Rui Daher
Rui Daher é colunista de CartaCapital
Começo por entregar a idade. Em 31 de março de 1964, tinha 18 anos. Só eu sei quantas vezes ainda iria me entregar depois daquele dia, na contramão do acordo de elites que nunca nos permitiu vivenciar um país menos desigual.
O ano letivo acabara de começar no Colégio de São Bento, em São Paulo. No final, eu receberia o diploma do “científico”, “colegial”, que assim era como não mais o é.
Onze anos de ensinamentos dos padres beneditinos alemães, faziam-me perceber que Jesus e o Evangelho não eram bem compreendidos no Brasil.
Mais grandinho, um termo impróprio para a minha altura, desprezava logaritmos, formas geométricas e cromossomos. Preferia devorar os autores franceses Teilhard de Chardin (1881-1955), Merleau-Ponty (1908-1961), e os brasileiros Alceu de Amoroso Lima (1893-1983) e Caio Prado Júnior (1907-1990).
Daí até participar da JEC (Juventude Estudantil Católica), da UPES (União Paulista dos Estudantes Secundários), reuniões, passeatas, filmes do russo Sergei Eisenstein (1898-1948), Chico Buarque cantando “Pedro Pedreiro” em colégios da elite paulistana, foi um pulo. Pronto! Pertencia ao movimento estudantil.
A Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola depois da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, ajudou a garantir a posse do vice-presidente João Goulart. Alvíssaras! O caminho para as reformas sociais parecia iluminado. Houvesse ruptura, venceríamos.
Desde 1962, no entanto, em regime parlamentarista de araque, logo rejeitado em plebiscito, as situações política e econômica vinham se deteriorando. Sindicatos de trabalhadores, ligas camponesas e entidades estudantis confrontavam a oligarquia rural, os industriais paulistas e os Estados Unidos.
Naquela época, em São Paulo, tínhamos a Rádio Marconi. À exceção do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, e do Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, a emissora era a única favorável ao governo. Tanto que combateu o golpe até ser fechada, em 1967.
No dia 13, uma sexta-feira, eu passara toda a tarde colado ao rádio ouvindo a transmissão do Comício da Central, no Rio de Janeiro. Cada discurso me fazia vibrar. Mais de 150 mil pessoas reunidas para ouvir sindicalistas, políticos, e o presidente anunciar reformas que mexeriam com os estratos conservadores do País.
Pressenti bronca pela frente.
Seis dias depois, como réplica, arregimentadas pelos setores golpistas, milhares de pessoas saíram às ruas, em São Paulo e outras capitais, na Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Mais seis dias, e veio tréplica. Quase três mil marinheiros se reuniram em assembleia, no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com reivindicações da tropa e em apoio às reformas de base.
À ordem de prisão dos insurgentes, dada pelo general do Exército e ministro Sylvio Frota, se contrapôs o contra-almirante Cândido Aragão. Era a hierarquia militar ameaçada com a cucuia.
O pressentimento virou certeza. A bronca seria o golpe de Estado.
No dia 29, domingo de Páscoa, fiquei com meus pais. Não lembro se ganhei ovos de chocolate. Gordinho e espinhento, eles me restringiam essa gula. Se não os ganhei, é provável tê-los comprado.
Na terça-feira 31, cientes de que o general Olímpio Mourão Filho movimentava suas tropas de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro, para gáudio da maioria de meus colegas, os padres suspenderam as aulas.
Tremi. A serpente do golpe civil-militar, que por muitos anos se disfarçaria de revolução, deixara o ovo.
Nos dias e anos seguintes, tudo girou entre sobreviver, formar família, e aperfeiçoar os ideais conquistados antes de março de 1964. Nos lugares onde estive, nos empregos que aceitei, nas livrarias e cinemas frequentados.
Os fotogramas desses cinquenta anos correram rápidos. Não poucas vezes se fragmentaram e tiveram que ser remontados.
A morte de meu pai, um ano depois; desistência do vestibular para medicina; primeiro emprego como estoquista de uma serraria da família Maluf; curso de administração de empresas na FGV, onde poucos eram os amigos de esquerda; casamento, filhos, prestação do BNH; o salário crescendo e a burguesia mostrando seus encantos.
Os micróbios pré-1964, no entanto, persistiam nos fotogramas.
Trabalhar durante o dia numa fábrica de tintas, em Guarulhos, e estudar Ciências Sociais, à noite, na USP, para aprender a ler Marx, Trotsky e Gramsci; centenas de livros comprados nas livrarias Avanço e Kairós; a emoção das Diretas-Já; o Brasil novamente naufragando; o círculo social se ampliando com burocratas reacionários e uns poucos que relutavam em voltar de Woodstock.
Quase quarenta anos trabalhando em setores do agronegócio, me fizeram ser empregado, executivo, sócio, de pessoas que aderiram ou participaram dos governos militares. De muitos, gosto e fiquei amigo. A outros, respeito.
Deles, nunca escondi minhas posições. Recebo respeito e alguma incredulidade.
Ao me propor este texto, o site de Carta Capital pergunta: “de que maneira aquele dia que instalou a ditadura mudou sua vida, sua forma de pensar e agir”?
Mudou?
Quem me lê sabe que não.
*Rui Daher é colunista do site de Carta Capital. Seu relato é parte de uma série de 50 depoimentos coletados para o especial Ecos da Ditadura, que lembra os 50 anos do golpe militar
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