quarta-feira, 19 de março de 2014

NÃO À GUERRA CIVIL. SEM RESISTIR AO GOLPE, JOÃO GOULART PARTIU PARA O EXÍLIO E EVITOU UMA LUTA SANGRENTA ENTRE REFORMISTAS E GOLPISTAS



Jorge Ferreira



João Goulart, em 1962 / imagem wikimedia-ccManhã do dia 31 de março de 1964. No Palácio Laranjeiras, no estado da Guanabara, o presidente João Goulart (1919-1976) acordou cedo. Na noite anterior, ele discursara para cerca de 2.000 sargentos no Automóvel Clube. Assustado, Jango leu as manchetes. O Jornal do Brasil e o Correio da Manhã pediam a sua deposição. O presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, divulgou manifesto rompendo com o governo e incitando as Forças Armadas a restabelecer a ordem no país.



As crises políticas e militares se sucediam desde setembro do ano anterior, quando sargentos tomaram Brasília pelas armas. Mas a Revolta dos Marinheiros no dia 25 de março e a anistia que receberam provocaram enorme insatisfação nas Forças Armadas. A presença de Jango no Automóvel Clube agravou a crise militar. Para grande parte da oficialidade, inclusive a que defendia a legalidade, o governo estava subvertendo os pilares básicos da instituição: a hierarquia e a disciplina.

Depois de ler os jornais, o presidente soube que o general Olímpio Mourão Filho, vindo de Juiz de Fora, marchava com recrutas para a Guanabara com o objetivo de derrubá-lo da Presidência da República. Mourão participava do grupo conspirador de Minas Gerais, cujo líder civil era o governador Magalhães Pinto.

A primeira atitude de Goulart, com o apoio de seus ministros, foi resistir ao golpe. Jango ordenou que o Regimento Sampaio, na Vila Militar, o Grupamento de Obuses, no bairro de Deodoro, e o 1º Batalhão de Caçadores, em Petrópolis, tropas profissionalizadas do Exército, detivessem Mourão. A seguir, planejou sustar a tentativa de golpe depondo Magalhães Pinto do governo de Minas Gerais e nomeando um interventor.

Poucas horas antes, San Tiago Dantas, deputado federal e amigo de Goulart, soubera que o governo dos Estados Unidos apoiava o movimento e que reconheceria o “estado de beligerância” de Minas Gerais, fornecendo suporte financeiro, diplomático e militar a Magalhães Pinto. As informações que Dantas recebeu do governo mineiro eram de que os Estados Unidos poderiam interferir militarmente na crise política, se necessário. Navios de guerra norte-americanos estavam se dirigindo para o litoral brasileiro. A intervenção em Minas Gerais, portanto, poderia deflagrar uma guerra civil com intervenção estrangeira. Após conversa com San Tiago Dantas, Goulart recuou, e o decreto de intervenção em Minas Gerais foi sustado.

Na tarde do dia 31, os governadores Carlos Lacerda (GB) e Ademar de Barros (SP) defendiam o golpe nas rádios, com o apoio do governador Ildo Meneghetti (RS). O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) declarou greve geral, mas a iniciativa paralisou os transportes, impedindo que a população fosse para as ruas.

Jango tentou convencer os comandantes das quatro jurisdições do Exército a garantir a legalidade. Ele encontrou apoio dos comandantes do I (GB, RJ, ES e MG) e do III Exército (PR, SC e RS), mas não do IV (estados do Nordeste). Restava conversar com o comandante do II Exército (SP), general Amaury Kruel, seu amigo. Kruel declarou que só o apoiaria se o CGT fosse declarado ilegal e os comunistas perseguidos. Jango recusou.

Naquele momento, decisões pessoais dos comandantes militares valiam pouco. O que contava eram as inclinações do conjunto da oficialidade e dos generais que formavam o Estado-Maior de cada um dos quatro Exércitos.

No fim da noite, tropas do II Exército marcharam para a Guanabara. Os comandantes do Regimento Sampaio, do Batalhão de Caçadores e do Grupamento de Obuses decidiram apoiar Mourão, que continuaria sua marcha acompanhado por tropas profissionais.

Nas primeiras horas do dia 1º de abril, diversos comandos militares declararam apoio ao movimento de deposição do presidente. Quando amanheceu,,o editorial do jornal Correio da Manhã era “Fora”.

Na Guanabara, os fuzileiros navais esperavam ordens do presidente para prender Lacerda – seria uma resposta do governo aos golpistas. Mas a ordem não veio. Naquela manhã, San Tiago Dantas dissera a Jango que a frota norte-americana invadiria a Baía da Guanabara se Lacerda fosse preso.

