nos seus dias de cárcere, lê-se: “Reduziu-se o tom de voz, de modo reverencial, quando ingressou na sala um homem corpulento, rosto redondo, macilento, cabelos crespos engomados, olhos azuis – o delegado Sergio Paranhos Fleury. Pareceu-me ter bem mais que 36 anos, talvez macerado pelos crimes cometidos, cujos requintes de perversidade teciam-lhe os fios de uma fama medonha. Não me iludi. Sabia que o chefe do Esquadrão da Morte jogava ali sua cartada mais importante. E eu era o coringa que ele trazia na manga.

Arrancaram-me as roupas, dependuraram-me no pau de arara, ligaram os eletrodos em minhas orelhas e nos órgãos genitais; armaram-se de porretes, rodaram a manivela, fizeram-me estrebuchar sob a virulência das descargas elétricas. Não sei quantos cavalos do Apocalipse coicearam o meu corpo, sei apenas que mergulhei num profundo e pavoroso vazio; meu ser havia se descolado do corpo que, lá em cima, do lado de for, ardia em dores, berrava ansioso pela morte, atirava-se num macabro balé ritmado por pancadas, chutes e cargas elétricas, enquanto no âmago daquele vazio minha identidade, volatilizada, estilhaçava-se em mil pedaços.

Na outra sala, Ivo era submetido às mesmas atrocidades. Repetiam-se a ele as perguntas que me eram feitas: “Cadê o Marighella? Como vocês encontram o Marighella”? Em meio à dor lancinante, balbuciávamos fragmentos de informações, sem no entanto dispor da iniciativa de contatar o líder revolucionário; era ele quem nos contatava, e havia dias nos dissera que se ausentaria por várias semanas de S. Paulo. Nunca soubemos onde morava, com quem vivia, como buscá-lo numa situação de emergência, a que número de telefone recorrer. Assim, os fragmentos com os quais a repressão montava o quebra-cabeça remetiam todos aos nossos encontros passados, sem que tivéssemos a menor idéia de quando Marighella voltaria a nos procurar. Convenci-me de que, com certeza, a notícia de nossa prisão correria célere e chegaria até ele.

As torturas prosseguiram até o fim da manhã. Ivo e eu fomos trazidos para o DEOPS de S. Paulo. A viatura entrou no casarão vermelho ao anoitecer. Levados às celas subterrâneas, recebemos comida. Quão penoso era mastigar, devido aos hematomas provocados por pancadas e choques na boca e na língua. Apesar das dores pelo corpo, e do enorme buraco no centro da alma, a exaustão me consumiu no sono.

Retirado da cela na tarde do dia seguinte, levaram-me à Livraria Duas Cidades. Eu havia falado que Marighella costumava ligar-me no telefone do local de trabalho. De fato, menos de uma hora depois, sentado à minha mesa, cercado pela equipe do delegado Fleury, o telefone soou e a senha foi pronunciada: “Aqui é o Ernesto. Nos vemos na gráfica esta noite.” Por que não me levaram à livraria no dia anterior? Nem na manhã de terça-feira? Como sabiam que o cabeça da ALN me ligaria exatamente àquela hora?

Não era a voz de Marighella, como se comprovou, posteriormente. Julguei que fosse um dos delegados do DEOPS submetendo-me a um teste. Confirmei o encontro.

Em outra passagem, escreveu frei Fernando:

“Não vi Marighella surgir das trevas na alameda Casa Branca e caminhar para a morte. Pressenti que o haviam assassinado quando ouvi a saraivada de tiros que abateram aquele que fizera do comunismo seu apostolado, dedicara toda a sua vida à libertação do povo brasileiro, estivera preso no Estado Novo, elegera-se deputado federal após a queda de Vargas, rompera com o PCB e fundara a ALN, agregando-nos a seu grupo de apoio desde 1967.

