Pixinguinha mostrou ao Brasil que a miscigenação deu ao repertório brasileiro o que ele tem de mais rico
André Diniz
Quem costumava passar à noite pelo casarão do Catumbi, bairro do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século XX, ouvia a agitação musical que rolava ali. Sons de flautas, violões, cavaquinhos, pistons, bandolins e clarinetes animavam as frequentes festas da família Vianna. O dono do casarão, Alfredo da Rocha Vianna, funcionário da usina de eletricidade da repartição geral dos Correios e Telégrafos e flautista amador, fazia da sua residência de oito quartos uma pensão para os amigos músicos.
Era nesse ambiente musical dos boêmios chorões que o caçula da família, nascido em 23 de abril de 1897, começaria a despertar sua curiosidade pela música. Para sua tristeza, sempre que a roda de choro ficava mais animada, o menino era obrigado a obedecer contrariado ao comando do pai para ir dormir. Subia as escadas cabisbaixo, chateado por não poder aproveitar mais daquele som que, a partir dali, faria para sempre parte da sua vida.
Alfredo da Rocha Vianna Filho nasceu em uma família dedicada à música e não tardaria muito a, ainda de calças curtas, sair tocando pela cidade. Começou aprendendo música com o irmão China, cantor e violonista, mas seu grande professor foi um dos hóspedes da “Pensão do Vianna”, o músico da Banda do Corpo de Bombeiros Irineu de Almeida (1873-1916). Conhecido no meio do choro como Irineu Batina, foi ele o responsável por ensinar ao jovem Pixinguinha a linguagem do contraponto, ou seja, a arte de fazer a melodia principal dialogar com a secundária. Nos anos 1940, Pixinguinha chegaria ao ápice dessa linguagem característica do gênero, registrando com seu saxofone, ao lado da flauta de Benedito Lacerda, momentos inesquecíveis da música brasileira. Juntos gravaram 34 faixas geniais na fonográfica Victor, entre elas “O gato e o canário”, “Ingênuo”, “Um a zero” e “Vou vivendo”.
Pixinguinha começou a tocar flauta profissionalmente ainda com 14 anos, no Cinematógrafo Rio Branco, no Centro do Rio, levado pelo amigo Tute (1886-1957), precursor do violão de sete cordas no choro. Sua primeira composição nasceu de um fato cotidiano, a exemplo de muitas outras criações dos chorões. Depois de tocar na noite, ao voltar para casa de madrugada com os companheiros, apareciam uns mais espertinhos que, para amenizar a ressaca, bebiam o leite deixado pelos entregadores nas portas das casas. Pronto: nascia então o choro “Lata de leite”. Já as suas primeiras gravações como flautista foram feitas com o grupo de Irineu de Almeida, o Choro Carioca, também em 1911.
Deixando para trás o nome de batismo, Pixinguinha passou a ser conhecido pelo apelido, mas ao longo do tempo foi chamado das mais diferentes formas: Pechinguinha, Pixingui, Peixinguinha, Peixiquinha. O próprio músico afirmou que o apelido de Pixinguinha surgiu depois que teve “bexiga”, nome popular da varíola. “Então uns me chamavam de Bexinguinha, Bixinguinha, foi uma complicação de apelidos. Até hoje, não sei por que fiquei como Pixinguinha.”
Em 1919, aproveitando a fama do seu grupo Caxangá na cidade, Pixinguinha e seu amigo Donga (1890-1974), coautor do histórico samba “Pelo telefone” – o primeira gravação reconhecida como samba –, são convidados pelo gerente do Cine Palais, Isaac Frankel, a formar um conjunto que o próprio Isaac batizou de Oito Batutas. Os cinemas passaram a ser uma febre no Rio de Janeiro. Havia conjuntos que tocavam dentro das salas de projeção, dando vida sonora às imagens, e aqueles mais sofisticados que tocavam nas salas de espera.
