segunda-feira, 9 de setembro de 2013

REFLEXÕES DE UM DEPENDENTE ENQUANTO SÓBRIO

Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis”
Planet Hemp
“Eu sou um produto da política falida de desinformação, demonização e repressão, o fracasso de todas as campanhas antidrogas desses últimos vinte anos, nas quais fui educado, quer dizer, desinformado”. Em mais um artigo de nossa seção Cartas na Mesa*, apresentamos as reflexões sobre consumo de drogas a partir de uma mirada diferente, de alguém que passou por distintos usos problemáticos e se dispôs a pensar neles a partir de múltiplas perspectivas. Autor do livro Reflexões de um dependente enquanto sóbrio , Flávio Migliano gentilmente nos cedeu a apresentação deste para publicação inédita na Internet.

INTRODUÇÃO de REFLEXÕES DE UM DEPENDENTE ENQUANTO SÓBRIO
Flávio Migliano

“Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carros, cd players e abridores de latas elétricos. Escolha saúde, colesterol baixo e plano de saúde. Escolha sua primeira casa. Escolha seus amigos. Escolha roupas esporte e malas combinando. Escolha um terno numa variedade de tecidos. Escolha fazer consertos em casa e pensar na vida domingo de manhã. Escolha sentar-se no sofá e ficar vendo game shows na TV, comendo porcarias. Escolha apodrecer no final, beber num lar que envergonha os filhos egoístas que pôs no mundo para substituí-los. Escolha seu futuro. Escolha viver. Mas porque eu ia querer isso? Escolhi não viver. Escolhi outra coisa. E as razões? Não há razões. Quem precisa de razões quando se tem heroína?”
Mark Renton, Transpointing