Marighella sobressaia pelo porte agigantado. Ostentava uma peruca que não condizia com seu perfil e lhe emprestava certo ar jocoso. Olhar penetrante, agudo, voz pausada, mansa, educado e gentil, sabia escutar e mostrava-se muito seguro em seus argumentos. Tinha a história do Brasil na cabeça, as lutas populares e, devido a seus estudos de ciências exatas, facilidade para lidar com detalhes técnicos. Dotado de prodigiosa memória, poliglota, dominava os clássicos e preocupava-se com a vida pessoal de cada militante. Ao mesmo tempo que exigia segurança de seus companheiros, abusava de sua auto-confiança e era visto em restaurantes da moda ou em praças no centro da cidade.

Não me foi possível discernir entre o real e o imaginário. Uma alucinação suscitada por minha mente atordoada? Antes que pudesse distinguir o que havia de realidade ou projeção fantasiosa, Ivo e eu escutamos a saraivada de balas. Não vi Marighella tombar. Esperei que ali se desse também o nosso fim. Meu corpo, teso, aguardou o impacto de um projétil. Logo as portas foram abertas e, nós, retirados do veículo. No meio da rua, um grupo de pessoas mirava o chão – estirado, jazia o corpo de Marighella.”

Pesquisando no Arquivo Nacional, a Comissão Nacional da Verdade descobriu documento oficial e confidencial, o Relatório Especial de Informações nº 09/69, assinado pelo general Milton Tavares de Souza, na qualidade de Chefe do Centro de Informações do Exército, que apresenta quadro detalhado do acontecido.

Principia por relevar fatos subjacentes:

“1. INTRODUÇÃO

a. Em seu REI nº 08/69, o CIE difundiu as informações produzidas pela OPERAÇÃO BANDEIRANTES ( OB ), em SÃO PAULO, com relação à AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL, sua organização, seus propósitos e suas atividades subversivas. Recorda-se que foram desbaratados 13 aparelhos e presos 19 terroristas da ALN, inclusive três que participaram do seqüestro do Embaixador dos EUA, na GUANABARA. Prosseguindo nas investigações e aprofundando-as através de interrogatórios minuciosos dos elementos presos, com o objetivo de chegar ao desbaratamento total da ALN, os integrantes da OB extraíram de um deles – Paulo de Tarso Venceslau –um dos seqüestradores do Embaixador ELBRICK – a informação de que, caso obtivesse a liberdade, poderia estabelecer contato com a “organização” através de Frei YVES DO AMARAL LESBAUPIN, o frei IVO, no Convento dos Dominicanos da rua CAIUBI, 126 – PERDIZES/SP, pelo telefone 62-2324. Tal informação dava substância às suspeitas já existentes de que religiosos da Ordem dos Dominicanos, particularmente Frei BETTO – CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO – também do aludido Convento, estavam envolvidos em atividades subversivas. Aliás, o CIE já alertara a comunidade de informações sobre o fato, em seus REI nº 3 e 5/69, quando declarara, concluindo, que se fortaleciam os indícios de que o Convento dos Dominicanos, em SÃO PAULO, proporcionava homizio a elementos subversivos. Essa informação fornecida pelo terrorista PAULO DE TARSO Venceslau propiciou ao DEOPS/SP os elementos necessários para chegar ao Chefe da ALN e principal mentor das atividades subversivas em todo o País – CARLOS MARIGHELLA, conforme relataremos neste REI.”

Ressalta que:
2.“MORTE DE CARLOS MARIGHELLA E PRISÃO DE INTEGRANTES DE SEU GRUPO”

a. Acompanhando as atividades de Frei IVO, o DEOPS/SP seguiu-o até o RIO DE JANEIRO/GB, onde iria manter contato com o ex-monge beneditino – SINVAL ITACARAMBI LEÃO – ( ex-Frei THIMÓTEO ), elemento recém ingresso na Organização MARIGHELLA, conseguindo prendê-lo em companhia de Frei FERNANDO DE BRITO, também dominicano de S. PAULO.
Posteriormente o CENIMAR efetuou a prisão de Frei THIMÓTEO.

b. Submetidos a intenso interrogatório, Frei IVO e Frei FERNANDO confessaram que se encontravam no RIO DE JANEIRO com a finalidade de estabelecer um contato político. Foram, então, conduzidos para SÃO PAULO onde, após novos interrogatórios, denunciaram vários elementos subversivos, membros da organização MARIGHELLA, ficando evidenciado que Frei IVO chefiava um dos grupos.