Isaac Frankel foi ousado ao chamar para uma sala elegante da cidade um grupo de negros e mestiços com um repertório cheio de “coisas nossas”, como dizia Noel Rosa (1910-1937): cateretês, lundus, maxixes, toadas sertanejas e tangos, como então era chamado o “choro”. As críticas pipocaram na imprensa, mas o sucesso das apresentações calou a boca dos descontentes. O político Rui Barbosa (1849-1923), um dos personagens proeminentes da República, frequentemente largava seus afazeres públicos para correr ao cinema e gritar da plateia no meio da apresentação dos Oito Batutas: “Toca o ‘bem-te-vi’, toca o ‘bem-te-vi’!”, música de Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) e Patrício Teixeira (1893-1972). Em 1922, os batutas rumaram para Paris, para o que foi possivelmente a primeira turnê internacional de um grupo popular brasileiro. Pixinguinha era o destaque nas apresentações. Fazia variações, floreios, fugia da partitura, criava um universo todo particular ao tocar. Flautista do mais alto quilate, executava melodias dificílimas, geralmente de sua autoria. Foi em Paris que Pixinguinha ganhou seu primeiro saxofone, presenteado pelo amigo e patrocinador da viagem, o empresário Arnaldo Guinle.
Em um Riode Janeiro que afirmava sua musicalidade no circuito cultural formado por teatros, cines, salões, gravadoras e rádios, Pixinguinha soube captar como nenhum outro a influência dos migrantes, imigrantes e afrodescendentes que povoavam o espaço urbano da capital federal. Foi ele quem deu ao choro uma identidade, a sua forma moderna. E se o choro é basicamente instrumental, três das suas mais conhecidas composições ficaram famosas pelas letras que receberam: “Rosa”, em parceria com um obscuro mecânico, Otávio de Souza; “Carinhoso”, com letra do compositor João de Barro (1907-2006), o Braguinha – seu maior sucesso e uma das músicas brasileiras mais gravadas de todos os tempos –, e “Lamento”, que recebeu letra de Vinicius de Moraes (1913-1980).
Ao longo de sua carreira, Pixinguinha dirigiu muitos grupos musicais, como a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, Orquestra Típica Pixinguinha, Orquestra Típica Oito Batutas, Diabos do Céu, registrando suas obras no momento em que as gravadoras se firmavam no Brasil, sobretudo de 1928 a 1930, período em que ele mais atuou no mercado fonográfico. Pixinguinha também atuou em várias estações de rádio cariocas, tendo inaugurado muitas delas, como Tupi, Transmissora, Club, Mayrink Veiga, Nacional e Cruzeiro do Sul. Seus arranjos produzidos na época deram uma guinada à brasileira no universo musical.
Até então, os arranjos da música popular eram feitos por maestros estrangeiros, o que deixava os compositores loucos na hora da execução. Sempre faltava algo. E Pixinguinha percebeu isso, ao incorporar ao seu trabalho o instrumental percussivo dos morros cariocas. Por isso pode-se considerá-lo um porta-voz das características inovadoras que marcaram definitivamente nossa música popular, pois conhecia a fundo o universo musical carioca, suas manifestações comunitárias e étnicas, a linguagem do choro e os recursos da música acadêmica que estudara no Instituto Nacional de Música.
Os sucessos carnavalescos, como “Pra você gostar de mim” (“Taí”), de 1930, do compositor Joubert de Carvalho, na voz de Carmem Miranda; e “O teu cabelo não nega” (1932), de Lamartine Babo e Irmãos Valença, gravado por Castro Barbosa, levam a marca de Pixinguinha nos arranjos. E os autores das músicas reconheciam o valor do maestro: “Sem o grande Pixinguinha, minha música ‘Alá-lá-o’ não seria o que é. ‘Alá-lá-o’ teve um parceiro oculto, um gênio”, dizia um eufórico Nássara (1910-1996), coautor da música com Haroldo Lobo (1910-1965).
Prestes a completar 76 anos, Pixinguinha entrou na Igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, para batizar uma criança, acompanhado de seu filho Alfredinho. Era fevereiro de 1973, segunda-feira de carnaval. Ao chegar perto do altar, sentiu-se mal e faleceu logo em seguida. Parece que o velho e bom Pixinga escolheu o cenário de sua morte: no meio dos santos pelos quais tanta devoção teve durante a vida e em pleno carnaval carioca, o mesmo carnaval que pulou como folião dos mais endiabrados quando jovem e que, como músico, compositor e arranjador, ajudou a consolidar por meio de alguns gêneros que a partir daí passaram a ser “bem brasileiros”.
André Diniz é autor de Almanaque do Choro (Jorge Zahar, 2003) e de Pixinguinha: o gênio e o tempo (Casa da Palavra,
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