Por Cynara Menezes
(Tio Patinhas e Mac Mônei no traço de Don Rosa)
A primeira vez que eu, menina do interior baiano, ouvi falar de Machu Picchu e da civilização inca foi num gibi de Tio Patinhas. O velho sovina de Walt Disney era incapaz de presentear Huguinho, Zezinho e Luizinho com um tablete de chocolate, mas não era avarento na hora de compartilhar informações ou de convidar os sobrinhos para suas viagens ao redor do mundo em busca de aventuras –e também de tesouros, claro.
Sempre que vejo a reação de alguns no Brasil à política de cotas lembro do Tio Patinhas. Para mim, ser contra as cotas raciais ou para estudantes das escolas públicas é ser um muquirana do conhecimento, um pão-duro do saber, um mão-de-vaca da cultura. Ao longo da vida, conheci muitas pessoas que se gabavam de ter lido os clássicos, de conhecer várias línguas ou de possuir diversos diplomas com a boca cheia, como se tratasse de um privilégio a que só os bem-aventurados, ungidos por Deus, teriam direito. Pessoas incapazes de repartir sabedoria até mesmo emprestando um livro.
Como se a cultura fosse um baú cheio de moedas de ouro ao qual os velhacos do conhecimento dormem abraçados para que não lhes escape pelos dedos um só níquel que seja, tal qual o Tio Patinhas com a sua “número um”. O muquirana da cultura também costuma exibir sua moedinha: adora citar frases que pinçou das leituras que fez apenas para demonstrar a incrível erudição que “possui”. Morre de ciúmes de “seus” autores prediletos. Para que ter a generosidade de apresentá-los para que mais gente os conheça, se pode guardá-los inteirinhos para si?
Eu tive a sorte de conviver com mestres que fizeram questão de dividir comigo todo o (pouco) conhecimento que haviam acumulado em suas vidas de professores de província, primeiro, e depois grandes figuras que conheci como jornalista. “Leia isto” –é uma frase singela, mas de uma generosidade sem tamanho, sobretudo se vem acompanhada da própria obra, num país onde os livros custam caro. Nunca pudemos comprar muitos livros em casa, não cresci com uma vasta biblioteca ao redor. Fui correndo atrás de minha formação ao longo da vida e por isso os mestres foram tão importantes, indicando caminhos.
O discurso que os avarentos da cultura no Brasil utilizam contra as cotas é tortuoso. Defendem, principalmente, que o ingresso dos oriundos da escola pública e dos afro-descendentes irá reduzir a “excelência”, baixar o nível das universidades também públicas, que são as melhores –aquelas que eles próprios fazem questão de criticar, quando convém. Um argumento absolutamente falacioso, como se não fosse possível a qualquer estudante inteligente e aplicado, vindo de qualquer colégio, crescer junto com o ambiente em seu entorno. Ou “o homem é produto do meio” não serve para os mais carentes?
No fundo, os argumentos anti-cotas, além de evidenciarem um mal disfarçado preconceito de classe, não passam de desculpas de quem não quer admitir que não gostaria que o conhecimento fosse também democratizado, que fosse acessível a todos. A verdade é que os mesmos que torcem o nariz para a classe C que viaja de avião tampouco quer conviver com eles a seu lado na poltrona do teatro, do cinema –ou na universidade. Cultura é riqueza. Compartilhar cultura, saber, com os menos favorecidos é sinônimo de compartilhar o poder com eles. É contra isso que os muquiranas do conhecimento não param de resmungar.
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