E, especificamente, sobre a morte de Carlos Marighella, no documento confidencial diz o general Milton Tavares de Souza:

“e. Cerca das 1600 horas do dia 4 de novembro, Frei IVO, que fora mantido trabalhando sob vigilância do DEOPS/SP, na Livraria DUAS CIDADES, da Ordem dos Dominicanos, em SÃO PAULO, recebeu telefonema de CARLOS MARIGHELLA marcando um encontro às 2000 horas do mesmo dia na alameda CASA BRANCA, em frente ao nº 806, local habitual de contato do líder principal do terrorismo no país, com os Freis IVO e FERNANDO. Lá, já haviam tido aproximadamente 10 encontros.
f. O DEOPS/SP montou um dispositivo de cerco e conduziu para o local do encontro os Freis IVO e FERNANDO, ficando na expectativa da chegada de MARIGHELLA que, no horário previsto, subiu a alameda CASA BRANCA, aproximou-se do carro dos freis e nele penetrou, ocupando o assento traseiro. Neste exato momento, obedecendo à ordem de comando, a equipe do DEOPS/SP, que se encontrava nas imediações do carro, dele se acercou, dando voz de prisão a MARIGHELLA e ordenando que ele saísse com as mãos para o alto.

Conforme ficara combinado, os freis saltaram do carro, mas MARIGHELLA não obedeceu à ordem recebida e tentou abrir uma pasta que portava, onde havia um revólver TAURUS calibre 32, sendo alvejado pelos policiais, vindo a falecer no local.

Verificou-se, então, intenso tiroteio, afirmando os agentes da lei que foram alvo de disparos, possivelmente por parte de elementos da cobertura de MARIGHELLA, a qual, no entanto, não foi identificada. Terminado o tiroteio verificou-se que haviam sido feridos o Delegado de Ordem Social do DEOPS/SP – RUBENS CARDOSO DE MELLO TUCUNDUVA – e a investigadora ESTELA BORGES MORATO do SS/SEOPS/SP que faleceu posteriormente. Também foi morto na ocasião o dentista FRIEDRICH ADOLF ROHMANN que sofria de neurose de guerra, razão porque, ao ouvir o tiroteio, teve um desequilíbrio nervoso e tentou romper o bloqueio policial, sendo confundido com elemento da possível cobertura de MARIGHELLA.

Em poder de CARLOS MARIGHELLA foram encontrados alguns rascunhos, miudezas, cerda de 1.000 dólares americanos, duas cápsulas de substância ainda não analisada e um molhe de chaves, através do qual a polícia procurará localizar os “aparelhos” onde ele se homiziava.
Os rascunhos encontrados são os constantes do ANEXO 2.

No ANEXO 3, apresentamos uma análise desses documentos, realizada pela 2ª Seção do II Exército.”
( pg. ¾ ).

Permanecendo na pesquisa no Arquivo Nacional, a Comissão Nacional da Verdade logrou encontrar a Informação n° 183/QG - 4, do Ministério da Aeronáutica, por seu Centro de Informações da Aeronáutica – CISA -, datada de 24 de novembro de 1969, com a tarja de SECRETO, na linha do informe oficial e sigiloso do general Milton Tavares, a dizer:
“Em prosseguimento às diligências já do conhecimento das autoridades, no dia 4 do corrente, o DOPS, que mantinha delegado e investigadores na Livraria “Duas Cidades” da Ordem dos Dominicanos, onde trabalhava Frei Fernando de Brito, à Rua Bento Freitas 158, recebeu telefonema às 16 hs, do seguinte teor: “estou na gráfica às oito horas”. O autor da telefonema era CARLOS MARIGHELLA, e isto significava que às 20 hs. o principal líder do terrorismo estaria na Alameda Casa Branca, em frente ao número 806. O apontamento era dirigido aos freis YVES DO AMARAL LESPAUPIN e FERNANDO DE BRITO, que no mesmo local já se haviam encontrado cerca de dez vezes, utilizando os padres o carro de Barros Pereira.
(doc. em anexo do Quartel General do Ministério da Aeronáutica).