Dia 29 de junho de 2011 eu escolhi não mais viver. Escolhi desistir. Escolhi fugir. Escolhi o caminho, a saída mais fácil. Escolhi morrer. É, morrer. É forte não?
Mais forte e desesperador quando você chega a uma decisão extrema como essa e vê que não há volta. Que não existe solução para o seu problema. Que não há nada neste mundo que te faça mudar de idéia. Nem pai, mãe, amigos, namorada, irmãos, padre, pastor, Jesus Cristo, Maomé, Buda, Deus, ninguém que vai te convencer do contrário.
Relembrava desses fatos enquanto jantava e conversava com meu pai e meu padrinho. Meu pai me dando papinha na boca, igual a um neném. E eu com trinta e um anos de idade. Idade suficiente para ser pai, chefe de família, dono da minha própria vida. Mas não. Estava trancafiado em um quarto do Hospital São Luís, em São Paulo, me recuperando de duas cirurgias para recompor meu braço direito, uma parada cardíaca, dez dias de coma induzido, umas crises de abstinência e uma cirurgia para reconstrução do lado direito do meu rosto. Tudo isso consequência do grave acidente que quase ceifou minha vida e do uso inconsequente de drogas por quase quinze anos.
Drogas de todos os tipos. Lícitas e ilícitas. É claro que eu tinha uma de preferência. E é claro que essa era ilícita. Cocaína. Essa foi o meu calcanhar de Aquiles. A substância que mais me deu prazer foi também aquela que o uso inconsequente me fez querer tirar a minha própria vida. Obviamente que apenas depois de muito tempo fui descobrir que ela foi a minha válvula de escape, mas nesse momento eu tentava explicar e entender o porquê de toda aquela insatisfação e do que eu queria fugir.
Não cresci em uma vizinhança violenta, não nasci em uma família disfuncional, apesar dos seus problemas, estudei em boas escolas, tive ótimos empregos, bons salários, carinho, amor, brinquedos, afeto, educação, felicidade, viagens à Europa, Estados Unidos e Canadá: aparentemente não tinha motivos para me autodestruir daquele jeito, enfim eu tive e tinha tudo.
Mas as aparências enganam. Por dentro, eu era uma contradição ambulante. Uma constante ambivalência de sentimentos. Desejos completamente conflitantes, que sempre me deixaram cada dia mais e mais angustiado, infeliz e descontente. Com dezenas, centenas de pequenas coisas. Imaginem isso acumulando ao longo dos anos, uma hora você tem que dar vazão para toda essa angústia, essa raiva acumulada. Alguns espancam os filhos, a mulher; outros descontam nos funcionários; e outros ainda que preferem pegar uma arma e matar bandidos na rua ou inocentes dentro de uma escola. Tem pessoas mais práticas. Preferem camuflar seus sentimentos em prazer. Usam drogas, fazem sexo mecanicamente, ou cometem outras perversidades que muitos acham imorais, mas no fundo é dar vazão à frustração.
As drogas já haviam deixado de ser um momento de diversão, de extravasar o lado animal, instintivo que todo mundo tem guardado dentro de si. Ao mesmo tempo em que queria ajuda, que eu queria parar com aquela vida, pois já não via mais diversão na rotina de destruição em que seguia, queria mandar tudo para o inferno. Queria largar as drogas, mas sempre queria mandar “O” último tirinho.
Dizia todo dia: “Vou aproveitar essa semana, esse final de semana, que segunda-feira começo uma vida nova. Longe das drogas, longe de tudo”.
Queria me endireitar e adorava ser torto. Adorava ser transgressor dos comportamentos sociais; ao cheirar me sentia livre para fazer o que bem entendesse. Um libertário, um libertino, como dizia Marquês de Sade; mas era completamente escravo do prazer que já tinha se tornado um fardo em minha vida. Era apenas o vício. Puro e simples. Usava porque o corpo pedia. A falta de cocaína no organismo proporcionava sensações horríveis, então a melhor forma de resolver era usando-a.
Mas voltando ao quarto do hospital, meu padrinho me pergunta:
“Por que você não pensa em escrever um livro? Algo parecido com um manual, sacou? Algo pra tentar ensinar a gente — outras pessoas, por que não? — a como conversar com você a respeito do seu problema. Porque é complicado pra caralho e ninguém sabe direito como lidar”.
Aquilo ficou na minha cabeça, pois ao mesmo tempo em que iniciava meu tratamento para a dependência química, meu castelo de cartas desmoronava. Quer dizer, como vou escrever um manual de como não ser um farinheiro, sendo que nem eu sabia o quanto ia durar a minha abstinência? Poderia ser para valer desta vez, ou apenas temporária, como fora antes?
Já não era a primeira vez que a casa caía. Dessa vez eu tinha extrapolado, tinha ido longe demais, mas eu já havia tentado abandonar o vício outras vezes e não tinha conseguido. Seria mais uma tentativa frustrada?
Todas as minhas mentiras vinham à tona. Muitas perguntas para serem respondidas, dez anos de histórias mirabolantes aparecendo. E muitas dúvidas. Dúvidas da minha parte, pois eu ainda não tinha certeza do que iria acontecer, e dúvidas por parte da minha família e amigos.
“O que de fato tinha acontecido?”
“O que se passava na minha cabeça para fazer o que fiz?”
“Será que dessa vez ele endireita?”
Dia após dia, ficava claro que eu precisava levar a sério o projeto do livro: seria uma maneira de aprender a lidar com o meu problema e tentar passar a minha história para frente. Essa era a oportunidade que eu esperava há muito tempo. O momento em que eu me libertaria das amarras do vício e poderia conversar abertamente sobre meu problema. Essa era a oportunidade para eu entender as consequências de todas as escolhas que eu tinha feito até o momento.
