Masculinidades femininas: não somos lésbicas, somos goby
Carlos Henrique Lucas Lima
Farei, neste texto um pouco longo, algumas reflexões sobre as masculinidades femininas e peço à leitora e ao leitor de nosso blog que me acompanhe, sobretudo na parte inicial em que dialogo com um importante autor dessa área de estudos.
Tecerei comentários de inspiração culturalista, que pretendem mobilizar um referencial crítico vinculado aos estudos quer, e tal procedimento não pode querer detectar o início de algo, já que o próprio momento do início foi arruinado pela história, não lhe sendo possível ser recuperado como totalidade, mas sim reconstituído, e nesse mesmo momento, criado pelo estudioso/a que a esse trabalho se dedica. Ressalva feita para aqueles/as que pretendiam encontrar aqui uma etimologia da palavra goby.
Essa foi a reflexão que me ocorreu após ser indagado sobre a origem da palavra goby por uma companheira do movimento LGBT da cidade de Vitória da Conquista/BA. Vale dizer que eu não conhecia essa palavra antes de chegar à Bahia, talvez um indício de que tal vocábulo, que já tomei como pertencente ao repertório pajubá, possivelmente tem uma localização geográfica baiana; e foi por uma dessas coincidências da vida, já que tenho por sentado que a vida não passa de contingências, tropeços e encontros malucos, que, nesse ínterim, enquanto era provocado a escrever sobre a palavra goby, estava lendo dois capítulos do livro Masculinidad femenina (título em espanhol), do pesquisador J. Jack Halberstam (nesse livro, ele ainda assinava como Judith Halberstam), em especial o primeiro capítulo, que trata exatamente de introduzir os argumentos do autor no que se refere à possibilidade de a masculinidade existir – ou nos termos de Judith Butler, ser performada, a despeito do corpo do homem (o bio-homem, com pênis).
Esse pesquisador vai afirmar, com o auxílio de alguns estudos disparadores sobre masculinidade vivenciada por mulheres, que, no filme “007 contra Goldeneye” – e poderíamos estender o exemplo para todos os filmes da franquia –, a masculinidade do agente Bond, o protagonista da saga, não tem nada de concreta em si mesma, estando dependente, a todo o momento, de acessórios, ou próteses de masculinidade: talvez um relógio que dispara raios laser, um paletó blindado, um cadarço letal etc. Halberstam demonstra, de maneira convincente, que Bond termina por se apresentar como “uma paródia ou uma revelação da norma”, e que quem consegue interpretar a masculinidade de uma forma mais contundente é a personagem “M”, a chefe mandona que “encabeça” – uma cara palavra do repertório patriarcal, as missões do agente (lembrem-se, por exemplo, do discurso religioso que afirma ser o homem “o cabeça” da mulher).
Em seguida, Halberstam traz à tona o exemplo dos “chicazos”, palavra costumeiramente utilizada em contextos de fala espanhola, para designar “meninas ou adolescentes com características físicas e aspecto masculino, com um comportamento parecido ao dos meninos, ou que realiza atividades que se supõem próprias de meninos” (p. 27, a tradução é minha). Os “chicazos”, afirma, permitem que os modelos hegemônicos de masculinidade sejam postos sob suspeita, tensionando a normatividade de gênero, quer dizer, como devem ser os gêneros. E um parêntese é necessário.
Há uma tendência a crer que, em se comparando as meninas masculinas com os meninos femininos, aquelas seriam mais toleradas, já que características masculinas em corpos de mulheres são valorizadas. Por exemplo, uma mulher que seja decidida, forte, valente, qualidades comumente reputadas ao masculino, é desejável e socialmente valorizado. Contudo, Halberstam sustenta que é na adolescência que se dá, de forma mais pontual, posto que é nesse período da vida que se processa a puberdade, o policiamento de gênero, quando a menina-mulher precisa ser moldada, ensinada a desempenhar suas futuras tarefas como esposa e mãe, a cuidadora do lar, o lugar da família. E aqui já vemos que a feminilidade nada tem de natural, mas sim é moldada, ensinada e reforçada durante esse período da vida (e não só durante a adolescência, pensem, por exemplo, nos reiterados discursos midiáticos que a indústria dos cosméticos faz com vistas a instituir um único modelo de mulher, aquela sempre bela e perfumada).
Não me interessa aqui apontar se são as meninas masculinas ou os meninos femininos quem mais desestabiliza a matriz de inteligibilidade dos gêneros e das sexualidades; vale dizer, entretanto, que em uma sociedade organizada a partir de relações em torno do falo, do poder e da autoridade do homem, calcada no patriarcalismo – e, como outro parêntese, a força do patriarca não diminuiu, como se vem alentando em alguns círculos dos movimentos sociais, antes ganhou novas máscaras, ou velhas máscaras novamente envernizadas –, meninos femininos são sobremaneira indesejáveis e problemáticos.