E, detalhadamente:
“Montou-se então um dispositivo de 8 veículos, equipados com rádio e chapas particulares, e os freis foram dirigindo o carro, precedidos e procedidos de veículos do DOPS. Quinze minutos antes o carro dos freis estacionou no ponto marcado, e desligou as luzes. Dez minutos antes, desceu a rua um indivíduo mulato, estacionando, à pé, próximo do carro onde se achava um dos veículos do DOPS, ocupado por um delegado e uma investigadora. Sua descrição coincide com a de um dos capangas de Marighella: mulato de 1m75, 30 anos, com entrada no cabelo, corpo regular mas atlético, vestido com roupa esporte. Observou durante cinco minutos o carro policial, após o que desceu a rua, passou pelo carro, parou novamente e seguiu pela rua abaixo. No horário aprazado, Carlos Marighella subiu a Alameda Casa Branca à pé no sentido bairro-cidade, no sentido contrário ao do seu capanga, pelo lado contrário ao do carro dos padres. Atravessou em linha reta em direção a este carro, aproximou-se, conversou, entrou no carro. Nesse momento, foi dada a ordem de comando e uma das equipes cercou o automóvel dando voz de prisão e mandando que Marighella saísse com as mãos para cima. Os freis saltaram do carro conforme o combinado, e o terrorista ao invés de obedecer, segurou uma pasta de couro preta, que estava em seu poder. Diante da indicação de resistência, foram feitos disparos, principalmente contra sua mão esquerda que segurava a pasta: esta foi perfurada a tiro, perdendo ele a falange do indicador da mão esquerda.

Neste ínterim, os outros veículos haviam fechado o quarteirão, dando cobertura ao grupo de ataque. No momento em que Marighella estava sendo intimado a entregar-se, surgiu na esquina da Alameda Lorena com Casa Branca, em alta velocidade, no rumo bairro-cidade, um auto marca Buick, com um ocupante, que rompeu o cerco policial e continuou a avançar mesmo após tiros e gritos de advertência, e ter um dos pneus traseiros perfurado, dando a nítida impressão de tratar-se de carro de cobertura de Carlos Marighella, motivo porque foi metralhado, falecendo seu ocupante.
Carlos Marighella usava peruca preta, vestia camisa esporte e portava um revólver “32”, na pasta, sem número e no bolso, além de miudezas e dinheiro, duas cápsulas de substância ainda não analisada.”
( doc. acima referido ).

Por oportuno, também é anexado a este escrito o Relatório assinado pelo Bel. Ivair Freitas Garcia, Delegado-Assessor da Diretoria do DEOPS/SP, encaminhado ao Bel. Romeu Tuma, Diretor do DEOPS/SP, com maiores detalhamentos fáticos, inclusive contendo o croqui do palco das operações.
De tudo, resta claro, que Carlos Marighella foi eliminado por agentes públicos do Estado, sob a supervisão direta do general Milton Tavares de Melo, na condição de Chefe do Centro de Informações do Exército a que se subordinava a Operação Bandeirante.

Carlos Marighella foi eliminado quando, sozinho, dirigia-se a encontro, caminhando na alameda Casa Branca.

As forças de segurança mataram, também, metralhando, Friedrich Adolf Rohmann, cidadão alemão, que não tinha qualquer envolvimento político, mas adentrou no cenário das operações: estava no lugar errado e na hora errada.

Mataram, ainda, a investigadora Estela Borges Morato e feriram o delegado Melo Tucunduva pelo desatino de atirarem de todos os lados, vez que o cerco contava com 8 viaturas e, no instante em que Friedrich Rohmann fura o cerco, a fuzilaria aconteceu pela irresponsável avaliação de que sua, isolada, conduta identificava-se com apoio a Marighella, por companheiros seus.

