‘Diplomacia e ideologia’, um texto de Denis Lerrer Rosenfield
Publicado no Globo desta terça-feira
DENIS LERRER ROSENFIELD
A diplomacia é, propriamente, uma arte de defesa dos interesses nacionais, naquilo que tradicionalmente se considera como a soberania de cada país. Como toda arte, tem de demonstrar habilidade nas negociações e, certamente, uma noção precisa de limites que não podem ser ultrapassados, sob pena de inviabilizar uma negociação diplomática e, no mundo de hoje, uma negociação comercial.
Historicamente, a diplomacia sempre esteve associada a guerras, sendo um instrumento seja para evitá-las, seja para conduzir negociações que conduzissem a seu fim. Era, neste sentido, que foi criado o instituto de inviolabilidade das Embaixadas, mesmo em situações extremas de conflito, para que canais de negociação permanecessem abertos. Atualmente, além de suas funções clássicas, temos a entrada em pauta de organismos internacionais na regulação de questões comerciais e financeiras, que se tornaram um poderoso instrumento de exercício do Poder das nações.
Negociações comerciais entraram também com mais força na pauta diplomática, fazendo com que diplomatas se tornassem “mercadores” dos interesses econômicos de seus países, algo muito claro na política americana e de vários países europeus, além de asiáticos como China e Japão. Apesar da diplomacia brasileira ainda resistir parcialmente a essa tendência, deverá a ela resignar-se, pois, como já dizia Hegel, estamos diante do “espírito do tempo”. Neste sentido, não há lugar para devaneios ideológicos como alinhamentos em concepções que retomam pautas esquerdistas, anti-economia de mercado, há muito ultrapassadas.
Contudo, o Brasil segue, nos governos petistas, um alinhamento ideológico que contraria, mesmo, políticas pragmáticas, de corte social-democrático, adotadas pelos mesmos governos em várias questões internas e em reorientações de órgãos governamentais. É como se, na política externa, o país resistisse a um aggionarmento necessário. Doutrinariamente, a política externa brasileira permanece presa a dogmas do PT, abandonados em outras áreas. Talvez a atual troca de ministros de Relações Exteriores pudesse propiciar uma mudança de atitude. Não é isto, porém, que parece estar sendo sinalizado.
O recente episódio de espionagem da presidente Dilma pelo governo americano é um desses exemplos em que o instrumento antiamericano está sendo potencializado, sendo usado como uma espécie de bode expiatório de fracassos da política externa brasileira, como os ocorridos ainda recentemente na Argentina e na Bolívia. Não se trata, evidentemente, de justificar o injustificável, ou seja, o fato de os EUA interferirem na soberania nacional, espionando o governo brasileiro e, mesmo além dele, procurando obter informações comerciais que beneficiariam os seus interesses. Neste sentido, a reação brasileira de considerar tal invasão inadmissível e inaceitável é plenamente condizente com uma resposta altiva e necessária.
Entretanto, o tom está propriamente acima, podendo levar a uma situação insustentável. O Brasil evidentemente não poderia se dar ao luxo de cancelar uma viagem de Estado da presidente Dilma aos EUA, visto a maior relevância das relações entre os dois países. Muito menos, poderia chamar o seu Embaixador para consultas, em uma exacerbação da resposta. Inimaginável cortar as relações. Logo, o jogo de cena está atingindo o seu limite, obrigando as duas partes a um faz de conta que permita a retomada das relações normais. O país do Norte é a maior potência do Planeta, na verdade a única, tendo uma insuperável força militar, inigualável desenvolvimento científico e tecnológico e a economia mais pujante do mundo. Não é com o Mercosul que o Brasil equilibraria suas relações comerciais!
Mais bem faria o país em olhar para o lado. O Mercosul é um projeto atualmente inviável, constituído por países que têm horror à economia de livre mercado, aferram-se a ideias socialistas, pregam maior intervenção estatal na economia e se comprazem com diatribes “anti-imperialistas”. A Argentina é um país praticamente falido, sem acesso a financiamentos internacionais, gastando suas reservas internacionais, submetido a processos em cortes norte-americanas pelo calote dados a seus credores e, em pouco tempo, terá problemas em honrar compromissos de suas importações. Ou seja, o mercado argentino estará importando cada vez menos do país, nenhuma saída se vislumbrando. Trata-se da crônica de uma falência anunciada. Apesar disto, o Brasil continua se alinhando a este país em foros internacionais, posicionando-se conjuntamente contra o livre comércio, como acabamos de observar na reunião do G-20, em São Petersburgo.
Em relação à Bolívia, a omissão brasileira, tornando-se uma completa indiferença, foi a tônica em relação ao salvo conduto do Senador Molina, abandonado, em um cubículo da Embaixada, à sua própria sorte. Segundo tratados internacionais, assinados pelo Brasil e pela Bolívia, o salvo conduto deveria ter sido expedido imediatamente. O governo Evo Morales participou de um faz de conta com o Itamaraty, levando um diplomata digno a insurgir-se contra tal desprezo da lei internacional e de uma mínima consideração dos direitos humanos. O fiasco do Itamaraty foi total, levando a uma crise que se traduziu pela demissão do Ministro das Relações Exteriores.
A comunhão ideológica em torno do projeto bolivariano/socialista, tal como já havia se expresso na lamentável participação brasileira na suspensão do Paraguai do Mercosul, preponderou, dando ensejo ao ingresso da Venezuela. Goste-se ou não da Constituição paraguaia, todos os trâmites foram seguidos na destituição do ex-presidente Lugo, o que não foi o caso dos trâmites venezuelanos que levaram Maduro a ascender ao Poder, na agonia e morte de Chávez. Com tudo isto, o país compactuou em nome de uma ideologia comum. Já passa a hora de o Brasil revisar as suas prioridades e adotar a defesa pragmática dos seus interesses nacionais e comerciais, dando adeus a ideologias de antanho.
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