Jango percebeu que não eram grupos civis e militares minoritários que tentavam golpear as instituições, como ocorrera em episódios anteriores. Era um movimento conjunto das Forças Armadas com apoio de empresários, de amplos setores das classes médias e dos meios de comunicação. O movimento ainda contava com os governadores da Guanabara, de Minas Gerais, de São Paulo e do Rio Grande do Sul, com suas polícias civis e militares. No Congresso Nacional, grande parte dos parlamentares deu aval ao golpe. O Supremo Tribunal Federal calou-se diante da crise política. Além disso, o movimento golpista tinha o apoio do governo norte-americano. Jango compreendeu a extensão do golpe que estava em curso. A convocação para a resistência deflagraria uma guerra civil com consequências imprevisíveis. Na manhã do dia 1º de abril, ele iniciou o recuo. Ao meio-dia, partiu para Brasília – atitude interpretada como capitulação.

No final da tarde, Arthur da Costa e Silva (1899-1969), general pouco conhecido, entrou na sede do Ministério da Guerra e declarou-se ministro. A seguir, instituiu o “Comando Supremo da Revolução”.

Em Brasília, Jango emitiu comunicado denunciando os golpistas. Alegou que as medidas nacionalistas e populares que tomou em seu governo uniram forças políticas e econômicas impatrióticas cujo objetivo era “impedir que ao povo brasileiro fossem assegurados melhores padrões de cultura, de segurança e de bem-estar social”. Depois, partiu para Porto Alegre. Enquanto o avião seguia para o Sul, nas primeiras horas do dia 2 de abril, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, impedindo debates, declarou vago o cargo de presidente da República. Um pouco mais tarde, com a presença do presidente do Supremo Tribunal Federal, Andrade empossou o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na Presidência da República. A participação ativa das lideranças do Poder Legislativo e a omissão do Poder Judiciário foram decisivas para o sucesso do golpe.

Em Porto Alegre, o comandante do III Exército, general Ladário Telles, e Leonel Brizola (1922-2004) tinham esperança de reverter o golpe. O III Exército era mais poderoso do que os outros juntos, e Brizola planejava reeditar a Campanha da Legalidade. Naquele episódio, ocorrido em agosto e setembro de 1961, os três ministros militares, diante da renúncia do presidente Jânio Quadros, tentaram impedir a posse do vice-presidente João Goulart. Brizola reagiu e, utilizando cadeia de rádio, mobilizou o país em defesa da Constituição. Com a adesão do III Exército à causa da legalidade, o golpe contra a posse de Jango fracassou. Brizola, portanto, acreditava que poderia repetir em 1964 o que ocorrera em 1961. Às 8 horas da manhã do dia 2 de abril. reuniram-se Goulart, Brizola, Ladário Telles e os generais do Estado-Maior do III Exército. Telles demonstrou otimismo, mas a maioria dos generais do III Exército comunicou lealdade ao novo ministro da Guerra, enquanto a Brigada Militar obedecia ao governador do estado. Jango percebeu que não havia como resistir.

Hoje sabemos que o golpe resultou em 21 anos de ditadura. Mas os personagens que participaram daqueles conflitos não conheciam o futuro. Ditadura militar não estava nos planos dos líderes civis golpistas, como Carlos Lacerda (1914-1977) e Magalhães Pinto, ambos presidenciáveis nas eleições de 1965. Jornais que defenderam a deposição de Goulart, como oCorreio da Manhã, também não apoiavam a instituição de governos militares. Entre os próprios militares golpistas não havia planos de poder. Seus depoimentos confirmam que não existia um projeto a favor de algo, apenas contra. Os planos imediatos eram depor Goulart e fazer uma “limpeza”, retirando do cenário político os comunistas, os trabalhistas e os sindicalistas identificados com ele.

Jango, por sua vez, acreditou que o golpe repetia o que acontecera com Vargas em outubro de 1945: o presidente é deposto, fica exilado no próprio país e depois o processo político retorna à normalidade.

Nos anos que se seguiram, Goulart foi bastante criticado por não resistir ao golpe. Atualmente, admite-se a extensão destrutiva que o chamado de resistência provocaria na sociedade brasileira. O jornalista Paulo Markun afirma que “Jango deve ser valorizado por aquilo que não fez: jogar o sangue de outros na luta política”. Zuenir Ventura concorda: “Jango teve um dos seus momentos mais bonitos ao evitar aquilo que imaginava que viria a ser uma guerra civil com um milhão de mortos”. Goulart compreendia que guerra civil é algo que se sabe como começa, mas não como termina. Como ocorre nesses conflitos, toda a sociedade padece, mas são os trabalhadores e a população mais pobre os maiores prejudicados. Esta foi a principal razão para o gesto de Goulart de não resistir aos golpistas.



Jorge Ferreira é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Jango, uma biografia (Civilização Brasileira, 2011).

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