O historiador Jacob Gorender, no seu livro “Combate nas Trevas”, no capítulo 24, intitulado “Assim mataram Marighella”, lastreando-se em depoimentos de membros da própria ALN, narra o fato na mesma linha dos documentos oficiais e secretos do Estado Ditatorial militar:
“Na verdade, nenhum líder revolucionário em situação de clandestinidade circula acompanhado de guardas de segurança. Regra fundamental da vida clandestina consiste em passar desapercebido e, para isto, nada melhor do que a naturalidade, do que comportar-se igual a todo mundo. Em caráter excepcional, porque sentia uma pontada de desconfiança, Marighella enviou na frente um companheiro a fim de examinar como estava o lugar de encontro com os frades. Este companheiro não era o Gaúcho, mas Luís José da Cunha, militante da ALN vindo do PCB. Libertado em dezembro de 1970, Genésio de Oliveira ouviu do próprio Luís Cunha o relato aqui reproduzido.

Às vinte horas, Marighella apareceu subindo a alameda Casa Branca. Como de costume, aproximou-se do Fusca azul, abriu a porta e sentou no banco de trás. Instantaneamente, conforme instruções recebidas, Fernando e Yves escapuliram do carro, deram alguns passos e se jogaram ao solo.
Rodeado de tiras, Fleury surgiu do escuro, apontou um revólver para Marighella e o intimou a se render. Marighella fixou o olhar no chefe do Esquadrão da Morte e fez um movimento com a mão para abrir a pequena pasta preta que trazia consigo. Fleury começou a disparar e os tiras a seu lado o acompanharam, motivados por uma reação de pânico diante da fama de valentia do homem encurralado dentro do Fusca. Os policiais postados no fundo da rua imaginaram que a guarda de Marighella atirava e responderam também com disparos. O fogo cruzado dos próprios policiais vitimou de maneira fatal a investigadora Stela Morato, que antes “namorava” dentro de um automóvel, feriu gravemente o delegado Tucunduva e matou o protético alemão Friedrich Adolf Rohmann, cujo carro por azar atravessou o trecho conflagrado no momento do tiroteio. Com cinco balas no corpo, Marighella teve morte rápida provocada por hemorrag

Análise Pericial

Os peritos criminais Celso Nenevê, Mauro Yared e Pedro Cunha elaboraram pronunciamento técnico a que se pudesse estabelecer a dinâmica do acontecido, sob essa modalidade de prova.
O estudo é apresentado em 15 ( quinze ) páginas, arquivado e à disposição de todos no âmbito dessa Comissão Nacional da Verdade, do qual destacaremos alguns tópicos elucidativos.

No item dedicado às “análises das imagens do corpo no interior do veículo”, dizem os peritos em suas “observações técnicas”:
“1 – Existiam pelo menos três perfurações na parte direita do para-brisa do veículo, identificados com os números 1 e 2, com características de terem sido produzidas por passagens de projéteis de arma ( s ) de fogo;

2- Não foram observados vestígios de sangue na moldura da porta e na parte externa da lataria, que pudessem caracterizar o transporte do corpo para o interior do veículo;

3- A mancha de sangue observada na parte anterior do corpo (número 3) é compatível com a posição em que o cadáver encontrava-se no interior do veículo e tinha origem nos ferimentos observados na lateral direita de sua face(número 4).”

Prosseguem, em trecho adiante:

2- Não foram observados vestígios de sangue na moldura da porta, na lataria, no estribo da lateral esquerda do veículo e na área externa, que pudessem caracterizar o transporte do corpo para o seu interior;

3- As dobraduras ( setas vermelhas ) observadas nas regiões identificadas como “pernas de calça” apresentavam características de terem sido produzidas em sentido contrário ao indicado na peça do subitem I. IV. Essas dobraduras foram formadas de cima para baixo e da direita para a esquerda, em relação ao veículo, tendo, o banco posterior e a moldura da porta servido para prender o tecido da calça durante a acomodação do corpo.”

Por mais de uma vez, o que, inclusive, há de se repetir em asserções posteriores, no mesmo tópico, os peritos não constatam vestígios de sangue nas molduras das portas, ou nos estribos, o que, e o tenho por evidente, afasta, cabalmente, a versão de que Marighella fora morto, andando na rua e, depois, transportado para o carro.