Repeti o verbo escolher vinte e uma vezes nos dois parágrafos iniciais. Fiz isso porque cada vez mais acredito que na vida escolhemos qual o caminho a seguir. Durante muitas bifurcações no meio do caminho, nem sempre você faz a escolha certa. Mas o importante é aprender com as escolhas erradas. Tirar as lições necessárias para continuar a caminhada. E, certo ou errado, eu fiz as minhas e não me arrependo de nenhuma delas. Não quero sair propagando pelo mundo uma mensagem antidrogas, muito pelo contrário. Quero demonstrar com os meus depoimentos como cheguei à porta do nono círculo do Inferno e como eu perdi a minha liberdade de escolha. O bem mais importante de todo homem e o direito mais básico de qualquer ser humano.
Meu objetivo é relatar as minhas experiências, desde o primeiro porre até a chegada ao fundo do poço. E tudo o que se passou no meio. Relatar as baladas, as primeiras experiências, a mudança dos hábitos, os perrengues com a polícia, os dramas, as mentiras vividas e contadas, enfim, um relato sincero de alguém que tem propriedade e conhecimento de causa.
Minha intenção não é dizer a ninguém para nunca usar drogas. Tampouco ensinar aos pais como educar seus filhos. Não faço apologias, nem demagogias e nem quero desenvolver um novo método de criação de filhos, ou um novo conceito de como educar adolescentes.
Quero arriscar uma introdutória discussão à la “quebrando o tabu”, documentário que tem como principal protagonista o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, a debater sobre um tema espinhoso, contraditório, mas sem receio de debater. Qual o preço da guerra contra as drogas para a sociedade moderna? Como muita gente ainda não entende e ainda não sabe que ser contra a guerra às drogas, não é ser a favor do uso de drogas, é não apoiar o tráfico. Ser contra a guerra às drogas é estar aberto a discutir novas políticas de paz, com foco na saúde, educação, cultura e também na segurança pública. Ainda que sem o conhecimento técnico profundo sobre o tema, apenas sob a ótica do cliente, do outro lado do balcão. O que me proporciona um notório saber, um conhecimento de causa para fazer críticas construtivas às atuais políticas públicas e sociais, que considero um fracasso.
Eu sou um produto da política falida de desinformação, demonização e repressão, o fracasso de todas as campanhas antidrogas desses últimos vinte anos, nas quais fui educado, quer dizer, desinformado. Mas não faço papel de vítima. Hoje tenho melhor compreensão sobre a responsabilidade dos meus atos.
Esse livro é a maneira que eu escolhi para exorcizar meus demônios internos e compreender meu comportamento de viciado, de narcisista, de egoísta. Mas em nenhum momento quero que o meu relato seja um manual de regras a serem seguidas (ou não) ou um livro de autoajuda. Ao contrário.
Se durante quinze anos eu escolhi me autodestruir, com muita diversão no meio, não é agora que vou livrar muitas pessoas das drogas. O novo paladino, o czar antidrogas, aquele ex-fumante pentelho que fica dando lições de moral aos fumantes ao seu redor.
Pelo contrário, preciso me policiar vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano para não retroceder naquilo que conquistei: a minha liberdade. O desafio é duro, muito mais punk do que eu pensava.
Incentivar o debate é a minha meta. Discutir tabus. Quebrar paradigmas e dogmas para que, a partir daí, possam surgir novas ideias e propostas. Fazer com que os leitores conversem e que troquem experiências. Abordar temas complicados, como a legalização, a descriminalização, a corrupção policial e a mudança das leis vigentes.
Mostrar qual é a minha visão sobre os prazeres vividos sob o efeito das drogas. Mostrar que existem maneiras diferentes das atuais de se ver o uso e abuso das drogas lícitas e ilícitas. Aprender a fazer distinções entre usuários ocasionais e dependentes. Aprender a lidar com o viciado como alguém portador de uma grave doença, como a diabetes, câncer, ou mesmo a aids.
Minha linguagem é, por muitos momentos, obscena, pornográfica, suja, dura, contraditória e talvez até um pouco confusa. Mas é extremamente honesta. Sincera como nunca foi antes. São vários lados de uma personalidade fragmentada que, pouco a pouco, está se reintegrando. Mas sem moralismo, lições de moral. O papo aqui não faz curva, aqui o papo é reto, sem meias-verdades.
Quero botar o dedo nas feridas entreabertas de quem está vivenciando essa contracultura. E nas minhas também. E dizer que sim, há uma saída humana para esse problema que aflige a sociedade e que aparenta ser insolúvel. Não é fácil. Pode levar cinco, dez, quinze, vinte anos e vai precisar do comprometimento de toda sociedade civil, partidos políticos, polícia, entidades religiosas, defensoria pública, ministério público, clínicas, profissionais de saúde, acadêmicos.
Dizem que quem já ouviu as histórias de um dependente químico já ouviu todas. Eu não acredito. Cada viciado é um poço de histórias. Factíveis ou não. Em algum momento nossas histórias se cruzam, mas nunca são idênticas.
Na hora de decidir qual o nome do meu projeto, não poderia ter aparecido um nome que resumisse tão bem essa minha nova viagem: quero narrar o quão profundo eu mergulhei nesse buraco que pó muitas vezes pareceu não ter fim. E que, agora ciente de tudo o que vivi e passei, consigo analisar e me criticar.
Espero que façam uma boa viagem. Eu, com certeza, fiz, faço e continuarei fazendo!

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