De qualquer maneira, “as sapatinhas” ou lekinhas, pra fazer uso de algumas expressões pertencentes ao repertório do pajubá, os “chicazos”, apontam não para um desejo de usurpar o poder reputado ao homem, tampouco para um símbolo de patologia, as “invertidas”, mas, antes, para outras possibilidades de masculinidades, descoladas do corpo do bio-homem, cuja maior potência reside na intervenção nos processos de outorgar um gênero a um corpo e, em última instância, apreender a humanidade de alguém, torná-la inteligível.
Essas observações sobre as lekinhas valem, também, para as mulheres masculinas, cuja visão em muitos círculos, infelizmente alguns deles gueis e lésbicos, é, ainda, hostilizada. E acerca disso vale a pena abrir um outro parêntese. O movimento feminista, por um largo tempo, visando a um integracionismo de pinta burguesa, rejeitou as mulheres masculinizadas, as machonas, caminhoneiras, scania etc. A rejeição se dava tanto por esse motivo, o da assimilação, o de uma maior aceitação das lésbicas na sociedade e do próprio movimento LGBT como um todo, quanto por um medo que os movimentos de lésbicas tinham de terem suas identidades sexuais associadas à doença, ao conceito de inversão, conceito cunhado no centro dos discursos médicos coincidentemente com o conceito de homossexualidade masculina no final do século XIX e início do século XX. Movimento similar ocorreu (ocorre ainda?) nos círculos de gueis visando exatamente a obter uma aceitabilidade mais ampliada da sociedade em relação às relações homossexuais.
O investimento em pautas como o casamento igualitário e a adoção de crianças por esse tipo de casal são disso indícios. Nessa perspectiva, é desejável que as lésbicas sejam femininas, se possível, super femininas, demonstrando para a normalidade sexual que a essência-mulher, o ser mulher, está no corpo a despeito da lesbianidade, e que os gays sejam masculinos, “homens de verdade”, preservando, também, o estatuto social do macho.
A masculinidade feminina, nesse sentido, irrompe como um turbilhão de águas para retirar a feminilidade e a masculinidade de “seus lugares”, indicando a possibilidade de um leque muito grande de maneiras de experienciar os gêneros (eis o som do leque: trah!). Halberstam mobiliza um repertório teórico de filiação pós-estrutural, com o qual me identifico, como apontei no início do texto, o qual nomeia a masculinidade do homem branco, burguês e heterossexual não como “hegemônica”, mas sim como “dominante”, e as masculinidades possíveis, como é o caso das masculinidades femininas, de “alternativas”. Nesse ponto, vale a pena explicar as tênues, mais importantes, diferenças entre esses termos.
As masculinidades femininas tomadas enquanto “alternativas” apontam, e aqui recorro a Foucault, para desenvolver o argumento, não para um desejo de tomar a masculinidade hegemônica para si, de reivindicá-la enquanto poder e privilégio, mas sim para proporem, com a força da performance, possibilidades outras, não cobiçando os privilégios de dominação próprios do patriarca. Perceber as mulheres masculinas, portanto, como pessoas desejosas do lugar do homem burguês e heterossexual é reduzir as masculinidades femininas a simples cópias, simulações, da masculinidade dominante. Essa masculinidade, a dominante, nada mais é do que exatamente um modelo dominante, cuja genealogia pode ser apontada na história, portanto, não tendo nada de natural ou legítimo. Se tem chão histórico, refuta-se a verdade metafísica.
Feitas essas reflexões, o e a leitor/a deve estar pensando: e as goby? Bem, as pessoas que se identificam com essa palavra, uma categoria identitária, já que, como me narrou a companheira de Vitória da Conquista, parte do movimento reivindicou-se goby, demonstram muito mais o desejo de romperem as fronteiras das identidades políticas centradas no desejo e na prática sexual – a identidade lésbica, que apenas deflagarem a emergência de um novo movi mento ou uma nova composição na sigla LGBT. As goby, como tenho observado em conversas com amigas que se identificam como lésbicas, e também a partir de rápida pesquisa na internet, sem ainda um rigor típico de uma pesquisa acadêmica, tem revelado que goby tem uma potência política muito interessante, e talvez mais agregadora, pois chama para si não apenas as mulheres lésbicas masculinas, mas também aquelas que, declaradamente heterossexuais, rejeitam a feminilidade enquanto intrínseca a seus “corpos biológicos”. Isso demonstra, portanto, que o gênero pode ser experienciado apesar do desejo e da prática sexual.
Se no caso da homossexualidade masculina o que está em xeque, enquanto violação da normatividade sexual, é mais uma questão de feminilidade, isto é, “pode até ser viado mas que seja homem!”, no que se refere às goby, o que se destaca é a masculinidade poder ser vivenciada para além da lesbianidade, o que desnaturaliza o “corpo biológico” da mulher da obrigatoriedade da feminilidade. É uma potência política fantástica essa a da goby! E aí provoco: poderiam os meninos gueis afeminados serem goby? Poderiam eles gozar da prerrogativa de, quando desejável, performarem a masculinidade, ou é a feminilidade uma obrigatoriedade em seus corpos?
Boas reflexões e um beijo bem masculino em todxs xs goby do Brasil!
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