Nas conclusões, e no campo das “proposições determinantes”, vale dizer, quando se alcança maior grau de certeza na análise ensejando a afirmação de que determinada situação ocorreu, estabelecem os peritos que:

“a) É possível afirmar que a ferida existente na região torácica direita de Carlos Marighella apresenta a zona de tatuagem inscrita na zona de esfumaçamento e que essa zona de enfumaçamento apresenta contornos bem definidos, com diâmetro relativamente pequeno e a coloração bem enegrecida ( figura ao lado ). Essas características são verificadas em disparos efetuados com a boca do cano muito próxima do anteparo, ou seja, em distâncias inferiores a oito centímetros, conforme ensaios já realizados e biografia existente na Balística Forense;

b) A proposição acima, aliada com o trajeto desse projétil no corpo, caracteriza que o projétil que atingiu a região torácica direita do corpo de Carlos Marighella foi disparado a menos de oito centímetros do corpo, com o atirador posicionado no mesmo nível ou em plano levemente superior ao de Carlos Marighella. De forma análoga, o projétil que atingiu a região mentoniana também foi disparado com o atirador em condições semelhantes. Carlos Marighella estaria sentado ( ou em posição próxima desta)
com o tronco tendendo ao piso, conforme ilustrações produzidas a seguir:”

Relevo, agora, três itens, também no campo das “proposições determinantes” que, a meu juízo, por completo afastam a versão de tiroteio entre grupos de pessoas rivais, ou que Carlos Marighella posicionava-se como agressor dos policiais. De se ler:

“f) a característica da ferida observada na região torácica direita, produzida por entrada de projétil expelido por arma de fogo, disparado com a extremidade livre do cano ( “boca do cano” ) posicionada a curta distância ( menos de oito centímetros ) do peito de Carlos Marighella, não é compatível com feridas encontradas em tiroteios ( versão registrada no Histórico do Laudo Cadavérico de Carlos Marighella), em confrontos ou em troca de tiros. Esse tipo de ferida, com a distância de disparo considerada – curta distância – é comumente encontrada em locais onde o agressor ( ou agressores ) tem a intenção de matar as vítimas, em eventos conhecidos como execuções. ( grifos meus e do original ).

g) não é citado pelo perito que examinou a bolsa que estaria com Carlos Marighella qualquer vestígio de sangue nessa peça. Como existia a versão de que Carlos Marighella foi atingido na mão quando tentava abrir a bolsa, seria esperado que vestígios de sangue alcançassem a estrutura da bolsa e, nesse caso, seriam descritos pelo perito que a examinou. Assim, considerando a inexistência desses vestígios de sangue e considerando que a arma estaria acomodada no interior da bolsa, é determinante que Carlos Marighella não teve acesso a essa arma e que sua mão ferida não entrou em contato ou esteve próxima dessa peça, pois não é citado qualquer vestígio de sangue na sua estrutura.”

h) as portas abertas formavam vãos de dimensões suficientes para permitir a passagem de projéteis e, até mesmo, a aproximação de atirador e a realização de disparos a curta distância contra a vítima, sem que ficassem registrados impactos contra a lataria do veículo.”
Esse pronunciamento pericial desdobra-se em vários itens, estabelecendo quadro de todo coerente e fundamentado, daí porque, e assim se caracterizando sua óbvia importância, integra Anexo ao presente texto como ponto de leitura integralmente indispensável.
Para encerrar este item, extraio trecho inserto nas “proposições sugestivas”, ou seja, quando o grau de certeza não atinge dimensão determinante e indicativa, mas, e em análise contextual, a conclusão apresentada faz-se em possível e provável:

b) A análise das proposições anteriores e dos posicionamentos das avarias observadas no veículo, ilustradas no subitem II.3, predominantemente na parte anterior do veículo, sugerem que a aproximação do ( s ) atirador (es ), quando Carlos Marighella foi ferido pelos projéteis expelidos por arma ( s ) de fogo que atingiram seu corpo, se deu dos dois lados da parte anterior do veículo, predominantemente do seu lado direito, e prosseguiu até que um dos atiradores alcançasse o vão da porta direita do veículo, de onde disparou os dois projéteis que atingiram a cabeça e a mão esquerda de Carlos Marighella ( disparo único ) e a sua região torácica direita, em disparo quase encostado e com Carlos Marighella praticamente confinado no banco traseiro do veículo, com pouco espaço e tempo para se defender.”ia interna.



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